No século XIX, nos anos de 1863 e
1864, um caso ganhou bastante notoriedade no estado do Rio Grande do Sul, na
Rua do Arvoredo, que hoje é conhecida como Rua Coronel Fernando Machado, localizada
no Centro Histórico. Naquela ocasião, José Ramos e Catarina Palse mataram
homens, moeram suas carnes e os transformaram em linguiças, que foram
comercializadas. A história foi tão impactante que até Charles Darwin citou-a
em seu caderno de anotações.
O casal selecionava suas vítimas
juntos e, normalmente, os selecionados eram do sexo masculino, de “boa” posição
social e, de modo geral, imigrantes alemães. O casal pensava até na função de
cada um. À Catarina cabia seduzir esses
homens e atraí-los como presas para a casa em que moravam. A função de José era
matá-los.
Com a ajuda de uma outra figura,
Carlos Claussner, eles simplesmente transformavam a carne dos mortos em
linguiças e sem que ninguém suspeitasse, os embutidos eram colocados à venda no
açougue de Carlos, que ficava localizado atrás da Igreja de Nossa Senhora das
Dores, na Rua da Ponte, que hoje é a Rua Riachuelo, também na cidade de Porto
Alegre.
De acordo com as informações
veiculadas sobre o caso e que podem ser pesquisadas nos sítios da internet,
José e Catarina se conheceram em lugares públicos que eram frequentados pela
elite portoalegrense.
Como Catarina não tinha domínio
da língua portuguesa, preferiam cooptar imigrantes alemães, daí o fato de as
vítimas serem imigrantes que também falavam alemão. Catarina nasceu na parte
húngara da Transilvânia e cresceu numa aldeia com seus pais e irmãos. Veio para
o Brasil no ano de 1857, aos vinte anos de idade e se envolveu com José seis
anos depois. O casal foi morar na Rua do Arvoredo.
O caso descrito acima não é
ficcional, trata-se de uma história real, que tem uma aparência de lenda
urbana. Ainda há quem acredite que isso é apenas uma lenda criada na cidade.
Fato é que a situação é assustadora.
O caso teve pouca repercussão na
imprensa de Porto Alegre quando aconteceu. No entanto, curiosamente, em jornais
internacionais o caso ganhou visibilidade e foi parar no registro oficial do Relatório
dos Presidentes das Províncias Brasileiras na edição do ano de 1864 pelo então
presidente da província do Rio Grande do Sul, o senhor Dr. Esperidião Elói de
Barros Pimentel.
Conforme apontado pelo
historiador Décio Freitas, autor do livro O Maior Crime da Terra,
"[...] faltam diversas informações como diversas folhas no processo, os
documentos estão todos em português arcaico e manuscritos". Frisa-se que o crime realmente existiu, ainda
que as provas sobre a fabricação de linguiças com carne humana tenham sumido do
processo.
A ficção brasileira tem inúmeros
casos reais que podem inspirar escritores a produzir suas histórias.
Tailor Diniz se inspirou na
história mencionada acima para nos contar o caso que relata no livro Os canibais da Rua do Arvoredo (208 páginas), publicado
pelo Selo Lucens da Citadel Editora. Na obra de Tailor, ficcionalizada, temos o
casal sendo despertado pelo interesse de consumir carne humana e com muita
sensualidade, volúpia, desejo pelo crime, passam a atuar de forma conjunta para
conquistar suas presas.
O livro é narrado por uma figura
onipresente que participa de uma organização internacional que pretende dominar
o mundo e que acompanha a vida do casal José – um estudante de gastronomia e
Catarina – uma universitária do curso de Medicina e que gosta de aulas de
anatomia.
Dias depois da mudança para a
casa em que moram, encontram um porão, no qual se deparam com utensílios como
machados, cutelos e outros. Esses velhos
utensílios podem ter sido usados pelos antigos moradores para sacrificar suas vítimas.
