[Resenha] O navio da morte, de B. Traven - Tomo Literário

[Resenha] O navio da morte, de B. Traven

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O navio da morte (320 páginas) é um livro clássico da literatura alemã, escrito por B. Traven e que ganhou nova tradução aqui em território brasileiro. A edição foi publicada pela Quimera e a tradução feita diretamente do original alemão, o que torna a experiência de leitura ainda mais próxima de seu texto original.

Tem-se notícia de que o livro sofreu alguns ajustes quando foi traduzido do alemão para o inglês, isso porque houve intervenções para satisfazer ao público norte americano. Se Traven, o autor, aceitou tal condição para se adaptar ao mercado americano, também é factível que por aqui tenhamos uma tradução que nos diga mais diretamente do que aquela que circulou nas livrarias americanas.

A priori, quando estamos falando de um livro que nos conta uma história marítima, é possível que o leitor pense que se trata de uma epopeia cheia de aventuras. Aventuras existem, mas O navio da morte é um livro que expõe, sobretudo, os sofrimentos dos trabalhadores que atuam em embarcações. Existe uma intenção política que emoldura o livro e há, nos comentários feitos pelos personagens, uma crítica acirrada sobre a forma como eram tratados.

A história começa com Gales, um dos trabalhadores de uma embarcação, a Tuscaloosa no porto de Antuérpia, situado na Bélgica, sendo deixado em território que não é o de sua pátria, quando desce do navio no qual trabalhava para uma noitada e não leva consigo seus documentos.

Vê-se que, diante do cenário de estar em terra estrangeira e sem documentação, ele passa literalmente a ser um estranho, um homem sem pátria. Privado de seu passaporte e de seus documentos, ele perde a cidadania e passa a viver como um homem que não tem registro em nenhum órgão estatal.

Gerard Gales é um proletário do mar. E começa uma saga para conseguir passar entre as fronteiras para chegar aonde deseja. Confronta as necessidades humanas e a burocracia que trava qualquer possibilidade de deslocamento.

A história se passa no período pós Primeira Guerra Mundial e desde o início do livro percebemos como o protagonista usa de humor e de ironia para conseguir o que quer e, como ele faz de situações conflitantes, algo jocoso. Isso torna a leitura do livro prazerosa, além da narrativa fluída e dos diálogos bem arquitetados que dão um toque e atraem a atenção do leitor.

Não se engane o leitor de que os comentários feitos pelo personagem sejam apenas para provocar riso, a ironia aparece na obra a serviço da crítica.

A narração, em primeira pessoa, torna a leitura muito mais intimista, fazendo com que o leitor adentre o universo desse personagem e esteja mais próximo de suas colocações carregadas de humor, seus comentários ácidos e sobre as situações que nos relata no contexto histórico e social em que se passa a história. No entanto, pesa mencionarmos que o personagem faz a narração como se houvesse um interlocutor oculto, o que fica caracterizado em certas passagens do livro quando o narrador se expressa como se estivesse passando aquelas informações a alguém que o ouve: “[...] segundo-oficial, eu? No, Sir.

Note-se a crítica que há no que tange aos diferentes e similares mecanismos de opressão que se mantém firmes, independente do tempo passar, da troca de país em que transita o protagonista, da mudança de políticos nesses locais por quais ele passa.

O protagonista não é um homem que ocupa um alto cargo. Quando consegue embarcar num navio, atua como responsável por fazer a embarcação funcionar, exercendo a função de foguista. Se numa visão metafórica ele poderia estar numa função que o levasse ao inferno, ele trabalha fisicamente numa caldeira, um lugar quente e escaldante, tal qual o destino para o qual ele poderia ser levado.

Um ponto a ser observado é que o livro faz um relato irreverente e expõe de forma crítica como os romances marítimos muitas vezes atraiam as pessoas por uma ideia deturpada do que é efetivamente a vida de alguém que tem que trabalhar num navio.

Uma das passagens do livro é a chegada de Gales à Espanha. Momento em que o vemos encontrar um lugar em que pode viver em paz, depois de ter passado por muitas agruras com perseguições, prisões, interrogatórios, passagens por consulados e ter se amasiado num condado de camponeses quando fugia pela França. A recepção dos espanhóis foi tamanha que os guardas levaram o marinheiro para suas casas e as famílias disputavam umas com as outras para hospedar o homem.

