Vidas secas, do escritor alagoano
Graciliano Ramos, foi publicado originalmente em 1938. A edição objeto da
presente resenha foi publicada pela Global Editora em 2024.
O livro faz parte da segunda fase
do modernismo brasileiro e se caracteriza pelo caráter regionalista e realista.
Esses são dois traços bem marcantes no livro, pois estamos falando de uma
história que se passa no nordeste brasileiro e que apresenta características
próprias daquela região e é bastante realista, pois trata de situação similar a
vivida por muitos habitantes do sertão nordestino.
A obra conta a história de uma
família de retirantes no sertão. A família é composta por Fabiano, Sinha
Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e a emblemática cachorra
Baleia.
O Nordeste é atingido pela seca e
a família está em deslocamento procurando um lugar com sombra para se
protegerem da seca e onde possam obter alimentação e água, elementos
necessários para a sobrevivência.
Eles chegam a uma fazenda
abonada. Sem condições de continuar a caminhada o grupo se instala no local.
Eis que a chuva chega ao nordeste. Depois da chuva, a fazenda renasce, o dono
das terras reaparece e contrata Fabiano, o pai da família, como vaqueiro. A
família passa a viver naquele local, com um tom de esperança que se renova.
Fabiano é um homem que não se vê
como um homem, mas como um bicho. Graciliano demonstra por meio desse personagem
que ante a miséria retratada na obra, a situação de precariedade faz com que o
homem não se sinta humano.
Essa condição para a qual o
personagem é levado o torna também alvo de maior exploração. Mesmo que a
miséria venha pelas condições impostas pela natureza, como é o caso da seca que
provoca a escassez de produção de alimentos e mantém a água ausente, ainda há
quem se aproveite dessa situação calamitosa e tire proveito de quem mais sofre.
Fabiano, por exemplo, quer se
insurgir contra as injustiças que sofre por parte do patrão e de um tal soldado
amarelo, mas como um animal, aceita os maus-tratos, subjugado por sua condição
de homem fragilizado (que não se vê como humano).
Percebe que seus filhos são
perguntadores, crianças curiosas, como é de se esperar de qualquer criança que,
aos poucos, vai descobrindo o mundo. No entanto, o pai não vê isso como algo
positivo: “Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca
ficaria satisfeito”. Fabiano ainda lembra de Tomás da bolandeira, um homem que
muito lia, e por isso não conseguiu suportar a realidade.
O casal divide as tarefas.
Enquanto Fabiano cuida da terra e dos bichos que a família tem, a mulher cuida
da casa e dos meninos. O filho mais novo quer ser como o pai. O menino mais
velho, com sua curiosidade, quer saber da mãe o que é o inferno.
Sinhá Vitória é uma mulher que
nutre o sonho de ter uma cama de couro, pois dorme numa casa feita de varas.
Esse sonho singelo da mulher nos leva a pensar que não há sonho pequeno ou
grande ou imenso, mas que há sonho. O sonho é o desejo de se libertar de algo
que não faz bem, ou almejar algo que nos permita melhorar.
A família segue a vida no lugar e
vai à festa de Natal da cidade. Baleia fica adoentada e Fabiano toma a decisão
de matá-la. Essa é, com certeza, uma das cenas mais impactantes do livro e da
literatura brasileira. Todos aqueles que já leram o livro Vidas Secas sabem o
que se passa com Baleia e se solidarizam com a pequena cadela que acompanha o
casal e os meninos. A cena foi retratada
em filme de Nelson Pereira dos Santos, em 1963, com autêntica sensibilidade.
Interessa-nos observar também que
Baleia é uma cadela, mas que, de certo modo, recebe um ar de humanização.
Principalmente quando, diante da presença de pessoas que não sonham, ela vê a
si mesma num campo repleto de preás.
A família, nessa fazenda, está
vivendo melhor tempo do que no período de seca, mas não tem muito dinheiro e
Fabiano é sempre enganado pelo patrão. Quando tenta reclamar acaba se
resignando, diante da situação que tem vivido. Ele é um homem que enfrenta
alguns embates, mas que costuma se resignar diante dos combates. Abaixa a
cabeça e aceita a sua condição atual.
