Olhai os lírios do campo,
livro de Erico Verissimo, se tornou um marco na carreira do escritor. O romance
foi publicado originalmente em 1938, quando virou um recordista de vendas entre
as obras do autor. A segunda edição, que foi publicada em julho de 1938,
dois meses depois da primeira, conquistou uma média de vendas de 70 exemplares
por dia, nas livrarias porto-alegrenses. É, sem dúvida, um número bastante
expressivo para a época.
A edição que serviu de objeto
da presente resenha foi publicada pela Companhia das Letras em 2005 (4ª edição,
282 páginas). O livro faz parte da Segunda Geração Modernista, fase da
literatura brasileira compreendida entre o período de 1930 até 1945. Também
chamada de Geração de 30, a referida fase foi marcada por consolidação de
ideias modernistas, que adivinham daquilo que foi apresentado na Semana de
1922.
As principais características
da segunda fase do modernismo foram: influência do realismo e romantismo;
nacionalismo, universalismo e regionalismo; apresentação de realidade social,
cultural e econômica nas obras; valorização da cultura brasileira; influência
da psicanálise de Freud; temas cotidianos e linguagem coloquial; e, na poesia,
uso de versos livres e brancos.
Quando da publicação do livro,
apesar do sucesso, muitos críticos não o receberam com bons olhos e há
indicações de que o autor chegou a ser considerado um escritor de segunda
linha. Para o crítico Antônio Candido isso aconteceu após o entusiasmo do primeiro
momento, quando Érico ainda se estabelecia como um autor modernista.
O livro foi lançado num
período turbulento. Em 1939 começava a 2ª Guerra Mundial, que terminou em 1945
e, no Brasil, vigorava o Estado Novo. Havia uma ascensão do nazifascismo. Era
claro que Erico não militava no ativismo político, isso quer dizer que não
exigia a revolução social e publicava livros, cujos temas não incentivavam
transformações dos status da época. De outro modo, pode-se verificar que com as
invasões nazistas e a preocupação em torno da segunda guerra, as pessoas
poderiam pedir por ficções que servissem como um escapismo.
No livro, Verissimo incluiu
discussões políticas, mas se atém a Europa. Sobre o Brasil não há discussão em Olhai
os lírios do campo. Supõe-se com isso que o autor não queria criar atritos
ou atrair a atenção para si ao criticar qualquer ação ou postura do governo de
Getúlio Vargas, que, um ano antes, havia decretado o Estado Novo.
Olhai os lírios do campo é um
romance urbano, embora os personagens da cidade ainda apresentem alguma
manutenção de hábitos interioranos. O livro narra a história de Eugênio, um
rapaz que tem uma família humilde e que sente vergonha de sua família e do fato
de ser pobre. A mãe e o pai, apesar de ser de baixa renda, possibilita que ele
tenha estudos em ótimos colégios, chegando a formar-se em Medicina. De outro
modo, Eugênio recebeu a possibilidade de estudar em detrimento do irmão
Ernesto.
Eugênio é um tipo de pessoa
que não quer igualdade, que não quer lutar para que todos alcancem sucesso
pessoal e/ou profissional. Não. Ele deseja e almeja ser o melhor, ser superior aos
outros. Portanto, ele demonstra na primeira parte do livro ser um homem egoísta
e que não consegue se perceber desse modo. Ele é individualista.
Poderíamos dizer que ele é
assombrado pela pobreza, mas não, ela não o assombra, o que o assombra é o fato
de estar numa posição que, para ele, significa inferioridade.
“Sua alma sensitiva registrava
com exagerada precisão os assaltos do mundo exterior, ressentia com aguçada sensibilidade
os golpes que os outros deliberada ou inadvertidamente lhe dirigiam. Ia, assim,
ficando com uma visão de formada do mundo.”
As passagens em que ele tem
vergonha do pai são aquelas em que ficam mais evidentes essa postura do
personagem. De certa forma, ele culpa o pai alfaiate pela pobreza. Pouco
importa os sentimentos do pai, importa a ele não ser reconhecido como filho
daquele homem, não passar por situações vexatórias (em sua visão) e não ser
achincalhado por ser pobre. A pobreza, portanto, não é um assombro que diminui
suas oportunidades, mas um mal que o torna menor (?). Ele é dotado de um complexo de inferioridade.
