Menino de Engenho, foi o primeiro livro do escritor José Lins do Rego, publicado orginalmente em 1932. O livro foi custeado pelo autor e quase todos os exemplares foram vendidos. Logo, o escritor foi aclamado pela crítica que o exaltava e recebeu prêmio da Fundação Graça Aranha.
A edição objeto da presente resenha foi publicada pela Global Editora (2020, 142 páginas) e tem um texto de apresentação de autoria de João Cezar de Castro Rocha.
Na década de 1930 alguns escritores, que eram considerados da segunda fase do modernismo, levaram suas obras por caminhos regionalistas. Assim, eles buscaram retratar em suas obras a vida simples com um forte tom realista.
José Lins do Rego é apontado nos livros sobre literatura, como um dos principais representantes do regionalismo nordestino e está entre os escritores que optaram por uma literatura regionalista descontraída e com tons intimistas, o que, obviamente, não exclui o uso de representação de mazelas sociais vividas nos engenhos da época em que se passa a trama criada pelo escritor.
Menino de Engenho é obra importante na história de José Lins do Rego, posto que após sua publicação, seguiram-se outros livros do autor paraibano que foram denominados como livros do “Ciclo da Cana de Açucar”, obras nas quais o autor gravou um retrato do fim dos engenhos que foram aos poucos sendo substituídos pelas usinas.
O livro é narrado por Carlos, que na fase adulta, revela-nos a sua história quando menino. Os eventos descritos são os de sua vida dos 4 aos 12 anos de idade. Em certo momento o menino muda de Pernambuco e vai morar no engenho que pertence a seu avô materno José Paulino, na Paraíba.
O livro é narrado em primeira pessoa. Quando menino, Carlos perdeu a mãe aos quatro anos de idade e teve o seu pai preso. Há uma demonstração de conflito existente entre os genitores de Carlos, o que deixa claro ao leitor uma relação de patriarcado e violência. O pai do garoto também tinha conflitos com o sogro, daí o fato de o menino não ter visitado o engenho até o exato momento em que tivera que mudar para o local. O pai de Carlos não é nomeado do livro.
Tia Maria, irmã de sua mãe, é a pessoa que o recebe no engenho e assume o papel de uma segunda mãe. “Tia Maria tomava conta de mim como se fosse mãe”, nos conta o protagonista e narrador. Ali, na fazenda Santa Rosa, o menino conhece o engenho, vê as plantações de cana, toma conhecimento sobre o maquinário existente no lugar. Ele se encanta com todas as possibilidades que vê nesse novo lar. Carlos faz amizade com os primos e passa os dias brincando na lama, fazendo travessuras próprias de crianças e nadando no rio.
Na infância, além da perda da mãe, ele vivencia outras perdas. A perda de sua mãe é uma marca presente ao longo da narrativa, pois ele evoca a tristeza de não tê-la por perto, principalmente nos momentos mais difíceis que tem que encarar.
O autor retrata por meio desse personagem a vida no nordeste brasileiro. Vale mencionar que o livro é uma ficção autobiográfica e, embora tenha alguma inspiração na vida do próprio autor, não se trata de um livro de memórias biográficas.
Philippe Lejeune, no livro O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet, publicado pela UFMG, assim afirma na página 25: “Esses textos entrariam na categoria do “romance autobiográfico”. Chamo assim todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razão de suspeitar, a partir das semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la.”
Há na narrativa de Rego, ainda que de forma sútil, uma criticidade ou a exposição de situações que eram vivenciadas nos engenhos de cana de açúcar. Isso acontece, por exemplo, quando ele fala em como era dividido o quadro social do engenho (de um lado os trabalhadores e de outros os da casa grande).
O personagem aborda, em sua própria história de vida, o senhor de engenho e seus escravos remanescentes, a superioridade das pessoas da casa grande, a diferença entre os meninos do engenho e os chamados moleques da bagaceira. Mas tudo isso é apresentado com certa naturalidade, demonstrando que há um posicionamento daquelas situações naquele tempo. A própria visão que o menino tem sobre a posição ocupada pelos negros escravizados advém da cultura que lhe era transmitida, o que pode ser notado no seguinte trecho:
“O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação humana me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.”
Os acontecimentos e a forma como o menino enxerga os fatos e as pessoas ao seu redor são próprios do tempo em que a história se passa. Isso também nos leva a uma reflexão de como o olhar de uma criança pode ser moldado pelos exemplos que vê em seu entorno. Isso pode ser positivo, se os hábitos dos que os cercam são saudáveis, mas também podem ensejar na perpetuação de atos de horrores, se os exemplos são recheados de coisas maléficas. A visão preconceituosa que o narrador revela que tinha quando criança, demonstra que via ao seu redor exemplos que não eram benéficos.
Menino de Engenho tem como contexto histórico o Brasil colônia e o regime escravocrata. No entanto, por ser uma obra com apontamentos de muitas memórias e de representação de uma certa saudade em relação ao passado de criança, o livro se distancia de textos que tenham maior carga de crítica social, como nos livros de Graciliano Ramos, situados na segunda fase do modernismo.
A história de Menino de Engenho se passa no nordeste brasileiro, como dito anteriormente. Ali estão representadas figuras como o Coronel José Paulino, que detém o poder econômico advindo da fazenda de engenho e que tem também poder político. As pessoas da região admiram o Coronel. Veem nele um homem justo. Notadamente, temos também uma distinção entre as classes sociais na configuração do que mencionamos anteriormente (os escravizados de um lado e do outro os da casa grande).