Tempos depois a família se vê
novamente obrigada a iniciar o processo de migração que a seca lhes impõe no
início da jornada contada no livro.
Interessante observamos que entre
o primeiro e o último capítulo acompanhamos questões cotidianas da vida dos
personagens e a angústias vividas por eles, que são aparentemente sem
relevância, mas que nos levam até a grandeza humana de seus conflitos. O que
foi magistralmente desenhado por Graciliano Ramos.
Pelas considerações que há na
obra, entende-se que a história se passa no início do século XX, o quer nos
permite classificar o tempo utilizado no livro como tempo psicológico, posto
que não há um ordenamento cronológico dos acontecimentos. Eles não são baseados
na linha temporal, mas na linha dos conflitos humanos vivenciados pelos
personagens criados por Graciliano.
O contexto histórico seria o da
República Velha (período compreendido entre 1889 e 1930). Trata-se de um
panorama histórico em que vigorou a política do café com leite, na qual
representantes dos estados de Minas Gerais e de São Paulo se revezavam no poder
do país. Há também, nesse período, uma forte presença do coronelismo, o que
notamos representado no livro pela forma como atua o patrão de Fabiano.
Há uma demonstração de exploração
do trabalhador, pois Fabiano é enganado pelo dono da fazenda, que o rouba nas
contas, cobra preços abusivos pelos mantimentos, além de juros altíssimos.
Situação de exploração que foi representada naquela época e que ainda é
possível encontrar no Brasil real, no país que está fora dos livros ficcionais.
No Brasil, em todas as regiões,
haviam fazendeiros autoritários, com poder financeiro e político, que
interferiam também nas decisões das eleições. Em 1930 houve um golpe de estado
que colocou Getúlio Vargas na presidência do país. Em 1937 ele decretou o
Estado Novo e implantou uma ditadura no Brasil.
O autor utiliza de um narrador
onisciente que conta a história por meio da perspectiva dos personagens do
romance.
O livro é dividido em treze
capítulos. De acordo com Rubem Braga, Vidas secas, é um livro que permite ao
leitor ler os capítulos de modo independente, posto ser um “romance
desmontável”. Todavia, a escolha da ordem dos capítulos por Graciliano Ramos
tem razão de ser, pois confere uma unicidade ao texto, ainda mais se
considerarmos que na narrativa há uma forma de representação da vida das
personagens que seguem um clico, ou uma espiral. Veja-se, por exemplo, o fato
de que a família foge da seca no início e no final do livro.
As características de Vidas secas
são muito marcantes da segunda fase do modernismo, posto que há realismo
social, tem um caráter regionalista, há ausência de idealizações, tem uma
narrativa parcial, na construção da história há valorização do espaço e o texto
apresenta uma linguagem simples.
As vidas se tornam secas pela
aridez provocada pela natureza, mas também pelo sistema que massacra os
retirantes. E não somente isso, há no trabalho de Graciliano Ramos uma
representação do silêncio, da ausência de linguagem e da incapacidade que os
personagens tem de verbalização. Note-se que Baleia chega a ser mais expressiva
do que a própria família representada. Há uma desumanização que acontece pela
fala e pela condição em que os personagens vivem.
É essa brutalidade da vida que
seca diante da seca, diante, portanto, da comiseração e da miséria, que leva o
leitor a abraçar a família de retirantes e se emocionar com sua história.
Sobre o autor:
Graciliano Ramos (1892-1953) foi
um dos maiores romancistas brasileiros. Foi considerado o mais importante
ficcionista da Segunda Fase do Modernismo, ou Modernismo dos anos 30. Seus
romances atingiram a maioridade literária da Geração Regionalista. Embora
tratem de problemas sociais do Nordeste brasileiro, apresentam uma visão
crítica das relações humanas, que as tornam de interesse universal. Seus livros
foram traduzidos para vários países, e Vidas Secas, São Bernardo e
Memórias do Cárcere foram levados para o cinema. Recebeu o Prêmio da
Fundação William Faulkner, dos Estados Unidos, pela obra "Vidas
Secas".
Ficha Técnica:
Título: Vidas secas
Escritor: Graciliano Ramos
Editora: Global
Edição: 1ª
Ano: 2024
Páginas: 140
ISBN: 9.786.556.1254-04
Assunto: Literatura brasileira
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