[Resenha] O lobo da estepe - Hermann Hesse - Tomo Literário

[Resenha] O lobo da estepe - Hermann Hesse

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“Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo da estepe.”

O lobo da estepe, livro do escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), foi publicado originalmente em 1927. Hermann foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, e os seus livros estão entre os mais vendidos e os mais traduzidos da literatura de língua alemã do Século XX.

Os críticos apontam que, apesar da consagração do autor com o prêmio, isso não garantiu a ele seu espaço no cânone literário alemão. Argumentam que falta no texto de Hesse os traços da narrativa moderna. Há críticos que afirmam que a história literária negligencia os livros do autor, alegando que ele tem uma posição um tanto quanto marginal e retrógrada, e que suas publicações são mais próximas de um neo-romantismo do que literatura moderna.

O lobo da estepe, contudo, não se passa numa zona distante da modernidade. A narrativa é situada numa cidade e com uma estruturação mais complexa quando comparado com os outros locais que são usados como cenário nos livros do autor.

A obra conta a história de um indivíduo em crise que se chama Harry Haller. Aos cinquenta anos o personagem passa um período numa pensão localizada em um grande centro urbano. Sua crise deve-se ao conflito primordial que acontece em sua alma. Em choque está o homem com traços eruditos e o seu lado impulsivo. Sua impulsividade faz com que Harry se autodenomine metaforicamente de “lobo da estepe”. O conflito vivenciado pelo personagem ao longo das páginas se torna tão intenso que ele chega ao ponto de cogitar o suicídio.

Harry Haller, o protagonista enigmático do livro não apresenta apenas semelhança com o nome do autor, em razão do uso de dois H’s. O referido personagem é um alter-ego do autor. Hesse passou a escrever o livro quando tinha cinquenta anos de idade, tal qual o personagem que centraliza a história criada. Na obra, a persona do autor aparece diluída entre os personagens que aparecem ao longo da trama.

O protagonista Harry Haller é um intelectual de atos recatados, que tem uma inaptidão social e dotado de pudor excessivo. O protagonista acredita que sua integridade moral está ligada ao fato de que é isolado e consome Goethe (Johann Wolfgang von Goethe, que foi uma importante figura da literatura alemã) e Mozart (Wolfgang Amadeus Mozart, compositor austríaco do período clássico). O seu isolamento advém do fato de que tem aversão à sociedade burguesa e tudo que ela representa.

A narrativa se divide em três partes. A primeira delas se dedica a narrar a chegada do protagonista   na pensão e apresenta a visão desse homem pelo ponto de vista dos proprietários do imóvel, focando especialmente na visão que o sobrinho da dona do imóvel tem sobre Harry Haller. O romance é apresentado primeiramente através de anotações de Harry. Essas anotações foram encontradas no quarto onde morava, pelo sobrinho da locatária. Através desses escritos, ele faz uma breve introdução no Prefácio do Editor. Portanto, leitor, o prefácio do livro já faz parte da história que nos será contada.

“[...] O inquilino, embora não levasse de modo algum, vida ordenada e racional, nunca nos molestou nem prejudicou em nada, e até hoje nos lembramos dele com prazer. Mas intimamente, na alma, esse homem nos perturbou e prejudicou, tanto à minha tia quanto a mim, e, a bem dizer, até hoje ainda não consegui me libertar dele. Às vezes, ainda sonho com ele, e sinto-me profundamente perturbado e inquieto por sua causa e pela simples existência de um ser assim, embora tenha vindo a sentir por ele um verdadeiro afeto."

É já nesse primeiro registro que o leitor vai dimensionar o que pode vir pela frente. Não se trata de um relato linear. Há uma narrativa desarticulada e que se mostra atemporal, já que a história não se sustenta por um enredo cronologicamente marcado.

A atemporalidade também está no fato de que o tema, embora possa se passar numa dada época, está muito mais marcado pela subjetividade dos assuntos que o personagem toca do que pelo significado deles naquele tempo-espaço. A simbologia que há pelos levantamentos que ele faz, ressoam para além do tempo em que ele situa a história, daí o lugar almejado de obra atemporal se faz presente em O lobo da estepe.

Na segunda parte do livro o leitor é levado a mergulhar na visão que o próprio Harry apresenta sobre o mundo. É nessa etapa do livro que conhecemos “O Tratado do Logo da Estepe”, que é um pequeno livro impresso e de autoria anônima que é entregue ao protagonista por um desconhecido.

Trata-se de uma teorização com tom doutrinário sobre uma persona supliciada por um conflito interno na qual se divisa o lobo, responsável por depreciar todas as tentativas de interação duradoura com o mundo externo no afã de persuadir seu lado humano de afastar-se da civilização, pois deseja satisfazer suas vontades de lobo, dentre elas, a de permanecer em solidão serena, e o homem, que é tentado a estabelecer vínculos, em inserir-se na sociedade sem qualquer tipo de reserva. Manifesto que o impacta profundamente e desperta o desejo de conhecer os autores da publicação e de modificar o seu estilo de vida.

Aparece também nessa etapa do livro dois poemas compostos por Harry, o que nos leva a verificar que há uma voz narrativa, mas também é apresentada uma voz lírica desse personagem.



O terceiro ato debruça-se sobre o seu relacionamento com a jovem Hermínia – uma legítima representante da mulher transgressora dos anos 1920, uma geração de mulheres que adentraram aquela década dispostas a romper com o padrão feminino tradicional. É por intermédio dessa personagem que o protagonista conhece Maria, com quem tem um caso e conhece também Pablo, um saxofonista.

