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08 novembro 2024

[Resenha] Os canibais da Rua do Arvoredo, de Tailor Diniz

 


No século XIX, nos anos de 1863 e 1864, um caso ganhou bastante notoriedade no estado do Rio Grande do Sul, na Rua do Arvoredo, que hoje é conhecida como Rua Coronel Fernando Machado, localizada no Centro Histórico. Naquela ocasião, José Ramos e Catarina Palse mataram homens, moeram suas carnes e os transformaram em linguiças, que foram comercializadas. A história foi tão impactante que até Charles Darwin citou-a em seu caderno de anotações.


O casal selecionava suas vítimas juntos e, normalmente, os selecionados eram do sexo masculino, de “boa” posição social e, de modo geral, imigrantes alemães. O casal pensava até na função de cada um.  À Catarina cabia seduzir esses homens e atraí-los como presas para a casa em que moravam. A função de José era matá-los.


Com a ajuda de uma outra figura, Carlos Claussner, eles simplesmente transformavam a carne dos mortos em linguiças e sem que ninguém suspeitasse, os embutidos eram colocados à venda no açougue de Carlos, que ficava localizado atrás da Igreja de Nossa Senhora das Dores, na Rua da Ponte, que hoje é a Rua Riachuelo, também na cidade de Porto Alegre.


De acordo com as informações veiculadas sobre o caso e que podem ser pesquisadas nos sítios da internet, José e Catarina se conheceram em lugares públicos que eram frequentados pela elite portoalegrense.


Como Catarina não tinha domínio da língua portuguesa, preferiam cooptar imigrantes alemães, daí o fato de as vítimas serem imigrantes que também falavam alemão. Catarina nasceu na parte húngara da Transilvânia e cresceu numa aldeia com seus pais e irmãos. Veio para o Brasil no ano de 1857, aos vinte anos de idade e se envolveu com José seis anos depois. O casal foi morar na Rua do Arvoredo.


O caso descrito acima não é ficcional, trata-se de uma história real, que tem uma aparência de lenda urbana. Ainda há quem acredite que isso é apenas uma lenda criada na cidade. Fato é que a situação é assustadora.


O caso teve pouca repercussão na imprensa de Porto Alegre quando aconteceu. No entanto, curiosamente, em jornais internacionais o caso ganhou visibilidade e foi parar no registro oficial do Relatório dos Presidentes das Províncias Brasileiras na edição do ano de 1864 pelo então presidente da província do Rio Grande do Sul, o senhor Dr. Esperidião Elói de Barros Pimentel.


Conforme apontado pelo historiador Décio Freitas, autor do livro O Maior Crime da Terra, "[...] faltam diversas informações como diversas folhas no processo, os documentos estão todos em português arcaico e manuscritos".  Frisa-se que o crime realmente existiu, ainda que as provas sobre a fabricação de linguiças com carne humana tenham sumido do processo.


A ficção brasileira tem inúmeros casos reais que podem inspirar escritores a produzir suas histórias.



Tailor Diniz se inspirou na história mencionada acima para nos contar o caso que relata no livro Os canibais da Rua do Arvoredo (208 páginas), publicado pelo Selo Lucens da Citadel Editora. Na obra de Tailor, ficcionalizada, temos o casal sendo despertado pelo interesse de consumir carne humana e com muita sensualidade, volúpia, desejo pelo crime, passam a atuar de forma conjunta para conquistar suas presas.


O livro é narrado por uma figura onipresente que participa de uma organização internacional que pretende dominar o mundo e que acompanha a vida do casal José – um estudante de gastronomia e Catarina – uma universitária do curso de Medicina e que gosta de aulas de anatomia.


Dias depois da mudança para a casa em que moram, encontram um porão, no qual se deparam com utensílios como machados, cutelos e outros.  Esses velhos utensílios podem ter sido usados pelos antigos moradores para sacrificar suas vítimas. Os dois são perseguidos por algumas sombras que aparecem nas paredes da casa e que continuam acompanhando-os ao longo da história.


O início da trama aponta um casamento em processo de desgaste e de divergências sexuais. Mas, na medida em que as sombras tomam o lugar, eles são impulsionados por um desejo intenso, e passam a viver momentos de prazer misturados com momentos de medo.


O casal é assolado por uma força sobrenatural e coisas inexplicáveis começam a acontecer. Estariam eles repetindo o que aconteceu em 1863 na Rua do Arvoredo?  Crie aí uma teoria possível.


Aos poucos, eles que vinham ingerindo comida vegana, passam a despertar o interesse pela carne. Depois de um evento misterioso e uma visão (em forma de sonho) que José tem, o caso se concretiza com a morte de um homem e surge a ideia de picar o seu corpo. Eles estão possuídos pelos espíritos dos antigos assassinos e tem que cumprir uma missão: se vingar de alguém que eles não sabem quem é.


Catarina toma a iniciativa.  Ela quer fazer daquelas carnes o hambúrguer ideal e oferecer o produto numa hamburgueria. Sucesso garantido, sobretudo quando uma influencer digital faz uma publi do lanche com carne humana. Conseguimos ver muito bem como o autor usou de uma história antiga mesclando-a com elementos contemporâneos.


A trama vai percorrer a história desse casal e das suas ações para conseguir mais vítimas que possam servir de insumo para a fabricação do hambúrguer. A sátira criada por Tailor Diniz traz elementos de sobrenaturalidade, terror, política e aborda as relações humanas.


O narrador é uma espécie de voyeur que fica a espreita de bisbilhotar a vida do casal. Até a covid e a campanha de vacinação aparecem na trama como elementos que provocam o leitor a pensar sobre tais questões. Mais uma prova de uso de assuntos contemporâneos.


O livro de Tailor Diniz cumpre o papel e ironiza muito bem as instituições e os costumes. É uma crítica feita de forma caricata e coloca em cena ações políticas e outras vertentes utilizadas pela sociedade.


O texto do autor ressalta questões de caráter e carências morais dos personagens: o casal que comete os crimes; o dono da Hamburgueria que deseja lucro e deseja a mulher de outro; os motoboys que tiram sarro do proprietário da hamburgueria; um orientador espiritual que anseia por abusar do corpo feminino; um médico que vive cercado de prostitutas; o próprio narrador que usa de um tom irônico.


Os canibais da Rua do Arvoredo é uma obra que entretém e que tem uma narrativa muito bem construída pelo autor. Recomendo.


Sobre o autor:


Tailor Diniz é escritor e roteirista de cinema e TV. Os canibais da Rua do Arvoredo é seu 22º livro e, entre eles, estão Em linha reta, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura 2015; Crime na Feira do Livro, traduzido na Alemanha e lançado na Feira de Frankfurt, em 2013; Transversais do tempo, Prêmio Açorianos de Literatura – Melhor Livro de Contos de 2007; e A superfície da sombra, traduzido na Bulgária e adaptado para o cinema pelo diretor Paulo Nascimento, em 2017. Com seus roteiros, conquistou prêmios nos festivais de cinema de Gramado e Brasília. O romance Só os diamantes são eternos (2019) está sendo adaptado para as telonas, e seu último livro, Novela interior, ganhou o Prêmio Jacarandá, Livro do Ano/2013, promovido pelo jornal Correio do Povo, durante a Feira do Livro de Porto Alegre.


Ficha Técnica:

Livro: Os canibais da Rua do Arvoredo

Escritor: Tailor Diniz

Editora: Lucens -  Citadel

Ano: 2023

Páginas: 208

ISBN: 978-65504-727-88

Assunto: Ficção brasileira



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