A pergunta que está no livro
Identidade de, Tom W. Kooper e que também está destacada na capa é: “Se
somos a soma das nossas experiências, então quem somos se todas as lembranças
de uma vida desaparecem da noite para o dia?"
Lidar com a perda de memória não é algo fácil. O que você faria se você perdesse a sua memória?
O autor, aos cinquenta anos de idade, passou por uma experiência como essa. Quando acordou, não lembrava de absolutamente nada do que tinha vivido após os 20 anos de idade. Foi com base nessa experiência que Tom criou o livro Identidade, ficcionalizando a situação e transportando-a para um personagem, acrescentando elementos que nos levam a uma trama de mistério, suspense, intrigas, relações e descobertas. Convém frisarmos que não se trata de um livro autobiográfico.
Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, tem um livro que também chama Identidade, tal qual o livro de Tom W. Kooper, que foi publicado pelo Clube de Autores e produzido LC Design & Editorial (2024, 512 páginas). Bauman diz que o pertencimento e a identidade não são sólidos perpetuamente, mas sim um mecanismo que tem um poder de transformação contínua. Então, podemos afirmar que a identidade é algo em constante movimento, que vai produzindo no ser humano uma modificação que pode ser adquirida de terceiros ou pela própria escolha.
Contudo, é fácil falarmos disso quando estamos conscientes de que as modificações na nossa identidade vão acontecendo ao passo que temos lembranças de nossa vida pregressa e de tudo que vivenciamos ao longo dos tempos.
Alan Cerqueira é um médico respeitado e proprietário de um grande hospital, contudo o homem se dá conta de que não lembra nada a respeito do seu passado, nem o passado mais distante, tampouco o passado mais recente.
“Meu reflexo era de um homem de 53 anos, olhos castanho-escuros, pequenas bolsas sob os olhos, cabelos com fios grisalhos, cerca de 90 quilos distribuídos em 1,80 de altura, exibindo uma barba de quatro dias.
Esse não sou eu.”
Para o protagonista do livro de Tom W. Kooper a perda de identidade se dá no momento em que ele perde a memória. Quem é Alan Cerqueira? Como se sentir pertencente ao corpo que vê diante do espelho se de nada lembra?
A perda de memória de Alan surgiu depois que ele passou por um acidente. O veículo em que ele estava foi baleado e ele acabou colidindo. Foi salvo por um homem de nome Felipe Santana que está hospitalizado, em coma, e que, junto com Alan, levou uma enorme descarga elétrica durante o salvamento.
Alan, que já não se reconhece como sendo aquele que vê no espelho, tenta de todas as formas possíveis se reconectar com seu passado. As roupas que usa já não lhe agradam mais; passou a escrever com a mão esquerda, embora sempre tenha sido destro; adquiriu a habilidade de desenhar, embora não seja um artista; e tem lampejos de alguns eventos que colocam em dúvida a sua identidade. Nos lampejos a imagem de um homem que aparece no espelho de um banheiro de forma embaçada, revela muito de como esse personagem se vê. Sua vida parece turva diante da ausência de memórias.
Teria ele se relacionado com uma mulher casada? Por que os flashs de memória apenas relacionam a uma casa de praia e a uma frase que ele não consegue definir se é verdade ou não? Quem são as pessoas que o cercam dizendo-se de sua família? Quem são verdadeiramente os homens que estão no conselho do hospital do qual ele é proprietário?
Alan se vê cercado por várias e diferentes pessoas: uma esposa mais jovem por quem ele não acredita que tenha se apaixonado em razão da diferença de idade; uma filha que tenta de todas as formas descobrir o verdadeiro motivo do acidente do pai e que age de modo impulsivo; um futuro genro que parece esconder algum segredo; um cunhado que parece bastante preocupado com a irmã e com o hospital; um serviçal prestativo e que não quer abandoná-lo; um amigo que trabalha no mesmo hospital e que parece ser mais que um confidente; um detetive que teve alguma ligação com ele no passado e que volta a se envolver em sua história presente.