Hermínia se propõe a ajudá-lo a se libertar de sua metade lobo o forçando a se submeter por situações que lhe são muito custosas, mas que na verdade se tratam de algo banal aos mais simples de espírito, corriqueiro, como dançar em um baile de máscaras ou relacionar-se amorosamente com uma desconhecida.

Nesse capítulo é convidado a conhecer uma casa de espetáculo singular, “o teatro mágico”, um local orquestrado por um dos amigos de Hermínia e em que passa por uma experiência fantástica. Tanto Hermínia quanto Pablo levam o personagem a concluir o que poderíamos chamar de sua trajetória de aprendizagem.

De outro modo, vamos entender que Hermínia é a versão feminina do protagonista. Note que Hermínia poderia ser o feminino de “Hermann” e ela é um lado mais feliz desse personagem.

Ali ele vivencia situações que o colocam em experimentações com as coisas pelas quais ele tinha aversão. Ele aprende a ouvir jazz, a dançar foxtrote, aceita novas tendências culturais e também passa a aceitar o seu lado lobo.

Observamos que na primeira parte do livro há um detalhamento extremamente rico sobre a personalidade do protagonista, o que leva o leitor a um aprofundamento sobre questões que estão intrínsecas à personalidade do personagem. Essa subjetividade marca a persona do personagem, um homem apegado à tristeza que questiona o sentido da vida, a sua busca pessoal, que parece ser a busca do coletivo. Harry é um homem infeliz.

“[...] Havia aprendido boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida.”

Por vezes temos a impressão de que estamos em contato com um personagem fragmentado, um sujeito desajustado, inapto para encarar as convenções sociais, o que o impulsiona a lançar-se  na programação de seu suicídio, mas que para ele tem uma aparente naturalidade. Ele, portanto, lança questionamento sobre a nossa cultura judaico-cristã.

Aqui me parece também que esse sujeito não é dotado de uma identidade única, mas múltipla, cheia de pluralidades que se mostram em suas inquietações, temores, certezas e dúvidas, que em certos aspectos chegam a ser contraditórias. Ao se questionar sobre a possibilidade da morte, por exemplo, ele trata da vida. Ao se questionar sobre questões filosóficas que estão profundamente ligadas à sua formação cultural ele se insubordina contra as convicções que foram formadas a partir dessas questões filosóficas. Ele não tem apreço pela burguesia, mas se vê numa vida emergido nesse cenário de situações que são próprias dos burgueses e se sente confortável numa hospedagem com toques burgueses. Ele não é afeito ao mágico, mas cede aos encantos da dança e no teatro mágico parece se situar mais próximo da felicidade com Hermínia. E, de modo antagônico, ele vê na infelicidade uma oportunidade de ser feliz. É estranho, é dicotômico, é provocador.

Se falarmos de uma obra autobiográfica, ou ainda que não seja, temos uma ideia de que há sim na história contada alguns traços de semelhança com a vida do autor. Nesse sentido criador e criatura se fundem e se confundem.

Vejamos que tanto o protagonista como o autor tem o nome e o sobrenome iniciados pela mesma letra (H). A ideia do suicídio que é tão presente na vida de Harry também fez parte da vida do escritor alemão que teve uma tentativa de suicídio. Tanto o personagem como o escritor são homens considerados solitários e que se sentem incompreendidos pelo resto do mundo. A personagem feminina que se chama Hermínia tem o nome do autor no feminino. Além disso, Hesse acabou se divorciando e Harry fala desse assunto no decorrer do livro, mencionando a loucura da esposa e de como essa condição o transformou em o lobo da estepe.

O lobo da estepe não é um livro de leitura fácil. Digo que não é um livro para distraídos, pois há nele muitas camadas que podem ser depuradas pelo leitor. Acredito ainda que não seja um livro para se ler apenas uma vez, ele deve ser relido e reavaliado, justamente pela pluralidade de facetas do protagonista. E como é um livro de muitas reflexões, metáforas, dilemas, dicotomias e observações que partem do lado interno do personagem, vale a pena mergulhar mais nesses aspectos.

Foi uma leitura que me surpreendeu, sobretudo pelo desafio de encarar esse protagonista multifacetado e fragmentado que se expõe de modo contraditório ao leitor.



Sobre o autor:

Herman Hesse começou a vida profissional como livreiro, mas idealizando uma carreira literária, que de fato iniciou muito cedo, aos 21 anos, quando publicou suas primeiras poesias. Seu livro Demian foi publicado logo depois da Primeira Guerra Mundial, em 1919. A profunda humanidade e a penetrante filosofia que impregnam seus livros foram confirmadas em obras-primas que produziu posteriormente, entre outras Sidarta (1922), O lobo da estepe (1927) e Narciso e Goldmund (1930), que com seus poemas, contos e um considerável número de trabalhos de crítica valeram-lhe um lugar muito especial entre os pensadores contemporâneos. Em 1946 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Hermann Hesse faleceu em 1962, pouco depois da passagem do seu 85º aniversário.

Ficha Técnica:
Título: O lobo da estepe
Escritor: Hermann Hesse
Editora: Record
Ano: 2023
Edição: 53ª
Páginas: 250
ISBN: 978-85-01-11388-7
Assunto: Literatura alemã

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