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10 dezembro 2024

[Resenha] 1968: Centelhas sob palha seca, de Edvaldo Silva

 


O livro de Edvaldo Silva, 1968: Centelhas sob palha seca, é como diz a capa “uma história de coragem e paixão em tempos de luta”. A obra, publicada pela Serendipity em 2024 (167 páginas) tem notadamente um cenário político e que nos coloca em contexto de transformações sociais, culturais, políticas e econômicas que ocorreram na década de 1960, mais especificamente no ano de 1968.


Thierry é um jovem negro, pianista, imigrante oriundo da colônia antiga da Costa do Marfim. De outro lado temos Beatriz, uma jovem branca, filha de um diplomata brasileiro e estudante de Letras na Universidade de Nantere.


O pai de Thierry, Frank Adou, havia sido pianista e quando a Costa do Marfim se tornou independente, decidiu aceitar a proposta para trabalhar no restaurante de um hotel em Paris. A mãe, que havia sido flautista, agora se dedica apenas ao trabalho doméstico, além de ter inclinação para a bebida alcóolica.


“[...] Mesmo nos dias em que nitidamente havia bebido demais, limitava-se a cantar de forma estridente, principalmente as músicas folclóricas de sua terra, o que costumava causar boa impressão nos possíveis convidados, sempre ávidos por conhecer novas culturas.”


Os irmãos de Thierry seguiram caminhos distantes. Um foi para os Estados Unidos e se alistou nos Panteras Negras e o outro foi se alistar na Legião Estrangeira e atuava em lutas em solo africano.


A história de amor que se constrói entre Beatriz e Thierry acontece numa cidade que, em muitos livros e filmes, ganha um tom de romantismo. Paris, na França, é uma cidade que desperta os sonhos e o imaginário das pessoas numa construção de relações amorosas. Mas, os jovens do livro, que protagonizam a história, se conhecem em meio a lutas. Cada um tem uma perspectiva dos movimentos que estão se consolidando. Beatriz é mais movida pela possibilidade da revolução, enquanto Thierry tenta se manter distante dos conflitos que estão ocorrendo.


Interessante observamos o que faz com que Thierry sinta saudade de sua terra natal. A ancestralidade dele grita, mas o chamamento é feito pelo lado afetivo de algo que o ligava, como ele diz “[...] à minha casa, à minha pátria.” Isso faz com que ele tenha vontade de um dia colocar os pés em solo africano, ou seja, colocar os “pés de volta na mesma poeira” dos antepassados.


1968 foi um importante ano da história mundial, em que uma série de acontecimentos marcou tanto o Brasil quanto outros países. Foi um ano marcado por levantes estudantis e movimentos de contestação. Era o período da Guerra-Fria, que durou de 1945 até 1991, e a juventude em todo o mundo se rebelou e protagonizou uma revolução cultural e de costumes.


No Brasil, tivemos uma vários acontecimentos dramáticos, como o assassinato de estudantes pela polícia e um massacre na porta de uma universidade, que foi denominada de Sexta-feira Sangrenta. Por aqui, em terras brasileiras, tínhamos um contexto de fortalecimento da ditadura militar, instalada em 1964, e que só findaria em 1985. Portanto, em 1968 estávamos nesse momento do enrijecimento ditatorial.


No dia 3 de maio de 1968, estudantes franceses ocuparam a Sorbonne, universidade mais tradicional do país. As barricadas estudantis logo se alastraram por toda a França e ganharam contornos para além das pautas estudantis. Os manifestantes passaram a criticar a política trabalhista e educacional do governo do general Charles de Gaulle, culminando em uma greve geral de 24 horas que paralisou Paris.


Thierry e Beatriz acabam vindo para o Brasil. O plano para eles não era complicado, como mencionado na obra, posto que “[...] iriam para o Brasil, ela retomaria os estudos e ele encontraria, assim como havia feito o seu pai, um bom lugar para tocar piano”. Eles saem da França.  Aqui se deparam com o cenário histórico que vivíamos e que foi mencionado anteriormente. Uma das fortes cenas elaboradas pelo autor é o preconceito que Thierry sofre quando tenta pegar um taxi no aeroporto. Ele, um imigrante negro, irmão de um Pantera Negra, vivencia o racismo e a intolerância.


O casal, aqui em solo brasileiro, se envolve com grupos liderados por Carlos Marighella, na resistência armada e política contra a Junta Militar criada em 1964, e que tinha a pretensão de se perpetuar no poder por meio de Atos Institucionais que suspendiam as liberdades individuais, legalizavam a tortura e obrigavam a sociedade civil a viver num Estado policialesco. 


