[Resenha] A arte de cancelar a si mesmo – Jacqueline Vargas - Tomo Literário

[Resenha] A arte de cancelar a si mesmo – Jacqueline Vargas

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A arte de cancelar a si mesmo, livro de Jacqueline Vargas, foi publicado em 2024. A priori a obra seria publicada apenas em e-book, mas ganhou também a versão física para alegria dos leitores que gostam de se deliciar com a troca de páginas e ter o exemplar físico para manusear e abastecer a estante.


Expor a sua vida nas redes sociais pode ter vantagens, principalmente se você trabalha com produção artística. Hoje, no país, temos inúmeros jovens que saíram do anonimato para a veiculação de conteúdos digitais e que carregam consigo milhões de seguidores. Outros não tem tantos seguidores assim, o que é natural, mas também compartilhar sua vida nas redes.


Os milhões de seguidores acabam também exigindo muito desses jovens, pois há necessidade de uma produção exagerada de conteúdo, a preocupação em manter o elevado número de pessoas que os acompanham, além de uma série de expectativas que são criadas em torno dessa exposição que é feita. Além disso, é necessário dizer que, muitos desses jovens, também acabam ganhando muito dinheiro e isso acaba reverberando na família.


Para uma jovem que foi moldada para trabalhar com isso, podemos detectar um outro ponto que nem sempre salta aos olhos de quem está ali usufruindo do vídeo para entretenimento ou para informação.


A imagem que as pessoas tentam passar nas redes sociais as levam, ainda que involuntariamente, para uma reprodução fictícia do mundo em que tudo ganha um ar de glamourização e de perfeição. É comum postagens sobre momentos felizes, com fotos cheias de filtros, vídeos de momentos descontraídos e de festejos, brincadeiras que parecem tornar a vida uma ode a alegria constante. Tudo isso pode dar a impressão para quem usufrui desses perfis de que não há tristeza na vida ou que o mundo beira a perfeição.


Guy Debord, um filósofo francês, no livro que publicou em 1967 sob o título de “A sociedade do espetáculo”, faz uma análise sobre o poder que as imagens exerciam na sociedade de cultura de massa. A análise que ele fez ainda se apresenta atual. Para Debord, a relação social entre as pessoas é mediada por imagens, o que faz com que a sociedade se torne um espetáculo, querendo produzir imagens positivas e que, por vezes, contradizem o ser.



A arte de cancelar a si mesmo, livro de Jacqueline Vargas, apresenta a história de Maria José, mais conhecida como Majô. A adolescente de 15 anos é famosa e ganha muito dinheiro nas redes sociais. No entanto, aquela imagem que ela transmite, a figura de uma jovem antenada e que faz um vídeo atrás do outro pelo prazer de aparecer, não é a imagem real. Há algo ali que a incomoda e algumas sutilezas acabam aparecendo nas imagens para que tem um olhar mais atento.


A jovem tem a incumbência de sustentar a família e sofre com os dissabores de ter uma mãe narcisista, além de não ter nenhuma amizade próxima. Majô se sente tolhida, não consegue se ver representada pela imagem que transmite para as outras pessoas.


Depois de uma denúncia sobre seu canal e atribulações que ocorrem na relação com a mãe, que envolve inclusive a sua exposição frenética nas redes sociais, a garota resolve desaparecer.


A vizinha Kauane, acompanha a vida de Majô, que mora no mesmo condomínio. Kauane é uma jovem que tem fobia, é introvertida, sarcástica, não gosta de sair de casa.


“Gostar de brincar sozinha parece uma doença. Eu tento ser diferente de mim, mas não levo jeito para ser outra coisa que não eu mesma.”


A YouTuber famosa, Majô, desaparece e desperta uma série de especulações. Aquele sumiço poderia ser sequestro, um golpe de marketing, uma fuga. Kauane acaba descobrindo onde ela está e as duas passam a construir uma relação de amizade improvável, que abarca suas diferenças.


As duas jovens revisitam memórias de infância, compartilham momentos de frustrações e dificuldades, ponderam sobre a existências das redes sociais e como elas afetam suas vidas, falam sobre as descobertas dos primeiros amores e tentam se libertar da vida que é exigida no mundo virtual.


Majô quer ajuda para se manter longe dos pais, sobretudo da mãe, e anseia em colocar um ponto final na vida que tem gravada nas redes sociais, ou seja, quer se cancelar.