As pessoas que cercam Alan Cerqueira parecem o tempo todo dissimular a verdadeira história do homem, o que nos leva a imaginar uma infinidade de possibilidades para o acidente que causou a perda de memória de Alan. E também a uma infinidade de teorias sobre como a história vai se desenrolar no avançar das páginas.
Sem contar que todos apontam que Alan está diferente, age de modo distinto do que agia antes do acidente, parece ter adquirido uma outra personalidade. Descobrir o passado pode não ser algo tão agradável como se imagina, o que o coloca num dilema de encarar uma nova vida ou tentar recuperar as memórias.
O autor Tom W. Kooper, nome artístico adotado por um professor de Matemática da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, consegue prender a atenção dos leitores desde as páginas iniciais do livro e o ritmo continua cadenciado até o final da história. São 43 capítulos com narração em primeira pessoa e 18 interlúdios que tem a voz narrativa em terceira pessoa. A sequência de eventos que vão sendo apresentados e a (re)construção da história de Alan Cerqueira nos leva a querer ler mais e mais.
O autor utiliza de momentos de suspense e nos leva a uma quebra-cabeças para reconstruir a vida de Alan Cerqueira. O tempo todo o leitor se pegará imaginando hipóteses diversas de solução para o caso, tanto da ocorrência do acidente, como dos motivos que o levaram à perda de memória. E, sobretudo, sobre como os eventos que ele vai resgatando impactam a sua vida presente (e passada).
“[...] com a amnésia eu não perdi só lembranças, mas também todo o aprendizado que ganhei com as experiências e os sentimentos que eu tinha pelas pessoas. [...]”
Os personagens são bem construídos, não sendo representados sob uma visão unidimensional ou maniqueísta. Temos personagens que aparentam um bom caráter e revelam facetas não imaginadas e outros que atuam de forma visceral e acabam cometendo atos que nos colocam em dúvida sobre suas ações.
Interessante observarmos que nenhum personagem, mesmo os coadjuvantes, não estão no livro por mero acaso. Todos têm função, como deve ser um bom livro. Eles aparecem para dar uma informação, para delinear alguma ação futura, para esclarecer algum ponto que seria duvidoso. Uma boa narrativa deve ser assim.
Identidade é o tipo de livro que o leitor se vê mergulhado na história, ou ainda monta imagens em sua cabeça como se um filme fosse. Aliás, se o livro fosse roteirizado para o cinema, teríamos aqui, certamente, uma ótima história de suspense para ver nas telonas ou no streaming.
Alan Cerqueira com os
questionamentos sobre si mesmo e sobre sua história, nos leva a esperar mais na
próxima página, encadeando o andamento do livro e, nos dá a exata noção de que
o protagonista conduz a trama, a empurra para a frente. Outra personagem que
acaba ocupando com Alan o protagonismo da obra de Tom W. Kooper é a filha,
Lorena, que imbuída de um espírito investigativo e de senso de justiça.
impulsiona a história para que seja investigado o acidente do pai.
Tudo muda para Alan quando há uma percepção de que alguns assassinatos que ocorrem têm alguma ligação com o que aconteceu com ele. Estamos diante de uma tentativa de homicídio? Há algum outro crime que tenha sido cometido? Quem verdadeiramente é Alan Cerqueira? As pessoas que o cercam de fato estão falando a verdade ou estão ludibriando-o e escondendo algo sobre o passado? Quem é o homem que está em coma no hospital e que tentou salvar Alan? O que Alan fez no passado? Como era a relação desse homem com a atual esposa e com a filha? Os mistérios que surgem ao longo da história de Alan serão revelados?
Há muitas perguntas que podem surgir na cabeça do leitor e, certamente, serão respondidas com o avançar das páginas, porque o autor fecha todos os pontos. Ao longo da trama, por vezes, nos questionamos se as nossas perguntas serão respondidas, ante o número de personagens e de acontecimentos que vão surgindo, mas as respostas aparecem.
“[...] em uma investigação sempre há perigo, sobretudo quando estamos atrás de um assassino. Além disso, nunca vá investigar algo se você já tem uma ideia preconcebida a respeito do caso. Você será tendencioso e deixará escapar informações importantes que poderiam levá-lo à verdadeira solução. Mantenha a mente aberta, os olhos sempre atentos e considere tudo o que ouvir; nunca desconsidere nada.”