No Brasil, em 1968, estudantes, religiosos, artistas e diversos setores da sociedade caminharam pelas ruas do centro do Rio de Janeiro contra o regime militar.


Em abril de 1968, ocorreu a primeira grande greve no Brasil desde que os militares tomaram o poder quatro anos antes. Articulada pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a paralisação mobilizou por dez dias cerca de 1,2 mil trabalhadores em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Os trabalhadores da siderurgia Belgo-Mineira reivindicavam um reajuste salarial de 25%.  Além disso, a greve reacendeu o sindicalismo no país. Em julho, por exemplo, cerca de 3 mil trabalhadores da Cobrasma, metalúrgica em Osasco, na Grande São Paulo, anunciaram a ocupação da fábrica.


A união dos jovens nesse panorama histórico que se apresenta é a possibilidade de que juntos eles consigam enfrentar uma sociedade extremamente opressora e repleta de desigualdades. “[...] porque há a luta e, para que haja a luta é preciso que haja os soldados.” Thierry e Beatriz, ao passo que participam das reinvindicações, vão construindo entre si a relação que vivenciam. E é essa história, de um casal que se apaixona e da luta pela liberdade que, nós leitores, acompanhamos do início ao fim.


Após a finalização do livro o autor apresenta uma linha cronológica dos eventos históricos que ocorreram em 1968, o que permite com que o leitor possa ampliar o seu conhecimento e utilizar o livro como mote para pesquisas em ambientes externos (bibliotecas, livros, sítios da internet, jornais, entre outros suportes).


A obra tem uma narrativa fluída e capítulos curtos que possibilitam uma leitura ágil e dinâmica. A construção da obra demonstra que o livro foi feito para atingir ao público juvenil. O projeto gráfico tem total consonância com tal proposta, tanto que tange ao uso das fontes quanto na forma como foi elaborada a trama. Vale ressaltar o belo trabalho da capa, com uma ilustração que coloca o leitor como participe de uma das reinvindicações dos estudantes. Além disso, as cores escolhidas também remetem ao fogo, que pode tanto ser interpretado como o fogo que arde nos enfrentamentos, quanto ao fogo que arde na relação do casal.


Os personagens centrais são bem construídos e destaca-se que observemos como cada um deles apresenta uma diferente perspectiva sobre a luta que está sendo arquitetada. Há uma conscientização e os interesses se perfazem pela visão crítica que vão tomando a partir dos acontecimentos que ocorrem.


Também são bem desenvolvidos os personagens coadjuvantes, ao que chamo a atenção, especialmente, para o pai de Thierry e a mãe do jovem. É interessante observarmos o funcionamento daquela família e o que afeta e transforma o protagonista.


Em toda a história somos chamados para o interior da cena e o autor foi bastante certeiro ao expor os momentos históricos, inclusive com passagens de arrepiar, como os casos de tortura que aconteciam com aqueles que tinham seus direitos cerceados pela ditadura.


A trama nos conduz a questionar até onde o casal estará disposto a lutar pelo amor e pela liberdade que tanto almejam. A história entrega bons momentos e surpreende o leitor quando chegamos na página final.


Leitura super recomendada de uma história marcante que nos coloca em conexão com a busca pelo amor, pelos sonhos e pela superação de barreiras impostas pela sociedade. Se trata de uma mescla de realidade e ficção que se coloca a serviço da reflexão sobre o mundo em que vivemos.


Sobre o autor:


Edvaldo Silva é mestre em Artes e Multimeios pela UNICAMP e pós-graduado em Publicidade pela USP. Com uma carreira de estaque na indústria publicitária, ele é o autor de A revolução do streaming, o primeiro livro sobre o tema lançado em Portugal e no Brasil, e do romance de suspense histórico Além da fumaça, que recebeu Menção Honrosa no Latino Book Awards (Estados Unidos), foi finalista do Prêmio ABERST (Brasil) e ganhou o Prêmio Leitura com Chocolate (Brasil). Adicionalmente, Além da fumaça foi eleito um dos lançamentos nacionais de destaque pelo 18º Londrix (Festival de Literatura de Londrina), selecionado pela Audible da Amazon para seu catálogo de audiolivros e incluído em uma lista de grandes leituras pela revista Vogue. O livro também foi destacado em um artigo da Rolling Stones e aparece como a principal recomendação de livros ambientados em momentos históricos no site Aventura da História, do UOL.


Ficha Técnica:

Título: 1968 Centelhas sob palha seca

Escritor: Edvaldo Silva

Editora: Serendipity

Ano: 2024

Páginas:167

Edição: 1ª

ISBN: 978-65-983660-0-1

Assunto: Literatura brasileira


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