Sobre os aspectos da linguagem, podemos observar que há nos diálogos empregados por José Lins do Rego o uso da oralidade, que se mostra também na forma como Carlos narra a história, portanto revela o regionalismo também por meio da linguagem empregada na obra. Alguns termos utilizados são bastante próprios da região.
Observamos ainda o emprego da contação de histórias, que mesclam casos narrados pelo povo. No meio rural nordestino do nosso Brasil é muito comum termos a cultura popular ligada à religiosidade e mesclando-se com muitas lendas. No livro a figura que encanta o personagem principal é a velha Totonha: “Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens!” E assim, ao longo da narrativa o menino faz alguma alusão à senhora ou algum caso contado por ela.
Aparecem entre as histórias contadas relatos como os do lobisomem, os dos zumbis e outras figuras, inclusive seres folclóricos, como as caiporas.
Carlinhos frequentava a senzala onde conversava com os negros. Lá vivia uma negra vinda da Angola que todos tinham como uma vovó, mas tinha também uma vinda de Moçambique que aterrorisava-o. O menino também temia o lobisomem e as histórias relacionadas a ele. E como ali a religião não era algo muito presente, o menino desconhecia Deus e sua palavra, sabia o pouco que a mãe lhe ensinara.
José Paulino, o avô do menino, também é outra figura que conta muitas histórias do passado: “Estas histórias do meu avô me prendiam a atenção de um modo bem diferente daquelas da velha Totonha.”
Santa Rosa é atingida pela cheia do rio. Essa catástrofe da natureza causa mortes de gente e de animais, além da destruição das casas. Para a ingenuidade do menino a cheia é vista como uma novidade a ser encarada no cotidiano. A referida cheia se revela como um contraponto com a seca que vivenciam no engenho. Passam por dificuldade em razão do alimento escasso, mas mesmo assim os serviçais não os abandonam, um resquício da cultura escravocrata. A escravidão já não existia, mas ainda havia muito da cultura escravista em torno das relações.
Em troca de alimentação, de um tempo para morar e de proteção, homens e mulheres trabalhavam nos engenhos e nas casas grandes. Com isso, as negras contadoras de histórias, as crianças mulatas, o olhar com viés sexual para as negras, tudo faz parte do cotidiano do engenho e é retratado pelo menino. Na imagem retratada pela criança, a relação entre negros e brancos é vista sob uma óptica positiva, em que parece haver ganhos para ambos os lados. Reitero aqui, na óptica do menino.
Carlinhos, quando descobre a situação de seu pai, tem medo de ficar louco, tal qual o medo que tinha da morte. Como ele tem asma crônica se sentia mal por não poder tomar banho de rio, brincar até tarde do lado de fora da propriedade, pegar sereno, pois ele podia ter crise asmática.
Quando Carlos tem doze anos ele percebe que sua vida passa uma transformação. Ele passa a não ser visto mais como criança quando descobre a prática do sexo, contrai uma doença venérea e os homens do engenho já não o tratam como menino. Olham para ele e fazem piadas, mas com certo orgulho daquele menino que se transformara. As conversas que presencia já não são mais silenciadas quando ele chega.
O contato sexual que ele tem não é carregado de pecado nem de imoralidade. Mas, de outro modo, é visto pelos personagens como um símbolo de masculinidade, de mudança para a fase adulta, o que pode ser interpretado como um reforço de uma posição em que o homem é valorizado por sua virilidade. Machismo e patriarcalismo se apresentam na obra pelo constructo social em que a história se passa.
Acompanhamos ao longo das páginas do livro publicado pela Global Editora a história desse menino que vai passando por transformações que perfazem a sua formação. Vamos das brincadeiras que ele tinha com os primos e com os filhos dos ex escravos, ao acompanhamento da possibilidade de uma cheia do rio, ou ainda da morte de alguém que se ama e a luta de outros tantos que precisam viver.
O menino vai ser enviado a um internato, como nos revela no parágrafo em que diz: “Em junho iria para o colégio. Estava marcado o dia de minha partida.” O avô lhe dizia que se estudasse não se arrependeria.
Podemos dizer que é uma jornada de perda de inocência, mas também é um meio de retratar um período histórico do país por meio de uma obra ficcional. A descrição das questões sociais, do pensamento e da cultura de uma época estão ali representados de forma bastante verossimilhante, daí a importância de contextualizar a história no seu tempo e espaço.
Sobre o autor:
José Lins do Rego Cavalcanti, Zélins, como era chamado, nasceu em 1901 no estado da Paraíba. Do seu crescimento no mundo rural nordestino, retira muitas experiências que servirão para suas histórias nos seus 13 romances publicados. Em 1926 muda-se para Maceió, onde publica seu primeiro romance, Menino do Engenho. O romancista recebe elogios da crítica e daí em diante suas publicações tornam-se constantes. Em 1935, muda-se para o Rio de Janeiro e em 1955 é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Falece em 1957.
Ficha Técnica:
Título: Menino de engenho
Escritor: José Lins do Rego
Editora: Global
Ano: 2020
Páginas: 146
Assunto: Literatura brasileira
ISBN: 978-85-260-2492-2
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