Em determinado momento, suscitamos a hipótese de que o livro descambaria para um fechamento aleatório que tentasse explicar os acontecimentos de forma pusilânime, mas isso não aconteceu. O desfecho dado por Tom W. Kooper é sensacional.
Alan Cerqueira é um protagonista interessante de se observar. Diante da sua falta de memória e da mudança de personalidade, ele também demonstra interesse em descobrir os motivos da ausência de memória que tem e busca auxílio médico, psicológico e até espiritual. E toda a busca de Alan é bem construída pelo autor, como as sessões com a psicóloga, o uso da hipnose e as sessões que tem com uma mulher que faz previsões. Com isso, o autor consegue imprimir no leitor algumas vertentes possíveis: a perda de memória por um problema médico; a ausência de memória por um impacto psicológico; os acontecimentos na vida de Alan por uma questão espiritual e/ou sobrenatural; ou a forma de agir de Alan advinda de algo inexplicável, mas possível na ficção.
O autor consegue utilizar bem todos os elementos que trouxe para sua história, sem deixar o livro cansativo e sem fazer com que os elementos se percam ao longo da trama. Os pontos da história se fecham, os arcos dos personagens são concluídos, as pistas que são deixadas ao longo da trama se conectam com o desfecho apresentado.
Identidade foi um nome bastante propício para o que o livro nos revela. Em uma única palavra, cujo significado é um conjunto de características que distinguem uma pessoa da outra, ou uma coisa, e por meio das quais se é possível individualizá-las, temos uma forte representação da história.
A obra não revela apenas a identidade de Alan Cerqueira e de Lorena, os protagonistas do enredo, mas a identidade das pessoas que com eles convivem. E o autor “brinca” com esse conjunto de características de cada personagem para nos fazer criar por eles sentimentos controversos e especular possíveis desfechos para a história.
Como dito anteriormente, os personagens criados pelo escritor não são unidimensionais nem maniqueístas, portanto, o leitor poderá amar ou odiar um personagem, acreditar que outro personagem é amigável e descobrir coisas um tanto quanto reveladoras sobre seu passado, se apegar a alguma personagem que depois demonstrará uma outra face. Enfim, o que digo aqui é que nem todos são o que parecem ser e nem todos parecem ser o que de fato são.
Uma coisa importante de se mencionar é que para a perda de memória de Alan e o modo como ele age durante o livro, o leitor vai criar uma série de hipóteses. Eu, particularmente, tenho a minha teoria, mas não a mencionarei aqui, posto que é necessário que se leia o livro e não quebre o encanto daquilo que você, leitor, vai deduzir com as pistas deixadas pelo autor ao longo da trama.
Tom W. Kooper nos entrega um romance policial digno de figurar na lista de melhores livros do gênero e de aparecer em listas de indicações de leitores como um dos melhores do ano.
Tom W. Kooper é o nome artístico adotado por um professor de Matemática das redes públicas do Rio de Janeiro (Brasil), cidade natal do autor. Nasceu em dezembro de 1968 e é pós-graduado em Matemática pela UFRJ. Depois de sofrer uma amnésia total em setembro de 2019, descobriu na escrita uma forma de se reinventar e de realizar um sonho antigo: ser um escritor.
Ficha técnica:
Título: Identidade
Escritor: Tom W. Kooper
Editora: Clube de Autores
Edição: 1ª
Páginas: 514
Ano: 2024
ISBN: 978-6558727071
Assunto: Romance policial
Páginas: 514
Ano: 2024
ISBN: 978-6558727071
Assunto: Romance policial
Uma resenha simplesmente sensacional!
ResponderExcluirSua análise e sua percepção foram de uma qualidade ímpar. Parabéns e muito obrigado. 💯💯💯💯
Estou sem palavras! É uma resenha de tirar o fôlego.
ResponderExcluirNETFLIX?! EU QUEROOOOOO!!!
Muito obrigada por compartilhar suas impressões com tamanha maestria e qualidade profissional.