Tudo é rio, livro da escritora Carla Madeira, foi publicado pela Editora
Record (2021; 210 páginas). A obra retrata um triângulo amoroso que envolve o
casal Dalva e Venâncio, que são afetados após uma perda trágica e a prostituta
mais cobiçada da cidade, Lucy, que entra na história deles formando o trio que
centraliza a trama.
Lucy é uma prostituta que tem gosto pela atividade que exerce. Ela não é
uma mulher contida, muito pelo contrário, sua entrega ao prazer é genuína. Age
de forma depravada, chocando as pessoas mais recatadas da cidade, mas
entregando aos homens que a procuram o prazer que tanto querem. Lucy faz do
sexo e da sua sensualidade uma arma, uma forma de poder.
É pelo sexo e pela volúpia que ela consegue contornar as situações da
vida. Ela é quem seleciona os homens que a procuram na Casa de Manu, o puteiro
da cidade. Há na vivência dela um jogo de sedução, de exercício do poder, da
dominação e do querer. Ela é a puta que faz do sexo o seu reinado, é onde ela
sabe que pode atuar bem e que pode conquistar o que deseja. Em dada passagem ela é citada como uma pessoa
que quer seus egoísmos, sem culpa. E age assim ao longo da trama.
A construção dela se dá pela prática do sexo já na adolescência quando
percebe que seduzir pode levá-la para onde quiser. E Lucy testa isso com
moradores da cidade, usando o sexo para se vingar da tia que a acolhe, mas que
faz diferença entre ela e suas primas. Lucy sente prazer pelo prazer.
Dalva é uma personagem que podemos dizer que segue um padrão mais
convencional. Uma mulher que tem sua beleza e é casada com Venâncio. O casal
teve um filho que é o centro de uma das cenas mais fortes do livro de Carla
Madeira. Para não dar spoiler do acontecimento, deixamos aqui registrado apenas
que há um rompante de ciúme que o homem teve em relação à Dalva. Ciúme do
próprio filho que estava sendo amamentado pela mãe.
Homens podem ter ciúme da relação da esposa com o filho. Isso acontece
na vida real e foi retratado por Carla Madeira na ficção. Acontece, sobretudo,
quando o homem se sente em segundo plano e isso tem uma ligação forte com
maridos narcisistas, imaturos ou despreparados; caso do personagem.
A mulher, a partir do episódio violento, se distancia física e
emocionalmente de Venâncio e cai numa vida de apatia e sofrimento. Ela imagina
que silenciando e se distanciando fisicamente pune Venâncio com a solidão. Pensa
em partir, mas não parte, continua ali, marcando sua presença na vida daquele
homem com a ausência. Solidão a dois pode ser vingança?
O episódio fatídico rompe a relação do casal e quebra o encanto que
Dalva tinha por Venâncio. Ela, no entanto, decide permanecer casada com ele,
como que forçando-o a ser punido pela sua ausência na presença.
Ela de corpo presente, sem falar com ele, sem sorrir, tomando o papel de
julgadora e sentenciando ele a uma punição que fica no silêncio. É o modo que
ela encontra para punir Venâncio. Não o denuncia, parece conivente,
aparentemente guarda algum segredo. Sai durante a manhã e volta no final do
dia.
“Para quem está sozinho depois de ter amado, o fim do dia é muito
triste. Era nessa hora que ela voltava.”
Venâncio, por sua sua vez, é um homem que era apaixonado por Dalva, mas a
paixão que ele tem por ela poderia também ser classificada com outro nome, deixando
assim de ser paixão: possessividade. Desde o início do relacionamento ele já
demonstrava traços da existência de um ciúme doentio, a ponto de numa
determinada passagem da história ele agredir um amigo da família de Dalva que
apenas presentou a moça com um ramalhete de flores. Aquele fato chamou a
atenção de Aurora, mãe de Dalva. Apesar
do ciúme do homem parecia que ele era capaz de dominar a instabilidade emocional
que queria dominá-lo. No entanto, não foi assim. Ele foi se revelando um homem
dominador, machista, possessivo.
"[...] o ciúme pode destruir qualquer amor."
Quando o leitor toma conhecimento do passado de Venâncio, nota que ele
foi um menino criado de uma maneira rude pelo pai, que sua família não era de
demonstrar afetos, que ele tinha raiva do genitor pela forma agressiva com que
era tratado. Não justifica seus atos como adulto, mas demonstra como ele foi
moldando sua personalidade com base naquilo que aprendeu dentro de casa.
