Pages

20 junho 2024

[Resenha] Selvagem - Marília Passos

 


O tédio e o desencantamento de um casamento que se resume a poucas trocas de palavras e muita indiferença, levam Mariana - uma médica obstetra - a se candidatar para atuar com os Médicos Sem Fronteiras no Sudão do Sul.


“Quantas brigas, desentendimentos e falta de interesse pela vida um do outro foram necessários para a construção daquele silêncio?”


Ela já tinha tentado atuar uma vez na instituição, em outro momento da vida, mas acabou desistindo. Agora, tempos depois, com um casamento fadado ao fim, um filho e uma vida sem sentido, ela se lança novamente nessa jornada.


Sudão do Sul, o país para o qual ela se desloca, é localizado no nordeste da África. Trata-se de um território abalado pela guerra civil; um lugar subdesenvolvido, com elevado nível de pobreza, em que a maior parte da população depende das atividades de agropecuária para subsistência e que dispõe de uma infraestrutura precária. Esse é o cenário em que se desenrola a história do livro Selvagem.


No entanto, mais do que o país, o que muito se aproxima dos personagens são as cenas de horror que são vivenciadas nos acampamentos da instituição Médicos Sem Fronteiras.


Marília Passos, a autora do livro que foi finalista do Prêmio Jabuti, foi corajosa ao construir uma história de romance que é ambientado em meio a um cenário de caos em um país em plena guerra civil, onde as tribos se atacam, estupram, matam.


Os Médicos Sem Fronteiras, a instituição na qual a protagonista vai atuar, foi criada em 1971, na França, por jovens médicos e jornalistas. Se trata de uma organização humanitária internacional que leva cuidados de saúde para pessoas afetadas em crises humanitárias e chama a atenção para as dificuldades que são enfrentadas pelos pacientes atendidos.


Vivendo num ambiente de muita tragédia, em que as dores dos outros também reforçam as dores da própria médica, Mariana acaba se envolvendo com Nino, também médico, mas um homem que tem um comportamento indomável. Apesar de ter uma atuação brilhante na medicina e um olhar diferenciado para o mundo, o homem parece, de certo modo, voltado para si quando se trata de relacionamentos.


É com ele que Mariana vê a possibilidade de enxergar as coisas presentes naquele país com um olhar diferenciado.


“[...] Não julgue nunca uma cultura sob o olhar de outra cultura. Isso que você viu hoje, para a gente, é inimaginável. Mas pense que essas tribos estão há séculos atacando umas às outras. É duro, mas eles sabem sobreviver a isso.”


Todavia é essa paixão avassaladora que a coloca também em contato com suas fragilidades Principalmente, quando ela toma conhecimento de que não é e pode nunca ser, a única mulher na vida de Nino.


“Do mesmo jeito que ele havia me resgatado de minhas tristezas, poderia me devolver a elas de forma trágica.”


Além das questões voltadas ao coração, como a paixão que sente por Nino, Mariana tem que lidar com a rotina pesada no acampamento médico. Por ali ela tem que realizar partos complicados e exaustivos, tratar de mulheres que chegam profundamente machucadas após atos de violência sexual, tem que lidar com a dor, a tristeza e a morte.


Mariana, em dado momento, tem a atenção tomada pela relação que Nino tem com uma outra médica, o que cria nela certa instabilidade e uma competição que traz a ela a constatação de que ser única não deve ser o seu anseio. E a médica também é tocada pela proximidade que Nino tem com um menino nascido naquele país.


Selvagem, escrito por Marília Passos, publicado pela Editora Labrador (2022), é um livro que arrebata o leitor e nos coloca no cerne de uma relação amorosa que tenta se construir e que nasce durante a atuação dos dois médicos em meio a uma tragédia humana.


Escrito em primeira pessoa, portanto narrado pela protagonista, nós acompanhamos a sua jornada, em momentos que vão de sua história pessoal para o mundo e do mundo que a cerca para suas inquietações internas.


Mariana, ao tentar fugir de sua vida monótona, se lança numa experiência mais pelo desejo de se encontrar ou se distanciar daquilo que vivia no momento, do que por um objetivo pessoal.


Ser Médica Sem Fronteira não era o escopo do seu projeto de vida, mas se torna uma opção para se encontrar ou se distanciar daquilo que tanto a aflige. Note que, logo no início do livro, a personagem expressa que Nino foi a coisa mais importante que aconteceu em sua vida e que ela sabe que, mais cedo ou mais tarde, ele poderia partir. Porém, esse homem a tirou de uma vivência mecânica.


“Uma guerra civil, vidas destroçadas e a tristeza das pessoas que eu atenderia serviriam de alívio do meu próprio sofrimento. Conviver diariamente com tragédias verdadeiras me parecia a melhor escolha. Do contrário, no Brasil, no conforto da minha vida, talvez não saísse da cama.”


Morna era a vida que levava ao lado do marido. Um homem que parecia inabalável diante das movimentações proporcionadas pela vida. Uma pessoa dotada de certezas que o faziam não se movimentar. Acomodação talvez seja a palavra que melhor defina o marido de Mariana.


Em seu trabalho, a médica conhece os horrores de mulheres e meninas que são violentadas, estupradas, e que passam por situações de extrema vulnerabilidade. Naquele ambiente inóspito, selvagem – pela natureza humana e pela condição social e política, – ela conhece alguém que desperta desejos. Aquele desejo que ela não sentia em seu casamento, repleto de ausências e de solidão.


Ao se envolver com o médico Nino ela começa a descortinar uma vida que não conhecia. Ao mesmo tempo em que a paixão desperta em seu coração, apesar da rotina extenuante e da maneira como aquele cenário se apresenta no acampamento, ela consegue observar o mundo de um modo diferente. O olhar do outro a faz perceber-se nesse cenário de tragédia humanitária.


Ela também faz um mergulho para dentro de si, se reconhecendo ante aquilo que a atormenta. O amor que sente por Nino é, antes de tudo, uma possibilidade de reencontro que ela faz consigo.


A escrita de Marília Passos é fluida. O texto enxuto é um convite ao leitor. A obra é gostosa de ler e queremos saber mais sobre a situação do casal e o que vai acontecer com Mariana naquele ambiente inóspito e com a relação que está construindo com Nino. Ao longo da história, também pensamos sobre o que acontecerá com o marido de Mariana, que ficou no Brasil com o filho; e como essa outra relação será tratada.


A ambientação, o pano de fundo histórico do Sudão Sul, a presença da guerra civil, a violência (sobretudo contra mulheres) e a precariedade tornam a história de Selvagem um elo entre a sensibilidade de uma relação que pode ser construída, as vivências que fazem com a protagonista mergulhe para dentro de si e a crueza do mundo que os cerca. Metaforicamente, podemos pensar que há flor onde há espinhos.



Sobre a autora:

Marília Passos é autora de quatro romances, além de ter colaborado em coletâneas de contos e roteiros de séries e filmes. Natural de Campinas, mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar teatro, dança e literatura, onde vive atualmente com o marido e os três filhos.


Ficha Técnica:

Título: Selvagem

Escritora: Marília Passos

Editora: Labrador

Edição: 1ª

Ano: 2022

Páginas: 208

ISBN: 978-65-5625-274-2

Assunto: Ficção brasileira


Um comentário:

Deixe aqui seu comentário.