O novo livro do escritor e
dramaturgo pernambucano Ronaldo Fernandes (@ronfernadis), “Amâncio” (Editora
Paraquedas, 102 págs.), escancara um tema delicado: a solidão do homem
negro homossexual. O personagem que intitula a obra é quem vai a cada capítulo
descortinando trechos da própria história. As memórias são permeadas de
inquietudes e retratam a descoberta e vivência da sexualidade. Cada relato é
atravessado por experiências que por vezes esbarram em violências assentadas no
racismo, machismo e homofobia.
A obra, que nasceu como peça
teatral, apresenta recortes reais e ficcionais de relatos ouvidos pelo autor no
período em que viveu com Amâncio, seu tio. “Por meio das histórias que fui
ouvindo do meu próprio tio e de pessoas que conviveram com ele, pude ampliar o
olhar para a história de tantos homens negros, nordestinos e homossexuais que
sofreram abusos e violências sem que os reconhecessem como tais.”
A ideia de fazer do espetáculo
uma obra literária veio em um momento de fragilidade do autor. “O livro nasceu
num período em que estive com problemas de saúde e precisei me isolar”. E
completa: “Esse isolamento me trouxe perdas, inclusive de amigos queridos que
não entenderam a minha ausência e isso me lembrou meu tio, que apesar de estar
sempre rodeado de amigos, me pareceu solitário na negação da sua sexualidade”.
Ronaldo conviveu com seu
tio Amâncio dos três aos 17 anos, atribuindo a ele uma participação ativa
na construção da própria identidade, ainda que eles nunca tenham conversado um
com o outro sobre a orientação sexual do tio, já falecido. “Esse diálogo que
nunca tivemos em vida, só pode acontecer pela arte: primeiro na peça e agora no
livro”, conta.
Ronaldo Fernandes / Foto: Divulgação |
Por um olhar mais atento e
amoroso para homens negros e homossexuais
“Amâncio” é composto
por 27 histórias que se passam ora em Carpina, Zona da Mata, interior de
Pernambuco, ora em São Paulo, capital paulista. Não há uma linearidade
temporal, a narrativa intercala lembranças desde a infância até a velhice do
protagonista. O autor define esse estilo como romance fragmentado. “Sempre foi
uma característica minha como dramaturgo que acabei levando para a literatura”,
explica Ronaldo.
De maneira corajosa e honesta,
Amâncio narra os próprios anseios, assombros, temores e medos. Há descrições
detalhadas dos desejos e impulsos sexuais do então menino e, ainda, como essas
emoções são deturpadas pela violência real e simbólica ao qual ele é submetido
reiteradamente.
Com destreza, Ronaldo desloca o
leitor para dentro das experiências devastadoras vivenciadas por Amâncio. Cada
capítulo é entremeado por um assunto que se desdobra até alcançar o
acontecimento principal. Essa cadência com a qual a trama evolui envolve
o leitor e o instiga a seguir para a próxima página.
Ao remontar a vida de um homem
negro que era também afeminado, homossexual e morador do interior do nordeste,
o autor expõe as vulnerabilidades às quais o protagonista estava sujeito e
implicitamente evoca um olhar mais atento e amoroso para aqueles que passaram
pelos mesmos percalços. Para Ronaldo, as mensagens do livro podem ser descritas
quase como um processo terapêutico que envolve quatro passos. “Aceitação,
compreensão, entendimento e expurgo”, define.
Ator, dramaturgo e escritor:
as várias facetas de Ronaldo Fernandes
Ronaldo Fernandes é natural de
Paudalho, cidade da Zona da Mata de Pernambuco. Ainda adolescente mudou-se para
Santos, em São Paulo. É bacharel em Administração de Empresas e diretor
de operações em uma empresa de tecnologia. Ao mesmo tempo dedica-se à área
cultural. É pós-graduado em direção e atuação teatral, além de ator, dramaturgo
e escritor.
Na cidade litorânea paulista
fundou a Cia Trilha de Teatro e integra o Grupo Tescom de Teatro, coletivos
artísticos da região da baixada santista. Em sua trajetória no palco e
bastidores, atuou em mais de uma dezena de espetáculos, entre eles: 50+- o Game
da Memória, O Plano, Benjamin - o Filho da Felicidade, Casamento de Sangue em
Santos, Nó Na Garganta, Mac & Beth – Eleição e confusão na Pequeno Rei e
Romeu e Julieta: Um romance de virar a cabeça.
Esse é o segundo livro de Ronaldo
pela editora Paraquedas. Antes, lançou “Avôa”, uma coletânea de histórias
inspiradas na memória do autor com a avó, e agora, pelo selo, lança seu
primeiro romance. “Escrever ‘Amâncio’ foi absolutamente novo”,
declara o pernambucano.
Ronaldo Fernandes / Foto: Divulgação |
Trecho do livro (págs. 52 e
53):
“– Eu adoro canjica – falou,
chegando bem mais perto.
Pude sentir o calor do seu
corpo.
– Munguzá! – corrigi.
– Pelo que eu sei, o nome
dessa comida é canjica.
– Canjica é aquela ali. –
Apontei para a travessa com
canjica.
– Aquilo é curau.
– Curau?
– Sim. Curau.
– Já vi que você não é daqui.
Deve ser de São Paulo.
– Sou de São Vicente.
– Veio para o São João?
– Sim.
– E tá gostando?
– Muito. Principalmente das
comidas.
– Vai voltar chamando canjica
de munguzá – disse eu,
rindo.
– E curau de canjica –
respondeu ele, rindo também.
– Você aprende rápido, hein?
– Depende do professor.
– Nem sabia que eu era
professor.
– Pois é...
– Qual seu nome?
– Roberto. E o seu?
– Amâncio!
– Amâncio, posso falar uma
coisa no seu ouvido?
– Nossa, mas já quer falar no
pé do ouvido? – falei com
espanto e rindo.
– A oportunidade faz a hora. E
tá muito barulho aqui.
Quase não estou te escutando.
– É o forró.”
Adquira “Amâncio” pelo site da
editora Paraquedas: :
https://www.lojadaclara.com.br/amancio-ronaldo-fernandes
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