Venâncio se tornou “frequentador da Casa de Manu quando atravessou o deserto
de ser sozinho. Um homem triste, pesado, que carregava com ele um tormento sem
tamanho.” Aqui a primeira pista de que esse homem tem uma culpa que
carrega, algo que o assombra.
Ele é tido como um “sujeito afastado de qualquer vaidade, suado e
maltratado, que Lucy via sem interesse e com alguma aversão, que acabou
provocando nela uma paixão desmedida, daquelas vermelho-sangue, tempestuosas,
que só uma puta difícil sabe permitir.” Ele também é apresentado como “aquele
homem maltratado” que “era dono de uma beleza que a desgraça escondeu
com sua camada grossa de hostilidade.”
Os três personagens – Lucy, Dalva e Venâncio – formam um triângulo
amoroso.
Lucy, que é rejeitada por Venâncio, que com ela não quer se deitar,
coloca o homem como seu objetivo, nem que para isso ela tenha que não se deitar
com mais nenhum homem que vai à Casa de Manu. Ela deseja intensamente Venâncio,
mais do que pelo desejo ardente da carne, ela o quer para exercer o seu poder
de prostituta bem sucedida, de mulher que é desejada e cobiçada por todos os
homens da cidade.
O livro tem o nome de tudo é rio, talvez porque a vida dos personagens
pode ser metaforicamente associada ao curso das águas. Assim interpreto.
Há momentos em que o rio parece brando, por exemplo, quando o
relacionamento de Dalva e Venâncio foi se construindo, na forma como se
conheceram. Há momentos em que o rio vai correndo mais depressa, como na
paixão que toma Lucy. Há momentos em que o rio é revolto, como no
fatídico ato cometido por Venâncio, na violência doméstica que fere Dalva. Há
momentos em que o rio cobre o lodo que há por baixo, como na resignação
de Dalva em não denunciar o marido e esconder das pessoas os acontecimentos que
a violaram. Há momentos em que o rio vem caudaloso e arrastando o que vê
pela frente, como na volúpia de Lucy e no seu modo descarado de lidar com o
sexo. Há momentos em que o rio seca, como na relação de Dalva e Venâncio
em que o amor dela escoa na violência dele.
Quando observamos a vida pregressa dos personagens, que é contada por
Carla Madeira, notamos a motivação de suas criações. Aqueles atos futuros já
vinham sendo construídos pelas suas ações pregressas. Veja-se como exemplo
Venâncio que, na aparente calma de homem apaixonado, como veem os outros, é um
homem ciumento, violento e capaz de atos impensados. Ele já demonstrava desde o
início do relacionamento com Dalva a sua capacidade de ter opacidade na sua
visão dos atos que envolviam Dalva, cegando-se de ciúme. Lucy, quando se lança no objetivo desesperado
de conseguir se deitar com Venâncio, também está reforçando mais uma vez suas
ações anteriores. Ela precisa provar, ainda que inconscientemente, que é boa no
reinado do sexo.
Uma personagem que aparece no livro é o rio tranquilo das águas
intensas de “Tudo é rio”. Trata-se de Aurora, cujo nome significa amanhecer.
Mãe de Dalva, a mulher é dotada de uma sabedoria de vida. A sua maturidade em
encarar os fatos e saber-se ciente das dificuldades de uma relação, mas ainda
assim preservar a família, carrega de afeto as pessoas que a rodeiam. É uma
mulher que tranquiliza, que apazigua, que dotada de otimismo prefere dar valor
às coisas positivas da vida em vez de valorizar as dores e dissabores. A sua
delicadeza e observação permite com que ela veja e perceba o que não é dito.
É ela, por exemplo, que sente o ciúme que domina Venâncio, é ela quem
aproxima o marido da filha Dalva, quando este queria afastar a filha do homem
pelo qual ela se apaixonara, é ela quem cuida de outra filha que foi mordida
por um escorpião tomando a decisão de naquele instante cuidar da filha que
lidava com a morte em vez da outra filha que lidava com a vida.
Dalva é uma mulher que parece ceder ao olhar dos outros. Quando o pai
queria que ela não namorasse, mesmo contrariada ela apenas se fecha. A mãe
intervém. Ela aceita os conselhos da mãe, mas não conta o que se passou com
ela, como que com medo de julgamento. Isso não está no texto, mas é transmitido
na personalidade da personagem. Além disso, depois do evento doloroso que
vivencia com Venâncio ela se alinhou com a tristeza.