Os dois são perseguidos por algumas sombras que aparecem nas paredes da casa e
que continuam acompanhando-os ao longo da história.
O início da trama aponta um
casamento em processo de desgaste e de divergências sexuais. Mas, na medida em
que as sombras tomam o lugar, eles são impulsionados por um desejo intenso, e
passam a viver momentos de prazer misturados com momentos de medo.
O casal é assolado por uma força
sobrenatural e coisas inexplicáveis começam a acontecer. Estariam eles
repetindo o que aconteceu em 1863 na Rua do Arvoredo? Crie aí uma teoria
possível.
Aos poucos, eles que vinham
ingerindo comida vegana, passam a despertar o interesse pela carne. Depois de
um evento misterioso e uma visão (em forma de sonho) que José tem, o caso se
concretiza com a morte de um homem e surge a ideia de picar o seu corpo. Eles
estão possuídos pelos espíritos dos antigos assassinos e tem que cumprir uma
missão: se vingar de alguém que eles não sabem quem é.
Catarina toma a iniciativa. Ela quer fazer daquelas carnes o hambúrguer
ideal e oferecer o produto numa hamburgueria. Sucesso garantido, sobretudo
quando uma influencer digital faz uma publi do lanche com carne humana.
Conseguimos ver muito bem como o autor usou de uma história antiga mesclando-a
com elementos contemporâneos.
A trama vai percorrer a história
desse casal e das suas ações para conseguir mais vítimas que possam servir de
insumo para a fabricação do hambúrguer. A sátira criada por Tailor Diniz traz
elementos de sobrenaturalidade, terror, política e aborda as relações humanas.
O narrador é uma espécie de
voyeur que fica a espreita de bisbilhotar a vida do casal. Até a covid e a
campanha de vacinação aparecem na trama como elementos que provocam o leitor a
pensar sobre tais questões. Mais uma prova de uso de assuntos contemporâneos.
O livro de Tailor Diniz cumpre o
papel e ironiza muito bem as instituições e os costumes. É uma crítica feita de
forma caricata e coloca em cena ações políticas e outras vertentes utilizadas
pela sociedade.
O texto do autor ressalta
questões de caráter e carências morais dos personagens: o casal que comete os
crimes; o dono da Hamburgueria que deseja lucro e deseja a mulher de outro; os
motoboys que tiram sarro do proprietário da hamburgueria; um orientador
espiritual que anseia por abusar do corpo feminino; um médico que vive cercado
de prostitutas; o próprio narrador que usa de um tom irônico.
Os canibais da Rua do Arvoredo é
uma obra que entretém e que tem uma narrativa muito bem construída pelo autor.
Recomendo.
Sobre o autor:
Tailor Diniz é escritor e
roteirista de cinema e TV. Os canibais da Rua do Arvoredo é
seu 22º livro e, entre eles, estão Em linha reta, semifinalista do
Prêmio Oceanos de Literatura 2015; Crime na Feira do Livro,
traduzido na Alemanha e lançado na Feira de Frankfurt, em 2013; Transversais
do tempo, Prêmio Açorianos de Literatura – Melhor Livro de Contos de 2007;
e A superfície da sombra, traduzido na Bulgária e adaptado para o
cinema pelo diretor Paulo Nascimento, em 2017. Com seus roteiros, conquistou
prêmios nos festivais de cinema de Gramado e Brasília. O romance Só os
diamantes são eternos (2019) está sendo adaptado para as telonas, e
seu último livro, Novela interior, ganhou o Prêmio Jacarandá, Livro
do Ano/2013, promovido pelo jornal Correio do Povo, durante a Feira do Livro de
Porto Alegre.
Ficha Técnica:
Livro: Os canibais da Rua do Arvoredo
Escritor: Tailor Diniz
Editora: Lucens -
Citadel
Ano: 2023
Páginas: 208
ISBN: 978-65504-727-88
Assunto: Ficção brasileira
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