O livro de Edvaldo Silva, 1968: Centelhas sob palha seca, é como diz a capa “uma história de coragem e
paixão em tempos de luta”. A obra, publicada pela Serendipity em 2024 (167
páginas) tem notadamente um cenário político e que nos coloca em contexto de
transformações sociais, culturais, políticas e econômicas que ocorreram na
década de 1960, mais especificamente no ano de 1968.
Thierry é um jovem negro,
pianista, imigrante oriundo da colônia antiga da Costa do Marfim. De outro lado
temos Beatriz, uma jovem branca, filha de um diplomata brasileiro e estudante
de Letras na Universidade de Nantere.
O pai de Thierry, Frank Adou,
havia sido pianista e quando a Costa do Marfim se tornou independente, decidiu
aceitar a proposta para trabalhar no restaurante de um hotel em Paris. A mãe,
que havia sido flautista, agora se dedica apenas ao trabalho doméstico, além de
ter inclinação para a bebida alcóolica.
“[...] Mesmo nos dias em que
nitidamente havia bebido demais, limitava-se a cantar de forma estridente,
principalmente as músicas folclóricas de sua terra, o que costumava causar boa
impressão nos possíveis convidados, sempre ávidos por conhecer novas culturas.”
Os irmãos de Thierry seguiram
caminhos distantes. Um foi para os Estados Unidos e se alistou nos Panteras
Negras e o outro foi se alistar na Legião Estrangeira e atuava em lutas em solo
africano.
A história de amor que se
constrói entre Beatriz e Thierry acontece numa cidade que, em muitos livros e
filmes, ganha um tom de romantismo. Paris, na França, é uma cidade que desperta
os sonhos e o imaginário das pessoas numa construção de relações amorosas. Mas,
os jovens do livro, que protagonizam a história, se conhecem em meio a lutas.
Cada um tem uma perspectiva dos movimentos que estão se consolidando. Beatriz é
mais movida pela possibilidade da revolução, enquanto Thierry tenta se manter
distante dos conflitos que estão ocorrendo.
Interessante observamos o que
faz com que Thierry sinta saudade de sua terra natal. A ancestralidade dele
grita, mas o chamamento é feito pelo lado afetivo de algo que o ligava, como
ele diz “[...] à minha casa, à minha pátria.” Isso faz com que ele tenha
vontade de um dia colocar os pés em solo africano, ou seja, colocar os “pés
de volta na mesma poeira” dos antepassados.
1968 foi um importante ano da
história mundial, em que uma série de acontecimentos marcou tanto o Brasil
quanto outros países. Foi um ano marcado por levantes estudantis e movimentos
de contestação. Era o período da Guerra-Fria, que durou de 1945 até 1991, e a
juventude em todo o mundo se rebelou e protagonizou uma revolução cultural e de
costumes.
No Brasil, tivemos uma vários
acontecimentos dramáticos, como o assassinato de estudantes pela polícia e um massacre
na porta de uma universidade, que foi denominada de Sexta-feira Sangrenta. Por
aqui, em terras brasileiras, tínhamos um contexto de fortalecimento da ditadura
militar, instalada em 1964, e que só findaria em 1985. Portanto, em 1968
estávamos nesse momento do enrijecimento ditatorial.
No dia 3 de maio de 1968,
estudantes franceses ocuparam a Sorbonne, universidade mais tradicional do
país. As barricadas estudantis logo se alastraram por toda a França e ganharam
contornos para além das pautas estudantis. Os manifestantes passaram a criticar
a política trabalhista e educacional do governo do general Charles de Gaulle,
culminando em uma greve geral de 24 horas que paralisou Paris.
Thierry e Beatriz acabam vindo
para o Brasil. O plano para eles não era complicado, como mencionado na obra,
posto que “[...] iriam para o Brasil, ela retomaria os estudos e ele
encontraria, assim como havia feito o seu pai, um bom lugar para tocar piano”.
Eles saem da França. Aqui se deparam com
o cenário histórico que vivíamos e que foi mencionado anteriormente. Uma das
fortes cenas elaboradas pelo autor é o preconceito que Thierry sofre quando
tenta pegar um taxi no aeroporto. Ele, um imigrante negro, irmão de um Pantera
Negra, vivencia o racismo e a intolerância.
O casal, aqui em solo
brasileiro, se envolve com grupos liderados por Carlos Marighella, na
resistência armada e política contra a Junta Militar criada em 1964, e que
tinha a pretensão de se perpetuar no poder por meio de Atos Institucionais que
suspendiam as liberdades individuais, legalizavam a tortura e obrigavam a
sociedade civil a viver num Estado policialesco.
No Brasil, em 1968,
estudantes, religiosos, artistas e diversos setores da sociedade caminharam
pelas ruas do centro do Rio de Janeiro contra o regime militar.