“Por que ela não ia embora? A tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade, lugar onde a alegria encontra espaço para existir.”
Tudo é rio é um livro que pode gerar reações dispares nos leitores, pois
ao mesmo tempo que tem uma prosa lírica, repleta de frases que podem ser
destacadas para reflexão do leitor, associando-as ao contexto da história ou
não, tem personagens que vivem num anseio que pode incomodar alguns leitores.
A violência de Venâncio pode ser ponto de incômodo. Ele é um homem que
pode ser classificado como machista. E a reação de Dalva, com uma certa
condescendência em relação ao seu agressor, gera desconforto. Se por um lado
isso incomoda, porque queremos que ela reaja de outro modo, isso também
acontece na vida real. Quantas não são as pessoas vítimas de violência que
acabam cedendo ao agressor? É uma situação factível. Em determinado trecho da
obra a escritora inclusive fala sobre as decisões que são tomadas por Dalva.
Enquanto leitores, podemos acolher Dalva, como devemos acolher quaisquer
vítimas de agressões.
Se observarmos a relação de Aurora e Antonio (pais de Dalva) e a relação
de Dalva e Venâncio, podemos verificar que há um contraponto nas duas relações.
Aurora tem ao seu lado um homem que parece rude, mas que com ela se equilibra
pelo bem da família, não sendo, portanto, um homem que fere. Do outro lado, nós
temos um casal em que a mulher tem amor e apatia e Venâncio exacerba nas ações,
portanto o casal não consegue equilíbrio.
No livro nós temos uma história que nos revela aquilo que é imperdoável,
que causa frisson, que pode chocar. O texto leva o leitor a um misto de
sentimentos. Trata de raiva, de amor, de sexo, de indignação, de crime, de
violência, de silêncio, de resignação, de brutalidade, de apatia, de empatia, de
família, de relações, de formas diferentes de se encarar a vida.
Às vezes os personagens escondem suas intenções, que se revelam nos seus
atos e na narração, como é o caso de Dalva. Outras tantas vezes eles mesmos
escancaram sem pudor, sem medo de repulsa ou justamente para causar o choque na
cidade em que vivem e no leitor que os lê, como no caso de Lucy.
“Por que ela não ia embora? A tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade, lugar onde a alegria encontra espaço para existir.”
"A maior maldade de todos os tempos, a mais cruel, foi inventar que o sofrimento está para o bem assim como o prazer está para o mal."
Há em Dalva uma codependência afetiva, ou seja, uma dependência em
relação ao homem com quem convive. Isso certamente advém de sua insegurança, de
um medo que ela sente em ser abandonada e da necessidade de agradar. Como dito
anteriormente, pela parece o tipo de pessoa que cede ao olhar do outro. Outro fator agravante nesse caso é que até mesmo
os planos e sonhos do codependente não são com base nos seus desejos pessoais,
mas na vontade disfuncional de fazer com que o outro se sinta satisfeito e
realizado. Portanto, é como se a pessoa anulasse a si mesma em prol de viver a
verdade de outro indivíduo.
Tudo é rio é um livro potente. Daqueles que deixam
os leitores impactados pelas cenas, pela construção dos personagens, pela
história. Lança ao leitor um final que gera controvérsias, mas que merece ser
pensado e analisado sob o ponto de vista daquelas figuras que nos foram
apresentadas ao longo da história.
O livro de Carla Madeira provoca-nos a pensar até
que ponto nós devemos julgar a vida do outro. Incute no leitor reflexões sobre
a possibilidade de perdoar o imperdoável.
Sobre a autora:
Carla Madeira foi a autora que mais vendeu livros
em 2021. Nasceu em Belo Horizonte em 1964. Largou um curso de matemática e se
formou em jornalismo e publicidade. Foi professora de redação publicitária na
Universidade Federal de Minas Gerais e é sócia e diretora de criação da agência
de comunicação Lápis Raro. Publicou também os livros Véspera e A natureza da
mordida.
Ficha Técnica:
Título: Tudo é rio
Escritora: Carla Madeira
Editora: Record
Ano: 2021
Páginas: 210
ISBN: 978-6555871784
Assunto: Ficção
brasileira
Para comprar: https://amzn.to/3vaDzjQ
Título: Tudo é rio
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