Gales foge da opressão comunitária e passa a vagar pelas ruas de Barcelona, tenta pescar alguns peixes, reflete sobre a vida, até se dar conta de que já estava envolvido com a tripulação do Yorikke, este sim considerado um navio da morte.

Ele aceita a oferta de trabalho, adentra aquela embarcação completamente degradada, e daí pra frente o livro toma um aspecto tenebroso, uma história que nos dá um tom sufocante ante o que o personagem passa no navio.

O Livro II se passa a bordo do Yorikke. As descrições e cenas que Traven constrói do interior da embarcação, dos alojamentos, do trabalho nas caldeiras, do sofrimento dos trabalhadores, da forma como eles precisam ser conduzidos e tudo mais que formam as cenas, é de um realismo que impressiona o leitor.

O trabalho nas caldeiras do navio, como se pode supor, se torna um verdadeiro suplício e ocupa boa parte da narração. Sentimos o calor e a angústia dos homens que trabalham ali naquele espaço diminuto e quente, tendo de desviar entre tubulações que de tão quente podem queimar o corpo.

No Yorikke, Gales renuncia a seu nome e a sua nacionalidade e passa a se chamar Pippip. Se havia se distanciado de seus documentos e se tornado um estranho, se apegar uma identidade que não é a sua é uma forma de se individualizar. Seu objetivo se resume a sobreviver ao trabalho inumano nas caldeiras, onde acidentes terríveis acontecem a todo momento, e a conseguir um pouco de comida para se manter firme.

A amizade que surge entre Pippip e um outro trabalhador das caldeiras, Stanislaw, é um dos momentos em que a narração caminha para um tom de humanidade. Aliás, é a própria noção de humanidade que vai se desfazendo à medida em que vamos compartilhando as agruras e sofrimentos daquela embarcação infernal e como aqueles trabalhadores vivem.

Aos poucos vamos aprendendo que existia uma diferença substancial entre um navio da morte, como o Yorikke e outras centenas de embarcações, e os demais navios tidos como comerciais.

O navio da morte, como o narrador destacou nas primeiras páginas do livro, não se trata de uma história de aventuras no mar, embora a parte final apresente uma forte carga aventureira, com tempestades, ondas gigantescas, naufrágios de embarcações e outros elementos semelhantes, além da própria jornada desse herói proletário que protagoniza a obra.

Pippip e Stanislaw conseguem deixar o Yorikke ao chegarem a um porto em Dakar, o que indica que conseguiram escapar da morte. No entanto, se livraram de um navio da morte apenas para cair em outro, ou pior ainda, foram sequestrados para o Empress of Madagascar, um navio inglês de nove mil toneladas, onde toda a trama do Livro III se desenrola. Trata-se de uma embarcação, cuja razão de existir é naufragar para que a companhia receba o valor do seguro.

A primeira edição de “O navio da morte” é datada de 1926, na Alemanha. No Brasil, foram publicados somente dois livros do escritor, ambos traduzidos a partir do idioma inglês. Quimera apresenta tradução inédita esmerada, realizada por Érica Gonçalves Ignacio de Castro; revisão e preparação de texto foram feitas por Ieda Lebensztayn; e o projeto gráfico tem uma fonte de bom tamanho, espaços e recuos que permitem uma boa leitura; além do posfácio de um dos maiores críticos literários do país, o Professor Alcir Pécora, professor Titular de Literatura da Unicamp/SP. 

O navio da morte foi uma grata surpresa. A publicação pelo Selo Quimera da Editora 7Letras é excelente.



Sobre o autor:

Até hoje ainda não é possível falar com segurança sobre quem é o homem por trás do pseudônimo “B. Traven”. Sabe-se que foi um ator, autor e editor chamado “Ret Marut”, que esteve ligado à revolução anarquista de Munique, em 1919. Ret Marut chegou a ser condenado à morte pelas forças da repressão, mas escapou da execução e conseguiu chegar ao México, onde se estabeleceu e produziu um conjunto de obras de sucesso mundial, entre elas, além de O navio da Morte, O tesouro de Sierra Madre, adaptado para o cinema pelo cineasta John Houston, e vencedor de três Oscar; A Rosa Branca, A rebelião dos enforcados, Macário etc.

Ficha técnica:
Título: O navio da morte
Escritor: B. Traven
Editora: 7 Letras
Edição: 1ª
Páginas: 320
ISBN: 978-65-8957-235-0
Assunto: Literatura e Ficção

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