Você me espera para morrer? é o título
do livro escrito por Maria Fernanda Elias Maglio e publicado pela Editora Patuá
(2023; 184 páginas).
Trata-se de uma obra que conta a história de duas irmãs gêmeas: Ilana e Aline. Na infância há um pacto firmado entre elas. O
pacto selado é para que uma espere a outra para morrer. Isso acontece depois de
assoprarem uma vela de mentira colocada sobre um bolo de barro.
“Por que
você pediu aquilo, Line, da gente morrer igual? Aline ri, foi só uma coisa da
minha cabeça, Lana, bobeira. Ilana diz, eu gostei, isso de uma morrer só quando
a outra morrer. Ilana quer explicar, mas não consegue, só entende que gostou.
Combinado, Line, quando eu morrer você morre também? Tá combinado, Lana, só não
vai morrer agora. As duas riem e Aline convida de novo para pular amarelinha, e
dessa vez Ilana aceita.”
Aline, no entanto, parte para o
exterior e a irmã faz anotações como se fossem cartas, enquanto a espera (não
sabe se ela está viva ou morta, ou o que aconteceu para que ela sumisse da
cidade, embora tenha suas suspeitas). É nesse conjunto de memórias e de
vontades de um novo encontro entre as duas, que Ilana vai apresentado a
história ao leitor.
A narração se mescla entre Ilana
- em primeira pessoa -, e um narrador onisciente que vai trazendo luz sobre a
relação das duas personagens, conduzindo o leitor desde a infância até a fase
adulta das mulheres.
Quando pequenas, as irmãs são
atormentadas pelo abuso realizado pelo pai, que as observa e se toca enquanto
elas dormem. Uma relação que vai se demonstrando para o leitor não de modo
explícito, mas pelos gestos e ações que são narrados.
Essa imagem que é formada pelos
relatos de Ilana sobre o que acontecia com a irmã, vão se juntando como um
quebra-cabeças de memórias, ao passo que esse comportamento do pai provoca na
filha uma repulsa por ele, incluindo até o desejo de que a morte, para o homem,
seja breve.
“Ilana
torce para que para que seja tudo verdade: que tenha matado um homem, uma
mulher, um bebê de barriga, porque assim, com muita maldade, o pai vai ser
preso e não sai da cadeia nunca mais. Melhor ainda é se tiverem matado ele,
chutado barriga, pernas, cabeça, arrebentado tudo, porque assim, morrendo
muito, não volta nunca mais.”
Além da questão abjeta do abuso,
uma provocação se apresenta aos leitores ao observar o papel desempenhado pelo
pai dessas jovens. Sua presença evoca uma representação arraigada do
patriarcado, onde sua influência se estende sobre o domínio da casa e a
trajetória de vida dessas mulheres.
Ele não chama pelo nome nem a
esposa, nem as filhas. Sob essa ótica, ele não apenas desempenha um papel de
autoridade, mas também exerce um controle significativo sobre os destinos e as
escolhas das filhas, delineando as complexas dinâmicas que permeiam as relações
familiares. Sem contar que há uma dominação provocada pelo abuso. Machismo e
crime se escancaram na história desse pai.
Essa reflexão suscita
questionamentos sobre as estruturas de poder arraigadas e como elas moldam as
experiências individuais dentro desse contexto específico. Inclusive, o pai
exerce um poder que se revela em gestos e olhares, não precisando o homem
expressar uma só palavra. Fica evidente ao leitor uma relação de recorrente
violência doméstica que se instala naquele ambiente e, logicamente, isso afeta
a construção, o desenvolvimento das duas personagens femininas (Aline e Ilana).
Desenvolvimento aqui se refere ao modo com as personagens são moldadas por suas
histórias.
Ilana, ao se relacionar com Jane,
o pai de sua filha, parece repetir uma história pregressa. O companheiro não
demonstra pela filha qualquer interesse e, quando parece despertar para o papel
de pai, já é tarde demais.
“[...]
Tive vontade de falar para ele, não tem bicho inocente, Jane, nem galinha, nem
sapo, nem pessoa. Todo mundo traz uma culpa que não é da gente, mas passa a ser
[...]”
A narrativa constrói uma vívida
imagem de uma situação doméstica que decerto acontece em muitos lares
brasileiros. As linhas da história que nos é contada se entrelaçam
intrinsecamente com o ambiente familiar em que aquelas personagens vivem. O
cenário que se delineia é composto por cenas cotidianas, permeadas pelos
meandros de acontecimentos no lar, pelas pessoas que por ali passam e pelas
dinâmicas que são realizadas no seio da família.
A trama, de forma significativa,
transita por entre as barreiras familiares, destacando a importância do
ambiente doméstico como palco central para o desdobramento dos eventos narrados
no livro. Está tudo ali, no ambiente e nas relações. É nesse contexto íntimo
que os personagens se revelam e as vinculações se desenvolvem.