Na formatura do curso de
Medicina ele conhece Olívia, uma jovem simples, que tem uma sensibilidade
aguçada, bom-senso e bastante equilíbrio em suas considerações. Ela, “duma
estranha beleza”, se aproxima de Eugênio e se torna uma pessoa que traz
segurança para o jovem, que pode contar a ela os seus conflitos. Ao lado de
Olívia ele sente que pode expressar seus pensamentos e ser quem é, sem máscaras.
Os dois vão trabalhar no Hospital do Coração.
Olívia é uma personagem
interessante e que tenta mostrar para Eugênio que a felicidade não depende de
dinheiro ou de sucesso, duas coisas que o rapaz almeja. A felicidade, na visão
de Olívia, depende da boa consciência, de fazer as coisas que são consideradas
corretas e de servir o próximo.
Vale observamos que Olívia,
apesar de ser uma personagem um pouco inverossímil e que pode ensejar nos
leitores uma impressão de uma pessoa de alma bondosa demais, aparece na obra
como uma mulher que está à frente de seu tempo. Na época em que se formou não
era comum mulheres serem médicas. Durante muito tempo a Medicina foi uma área
ocupada pelos homens e quando as mulheres atuavam eram relegadas a funções
secundárias.
Olívia passa a cursar medicina
no período histórico em que as mulheres começavam a ser admitidas nas
universidades, mas ainda enfrentavam dificuldades, tais como preconceitos e
discriminações. Portanto, ela é uma figura de força no livro de Érico Veríssimo,
embora seja uma personagem que aparece como uma figurante apagada com o único
propósito de despertar o pensamento de Eugênio.
Eugênio e Olívia se envolvem
amorosamente, no entanto ele nunca a assumiu verdadeiramente. A jovem Olívia
vai trabalhar numa cidade do interior, e depois que a moça parte, Eugênio acaba
noivando com outra mulher, Eunice, uma jovem rica, afeita aos estudos de
psicanálise de Freud, filha de um empresário.
Obviamente está apresentado o
interesse de Eugênio. O interesse em casar-se com ela é puramente financeiro,
uma forma dele ascender socialmente.
“O dinheiro é uma coisa nojenta.
Um sujeito decente não se escraviza a ele.”
Eugênio é, sem dúvida, um
alpinista social. Interessante observar aqui que temos um homem ocupando essa
posição que, muitas vezes, é retratada por uma mulher nesse papel, tentando
ascender na vida por meio de um casamento vantajoso financeiramente.
Quando Eugênio está no seio da
família de Eunice, ele é tomado de uma visão espelhada, porque ele vê ganância,
arrogância, soberba e prepotência que passam a incomodá-lo. Ele vê sua postura
espelhada naqueles que pertencem a alta sociedade. Esse incômodo surge e há uma
percepção de que a aflição do personagem não era em razão de sua posição
social, mas que fosse de algo mais profundo, que estivesse num plano que suas
perturbações e confusões pessoais não o permitissem acessar de forma racional.
O romance criado por Erico
Verissimo é dividido em duas partes. Uma delas é narrada em forma de flashback,
em que as memórias de Eugênio surgem durante uma viagem que ele faz até Porto
Alegre, quando parte para atender ao pedido de Olívia que está doente em um
hospital. A outra parte, que vai se entremeando com as de flashback, contam a
história presente de Eugênio.
No percurso, ele lembra do
casamento infeliz que tem com Eunice, em sua atuação que não é mais como
médico, vez que passou a trabalhar com o sogro e lembra de uma filha que tivera
com Olívia, Anamaria, que sempre foi cuidada pela mãe. Olívia morre e Eugênio
toma a decisão de abandonar Eunice e se dedicar à criação de Anamaria.
Durante o casamento que tem
com Eunice acaba se envolvendo com outra mulher, uma amiga da esposa. A amante
parece dar ele uma aparente utilidade, pois no mundo dos ricos, que ele tanto
almejou, parece sentir-se inútil.
Eugênio volta a ser médico e
passa a trabalhar com pobres, como sempre fez o Dr. Seixas. Em meio a esta
mudança parece que o protagonista Eugênio encontra o seu estado de espírito
mais equilibrado.
A propósito, Dr. Seixas é um
personagem notável. Médico experiente, ele tem um tom idealista, pois abre mão
dos ganhos financeiros e fez de sua profissão uma missão pessoal para ajudar o
próximo. Outra bondade exagerada colocada por Veríssimo na obra.
O personagem médico faz um
contraponto interessante com Eugênio, pois ao se lançar na sua missão a vida
lhe traz amarguras e problemas financeiros. Entre os extremos, ou seja, entre
ele e Eugênio talvez encontremos uma posição do que deveria ser o equilíbrio
necessário para viver sem lançar mão dos ideais.
Olhai os lírios do campo é um
livro que tem simplicidade. É uma história que segue uma cartilha básica, que
não tem grandes reviravoltas, que segue uma trama sem sobressaltos e apresenta
personagens por vezes questionáveis.
A obra indica que tudo pode
estar mais perto do que imaginamos, dentro de cada um.
Outro fator importante de
mencionar é que a história, apesar de situada em Porto Alegre, não se limita a
tais fronteiras. A história de Eugênio Fontes encontra espaço em outros lugares
do Brasil, porque são questões que estão ligadas à humanidade, aos interesses
humanos e a formas como algumas pessoas agem na sociedade para conseguir o tão
almejado status.
O livro tem um tom moralista
de formação judaico-cristã, algo que pode apetecer bastante e atender ao gosto
de uma classe média religiosamente católica. Há que mencionar que, inclusive, o
título do livro alude a uma frase bíblica que está presente no Sermão da
Montanha, contida no Evangelho de Mateus:
“Olhai os lírios do campo;
como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo
Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.”
Na obra, essa frase é dita por
Olívia e Eugênio em momentos de aflição e desespero. Esse recurso traz aos
personagens um tom moralista, de vertente religiosa e de certo modo até
maniqueísta dos personagens, sobretudo de Olívia, que é uma figura, como dito
anteriormente, de extrema bondade e resignação. No entanto, não dá para dizer
que isso torna o livro ruim. Faz sentido dentro da proposta da obra e a
história se sustenta, mas não a tira de sua quentura morna e deu sabor insosso.
Um dos grandes méritos de
Erico Verissimo é conseguir ter uma história que parece uma novela, com um tom
melodramático, mas ainda assim conseguir deixar uma reflexão que pode ser vista
como abrangente e até profunda, posto que os personagens as problematizam ao
longo da trama.
Mesmo os personagens
secundários, tais como o capitalista Cintra, que é pai de Eunice, o Dr. Seixas
(médico benevolente), o casal Falk, Filipe Lobo (engenheiro que é obcecado pela
construção do maior edifício da América do Sul – o Megatério), Isabel (casada
com Filipe), Dora (filha de Filipe que é infeliz pelo fato de o pai não
permitir que ela namore), Simão (judeu pobre que é enamorado por Dora) são
personagens interessantes de se observar, ainda que algumas questões tratadas
nessa camada secundária da obra, não acrescentem mudanças na história central e
poderia, sem dúvidas, terem sido editadas. Um exemplo disso, é a obsessão de
Filipe com a construção do Megatério.
O livro tem e não há como
negar, uma boa escrita, relevância na literatura nacional, sensibilidade do
escritor nos temas que trata, mas a história tem um tom dramaticamente monótono,
mas também é capaz de despertar reflexões sobre os valores da sociedade.
Sobre o autor:
Erico
Verissimo nasceu em 17 de dezembro de 1905 em Cruz Alta, no interior do Rio
Grande do Sul. Trabalhou como bancário, balconista de armazém e farmacêutico
até se mudar, aos 25 anos, para Porto Alegre. Na capital gaúcha, foi redator,
diagramador e ilustrador da Revista do Globo. Autor de uma obra extensa e
marcante, foi também tradutor de livros como Contraponto,
de Aldous Huxley.
Morreu em 1975, antes de
concluir o segundo volume de suas memórias, Solo
de clarineta, publicado postumamente.
Ficha
técnica:
Título:
Olhai os lírios do campo
Escritor:
Erico Verissimo
Editora:
Companhia das Letras
Edição:
4ª
Ano:
2005
Páginas:
285
Assunto:
Literatura brasileira
ISBN:
978-85-359-0609-7
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