Em abril de 1968, ocorreu a
primeira grande greve no Brasil desde que os militares tomaram o poder quatro
anos antes. Articulada pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a paralisação mobilizou
por dez dias cerca de 1,2 mil trabalhadores em Contagem, região
metropolitana de Belo Horizonte. Os trabalhadores da siderurgia Belgo-Mineira
reivindicavam um reajuste salarial de 25%. Além disso, a greve
reacendeu o sindicalismo no país. Em julho, por exemplo, cerca de 3 mil
trabalhadores da Cobrasma, metalúrgica em Osasco, na Grande São Paulo,
anunciaram a ocupação da fábrica.
A união dos jovens nesse
panorama histórico que se apresenta é a possibilidade de que juntos eles
consigam enfrentar uma sociedade extremamente opressora e repleta de
desigualdades. “[...] porque há a luta e, para que haja a luta é preciso que
haja os soldados.” Thierry e Beatriz, ao passo que participam das
reinvindicações, vão construindo entre si a relação que vivenciam. E é essa
história, de um casal que se apaixona e da luta pela liberdade que, nós
leitores, acompanhamos do início ao fim.
Após a finalização do livro o autor
apresenta uma linha cronológica dos eventos históricos que ocorreram em 1968, o
que permite com que o leitor possa ampliar o seu conhecimento e utilizar o
livro como mote para pesquisas em ambientes externos (bibliotecas, livros,
sítios da internet, jornais, entre outros suportes).
A obra tem uma narrativa
fluída e capítulos curtos que possibilitam uma leitura ágil e dinâmica. A
construção da obra demonstra que o livro foi feito para atingir ao público
juvenil. O projeto gráfico tem total consonância com tal proposta, tanto que
tange ao uso das fontes quanto na forma como foi elaborada a trama. Vale
ressaltar o belo trabalho da capa, com uma ilustração que coloca o leitor como
participe de uma das reinvindicações dos estudantes. Além disso, as cores
escolhidas também remetem ao fogo, que pode tanto ser interpretado como o fogo
que arde nos enfrentamentos, quanto ao fogo que arde na relação do casal.
Os personagens centrais são
bem construídos e destaca-se que observemos como cada um deles apresenta uma
diferente perspectiva sobre a luta que está sendo arquitetada. Há uma
conscientização e os interesses se perfazem pela visão crítica que vão tomando
a partir dos acontecimentos que ocorrem.
Também são bem desenvolvidos
os personagens coadjuvantes, ao que chamo a atenção, especialmente, para o pai
de Thierry e a mãe do jovem. É interessante observarmos o funcionamento daquela
família e o que afeta e transforma o protagonista.
Em toda a história somos
chamados para o interior da cena e o autor foi bastante certeiro ao expor os
momentos históricos, inclusive com passagens de arrepiar, como os casos de
tortura que aconteciam com aqueles que tinham seus direitos cerceados pela
ditadura.
A trama nos conduz a
questionar até onde o casal estará disposto a lutar pelo amor e pela liberdade
que tanto almejam. A história entrega bons momentos e surpreende o leitor quando
chegamos na página final.
Leitura super recomendada de
uma história marcante que nos coloca em conexão com a busca pelo amor, pelos
sonhos e pela superação de barreiras impostas pela sociedade. Se trata de uma
mescla de realidade e ficção que se coloca a serviço da reflexão sobre o mundo
em que vivemos.
Sobre o autor:
Edvaldo Silva é mestre em
Artes e Multimeios pela UNICAMP e pós-graduado em Publicidade pela USP. Com uma
carreira de estaque na indústria publicitária, ele é o autor de A revolução do
streaming, o primeiro livro sobre o tema lançado em Portugal e no Brasil, e do
romance de suspense histórico Além da fumaça, que recebeu Menção Honrosa no
Latino Book Awards (Estados Unidos), foi finalista do Prêmio ABERST (Brasil) e
ganhou o Prêmio Leitura com Chocolate (Brasil). Adicionalmente, Além da fumaça
foi eleito um dos lançamentos nacionais de destaque pelo 18º Londrix (Festival
de Literatura de Londrina), selecionado pela Audible da Amazon para seu
catálogo de audiolivros e incluído em uma lista de grandes leituras pela
revista Vogue. O livro também foi destacado em um artigo da Rolling Stones e
aparece como a principal recomendação de livros ambientados em momentos
históricos no site Aventura da História, do UOL.
Ficha Técnica:
Título: 1968 Centelhas sob palha seca
Escritor: Edvaldo Silva
Editora: Serendipity
Ano: 2024
Páginas:167
Edição: 1ª
ISBN: 978-65-983660-0-1
Assunto: Literatura brasileira
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