O enredo parece despretensioso no
início da narração e aos poucos vamos percebendo a potência da trama criada por
Maria Fernanda, bem como os assuntos mais espinhosos vão aparecendo: a relação
do pai com as filhas, o pensamento em se livrar do pai, o pensamento sobre a
possibilidade de suicídio, o suicídio que se consuma, as mortes que ocorrem, a
separação das irmãs, os fatos que abalam a família e o que poderia abalar se
viesse à tona.
Vamos percebendo como Maria
Fernanda habilmente sabe lidar com a tessitura do texto. Há, sem dúvida, um
tratamento muito próximo da oralidade na narrativa empregada, sobretudo quando
a narração se firma em primeira pessoa pela voz de Ilana. Há um trabalho feito
com a linguagem na composição da obra, tanto na narração que se dá de forma
onisciente, como na narração por Ilana. Nesta, observamos claramente que há uma
particularidade vocabular, própria de oralidade, e isso torna a personagem
ainda mais verossimilhante.
Maria Fernanda consegue se expressar
de forma contundente, com uma narrativa gostosa de ler e cuja tessitura do
texto foi bem trabalhada. As palavras usadas, os encaixes das frases, a
sonoridade que há no texto, corroboram que há ali um trabalho de lapidação do
texto, um olhar de uma autora que, para além da história contada, pensa na
maneira como conta a história.
Há certo lirismo na tristeza que
é narrada. Apesar de abordar assuntos que vão sendo construídos na família, há
um ponto que intrinsecamente é tratado, a solidão. Há um tom de algo sofrível
na vida de Ilana. O texto do livro é fluído e a linguagem assume um papel
importante na história contada pela escritora.
“[...] mas a vida é assim mesmo, todo mundo tem que
passar tristeza para ter alegria de novo.”
Interessante observamos que temos
duas personagens bastante completas. Elas não são rasas e tampouco revestidas
apenas de uma dimensão, são tridimensionais. A história fala sobre amor, mas
também expõe aquelas rachaduras que há em toda história humana. Há um retrato
de um abuso que é revelado ao leitor, há o ódio nutrido contra o pai por uma
das filhas, há a dúvida sobre os motivos que levaram uma das irmãs a se afastar
da família, há dores que são carregadas pelo luto, pelas perdas materiais e
imateriais.
A família de Ilana e Aline levam
ao pensamento sobre como construímos parentescos na sociedade, para além da
questão ligada meramente pelo fato de pai e mãe terem gerado um filho. Elas têm
muito mais proximidade e identificação com os tios, que também são mais bem
quistos por elas, do que os próprios pais.
Ilana, de certa forma, deposita
nos seus escritos, feitos em um “caderno com a cara branca da Hello Kitty”
uma forma de esperança, tanto de espera pela irmã, como de esperançar pela
conexão que as une. É um estímulo para viver por meio dessa espera, mesmo que
haja a distância.
O livro não é linear. A história
não é contada de forma cronológica, posto que há nos escritos e na visão do
narrador onisciente as idas e as voltas dos fatos ocorridos nas vidas das
personagens. Observe o leitor que cada capítulo tem como nome a idade em que as
personagens se encontram: nove, doze, dezoito, vinte e nove, por exemplo.
Começa com a visão do narrador seguido pelo texto na visão de Ilana.
Costumo dizer que gosto dos
livros que me dão uma machadada na cabeça, ou seja, que me levam a reflexões,
que me atordoam pelos assuntos que tratam, que me encantam pela construção do
texto, que mexem comigo por motivos subjetivos, mas que me sacodem. Você me
espera para morrer? com uma história que caminha na linha tênue do lirismo e da
crueldade foi assim.
Quando falo de crueldade, estou
me referindo ao fato de que há temas espinhosos e que são apresentados de forma
crua e impactante. As personagens criadas por Maria Fernanda são pessoas que
com suas dores e perdas vão seguindo seu percurso de vida e nos levando junto,
carregados com o tanto de emoção que há em suas histórias. Elas nos envolvem e
nos arrastam para dentro das páginas do livro.
Você me espera para morrer? é,
sem dúvida, um livro arrebatador, uma machadada.
Sobre a escritora:
Maria Fernanda Elias Maglio
nasceu em Cajuru-SP, em agosto de 1980. É escritora e defensora pública,
trabalha na defesa de pessoas pobres em cumprimento de pena. Publicou pela
Editora Patuá: Enfim, imperatriz (Prêmio Jabuti 2018), 179.
Resistência (Prêmio Biblioteca Nacional 2020) e Quem tá vivo levanta
a mão (finalista dos prêmios Candango e Oceanos 2022).
Ficha Técnica:
Título: Você me espera para morrer?
Escritora: Maria Fernanda Elias Maglio
Editora: Patuá
Edição: 1ª
Ano: 2023
Páginas: 184
ISBN: 978-65-5864-574-0
Assunto: Literatura brasileira
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário.