Balada de amor ao vento, de
Paulina Chiziane, publicado pela Companhia das Letras (2026; 174 páginas), traz
à cena a representação de uma sociedade africana patriarcal e poligâmica,
situada no Sul de Moçambique.
A base da narrativa apresentada ao leitor são os personagens Sarnau, Mwando e o rei de Mambone. A narração é feita em primeira pessoa e Sarnau conta-nos a história de sua vida. Ela é a mulher que se apaixona perdidamente por Mwando quando o vê pela primeira vez. Como mencionado na página 11 da obra: “Tudo começou no dia mais bonito do mundo, beleza característica do dia da descoberta do primeiro amor.”
Eles tentam um relacionamento, mas nem toda a beleza descrita na imagem de quando se conheceram permanece ao longo do tempo. O “coração virgem” de Sarnau estremeceu quando o viu e seus olhos ficaram hipnotizados, mas apesar da tentativa de se relacionarem ela é surpreendida quando Mwando a abandona.
Diante do afastamento que há com o homem pelo qual ela se via seduzida, Sarnau acaba se casando com o rei de Mambone. No casamento poligâmico ela é a primeira esposa.
Num reencontro com Mwando, Sarnau acaba engravidando e tendo um filho. A traição pode ser punida com morte e ela se vê absurdamente envolvida com o seu amor do passado. Resolve então fugir com ele, deixando para trás o filho e toda sua vida.
Verificamos na história que há uma interferência da religião na vida dos personagens. Em dado momento Mwando se vê em conflito entre o amor que tem por Sarnau e o desejo de se tornar um membro da Igreja Católica. Notadamente, Chiziane aponta a interferência da religião na cultura local, vez que essas interferências levam o personagem a tomar uma decisão que altera os valores sociais. A partir da religião há, portanto, uma modificação do costume.
“[...] o teu desejo não pode ser realizado. Nunca serás minha mulher, nem segunda, nem terceira, nem centésima primeira. Eu sou cristão e não aceito a poligamia.” – Revela Mwando para Sarnau em dada passagem do livro.
Por lá a palavra do homem é superior e contestá-la pode ser um crime imperdoável. Todas as mulheres da família devem se submeter ao pátrio poder e o homem é quem decide sobre a vida dos que estão a eles subordinados. Vemos que a poligamia ao longo do romance se apresenta como uma característica cultural marcante daquele povo. É ela quem determina como os personagens vão se comportar e como vão agir diante de conflitos e de decisões que tomam ao longo da história. Ao homem é dado o direito de ser supremo, de ter quantas mulheres quiser, como se afirma no trecho “[...] esconde teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feito para uma só mulher.”
A mulher vive num mundo de opressão, tendo que ser subjugada aos mandos e desmandos do homem. De certa forma, é como se ela fosse escravizada pelo marido. Isso se nota quando a autora utiliza o termo “escravatura”. Quando Sarnau vai se casar com o futuro rei uma personagem diz a ela: “[...] Sarnau, em breve partirás para a escravatura. Chamar-te-ão preguiçosa, estúpida, feiticeira [...]”. Ou seja, a mulher tem que aceitar esse tipo de escravidão como se fora uma dádiva, pois estes são os costumes.
Sarnau exemplifica a mulher que o tempo todo precisa se demonstrar forte para suportar tudo que lhe é imposto, mas é considerada inferior e devedora de obediência.
Quando Sarnau casa, enquanto se prepara, ela recebe conselhos de mulheres mais velhas. Vemos nitidamente o contraponto que a autora faz. De um lado tem a ingenuidade da noiva que se encontra em estado de encantamento pelo casamento e de outro a triste realidade que a aguarda por ser mulher.
“O poder é como o vinho. No princípio confunde, transtorna, quase que amarga; pouco depois agrada, e no fim, embriaga.”
Mwando, por quem Sarnau se
apaixona, é um homem que tem uma visão diferente das dos demais homens. Ele não
aceita a poligamia, como mencionado anteriormente. Ele vê no casamento a
necessidade de ter apenas uma mulher. Isso advém do contato que ele tem com a
religião católica. Ele declara-se
cristão, estudou para ser padre, todavia acaba sendo punido por não ter seguido
a reclusão e ter se envolvido com Sarnau.
Como ele advém de uma família católica, o que Sarnau não é, há motivação suficiente para que ela não seja aceita pela família como esposa. E os entes de Mwando escolhem uma jovem chamada Sumbi para com ele casar. Sumbi é católica.
De modo bastante claro, fica a interferência da sociedade na vida conjugal. Quando Mwando casa, a esposa não cumpre o papel que era esperado pela sociedade, e a tribo intervém no relacionamento, o que se nota no seguinte trecho da narrativa: “[...]os comentários começam a surgir indo nos ouvidos dos conselheiros da aldeia que consideraram o caso uma afronta á autoridade, ofensa à moral pública, e eles, guardiões das leis da tribo das ilustres tradições legadas pelos antepassados, moderadores da conduta da comunidade, sentiram-se na obrigação de intervir.”
Mas, não podemos deixar de mencionar, que essas fissuras que acontecem ao longo da sua história e que são problemas que a personagem enfrenta, são também fatores que fomentam a sua formação.
Mesmo que muitas vezes suas vivências sejam percebidas apenas como sofrimento, na verdade vão além disso, pois é através dessa dor que a protagonista consegue se reconstruir, sobreviver a todas as agruras impostas pela vida e seguir adiante, transformando-se.
Sarnau é uma mulher que busca o tempo todo se descobrir. Ela procura seu lugar no mundo e há muitas passagens de sua história em que ela se perde nessa trajetória. Esses percalços pelos quais a personagem passa, a faz seguir adiante rumo ao aprendizado, ao amadurecimento. A jornada da personagem é um claro exemplo de bildungsroman, ou seja, de romance de formação.
O leitor acompanha Sarnau desde a adolescência, passando por sua paixão e abandono pelo jovem Mwando, passa pelo casamento com Nguila, o retorno de Mwando para sua vida, a maternidade, os dramas vividos nessa fase, e seu caminho como vendeira em um bairro de Moçambique.
Portanto, Balada de amor ao vento é um romance que destaca as dificuldades da jovem Sarnau e como ela ultrapassou tais obstáculos para sobreviver, e não só para ser feliz. O sofrimento é constantemente assinalado como símbolo de superação e a história da personagem é marcada por opostos, tais como o sofrimento versus a busca pela felicidade.
“Compreendeu finalmente que a vida é a dor e a alegria, a vitória e a derrota, a ofensa e o perdão, o amor, o ódio, e todos os contrários.”
O título do livro, Balada de amor ao vento, reflete o que há na história. É como se todo o amor buscado e tentado por Sarnau fosse levado pelo vento. O passado que ela tem provoca marcas profundas naquilo que ela é no presente. O amor que ela deposita em Mwando pode ser leve como uma brisa ou cortante como uma rajada forte de vento.
A literatura de Paulina Chiziane torna pungente a realidade do que é ser mulher em Moçambique, possibilitando ao leitor a descoberta de sentimentos e emoções que, por vezes, ficam obscurecidos em uma sociedade em que mulheres devem aprender a ocultar seus gritos, seus desconfortos e suas dores.
À sua maneira, navegando entre a pompa da realeza e os becos sombrios da vida, a protagonista conclui sua jornada em direção à autodescoberta e emerge como uma mulher resiliente e determinada, pronta para enfrentar os desafios que o tempo e a sociedade lhe lançam, sem jamais se curvar diante das adversidades.
Paulina Chiziane nasceu em 1955 em Moçambique. Depois de publicar alguns contos na imprensa, estreou como romancista com o livro Balada de amor ao vento em 1990. Também é autora de Ventos do Apocalipse, O sétimo juramento, O alegre canto da perdiz e Niketche: uma história de poligamia, publicado pela Companhia das Letras. Em 2021, a autora venceu o Prêmio Camões de Literatura, maior honraria em língua portuguesa.
Ficha técnica:
Título: Balada de amor ao vento
Escritora: Paulina Chiziane
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1
Ano: 2023
Páginas: 174
Assunto: Ficção moçambicana
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