A personagem famosa nas redes sociais tem um “dix”, uma espécie de perfil paralelo no Instagram.  A conta que ela tem está registrada sob o nome rouxinoulazul, que pode ser acessada em https://www.instagram.com/rouxinoulazul/. Ali a menina publica poemas e desenhos em aquarela. O perfil de usuário existe e tem posts que a protagonista teria divulgado.


A escritora Jacqueline Vargas construiu personagens que são completos e que apresentam uma série de camadas. Vamos identificar o perfil psicológico de cada um deles e observar que há nuances em suas construções. São personagens inteiros, verossimilhantes e que sustentam a trama a partir de suas observações e inquietações sobre o mundo e sobre o momento que vivem.


Além disso, há no livro o uso de uma série de gêneros textuais, o que torna a experiência de leitura bastante interessante, sobretudo para o público jovem que se verá transitando por diferentes tipos textuais: narrativa em primeira pessoa, narrativa em terceira pessoa, transcrições de vídeos, transcrições de sessão de terapia, textos não verbais, entre outros. Podemos dizer que se trata de uma obra multimídia, portanto em total consonância com o nosso tempo.


A narrativa é fluída, leve e apesar de tocar em assuntos difíceis, inclusive sobre a relação de uma mãe narcisista versus a filha desaparecida, o livro não fica pesado. Há fluidez na escrita e na forma como tais assuntos são tratados. Outrossim, a autora emprega uma linguagem bastante jovem, que tem proximidade com o público-alvo do livro.


A arte de cancelar a si mesmo é um livro que pode ser facilmente utilizado em escolas públicas ou privadas para discussões com jovens, pois tem ali elementos que podem ser trabalhados em aulas de língua portuguesa (incluindo os gêneros textuais), há uma abordagem possível sobre a linguagem (norma padrão versus oralidade), há uma possibilidade de abordagem sobre o uso da internet e as expectativas dos pais em relação aos filhos, entre outros temas. Portanto, é um livro que serve como um convite ao debate entre pais, filhos, educadores.


Jacqueline construiu uma história daquelas que nos deixam uma série de reflexões e que tratam de assuntos em várias camadas. O livro aborda a exposição nas redes sociais, as relações familiares, as consequências do excesso de informações, as descobertas dos adolescentes, as relações de amizade, a obrigação de fazer versus o prazer em fazer, a fobia social, o narcisismo, o conflito geracional, a saúde mental, o limite dos registros de memórias na internet, entre outros.


Interessante observar como a autora consegue tratar de diversos temas e com profundidade, numa trama que nos envolve do início ao fim.


Os cantos que abrem os capítulos também dão ao leitor uma dimensão do que acontecerá em cada um deles, chamando a atenção de quem lê para o conteúdo que será abordado. Nesse sentido, vale dizer que o livro chama o leitor para história. Os capítulos curtos também foram bem delineados, sem interromper a fluidez da narrativa.


A arte de recomendar a si mesmo é uma leitura agradável, impactante, instigante e que recomendo para se entreter e refletir.



Sobre a autora:

Jacqueline Vargas é roteirista com 20 anos de experiência. Adaptou as duas primeiras temporadas da série “Sessão de Terapia” e criou mais três temporadas originais. Trabalhou como consultora dramatúrgica de diversos projetos audiovisuais, como “No mundo da Luna”. Ainda contribuiu para o roteiro de novelas como “Floribella”, “Malhação – Viva a Diferença” (ganhadora do Emmy 2018) e “Terra Prometida”. Assinou os longas-metragens “Querida Mamãe”, “TPM – meu amor”, “Alguém como eu” e “As Polacas”. No mercado literário, lançou “Aquela que não é mãe”, “Valentina – a herdeira da magia” e agora publica a obra infantojuvenil A arte de cancelar a si mesmo. Em paralelo, formou-se em Psicanálise, com foco na abordagem para a adolescência e tem pós-graduação em Filosofia, Psicanálise e Cultura, além de integrar o grupo de analistas “Escutamiga”.


Ficha técnica:

Título: A arte de cancelar a si mesmo

Escritora: Jacqueline Vargas

Editora: Independente

Edição: 1ª

Ano: 2024

Páginas: 242

ISBN: 978-65-00-96949-8

Assunto: Literatura brasileira


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