A inevitável fraqueza da carne - Tomo Literário

A inevitável fraqueza da carne

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Felino selvagem é metáfora para desejos reprimidos em novo livro de escritor paulista.


Depois de uma década sem publicar, o escritor Wilson Gorj, que também é editor, está com um novo livro na praça. Trata-se do seu romance de estreia, “A inevitável fraqueza da carne” (Penalux), que o autor deve lançar no próximo dia 29, às 18h, no Museu Conselheiro Rodrigues Alves, em Guaratinguetá, cidade que é sede de sua editora.


Tempos atrás, Gorj ficou conhecido pelos seus livros de microcontos, gênero pelo qual militou durante um bom tempo, tendo, inclusive, comandado um selo específico do gênero, o 3x4: microficções (2010 a 2012), que foi um dos primeiros selos a se focar exclusivamente na prosa minimalista.


Dessa vez, porém, o autor investe sua escrita numa narrativa de mais fôlego. “É um enredo relativamente simples”, relata o escritor à nossa entrevista, “mas que traz assuntos de interesse geral, como paixão, traição, conflitos familiares, entre outras abordagens humanas”.


A sinopse do romance nos dá a dimensão do que aborda o livro: Carlos é um contador que recebe uma inesperada herança do falecido pai, com quem não se relaciona desde a infância, em decorrência de uma traição que resultou no rompimento familiar. Essa herança é o ponto de virada na vida do personagem. Aos poucos, a chácara herdada vai se revelando um palco de tensões. A história, que é contada por um narrador pouco confiável, contempla temas candentes da condição humana: a morte; a solidão de não ter filhos; a traição; o incesto; os silêncios pessoais e os desdobramentos do passado na vida presente. Além de abordar a traição, a trama apresenta ainda, em menor medida, o tema da autoficção, explorando os limites entre sonho e realidade, desejos e lembranças, verdade e mentira.


“Muitos me perguntam o papel da jaguatirica na história, já que ela ilustra a capa do romance”, conta o escritor. Ele explica: “É um animal-símbolo no meu enredo. Ela aparece em algumas noites no quintal da chácara, tentando roubar alguma ave do galinheiro protegido por telas. Carlos, o protagonista do romance, estabelece com ela uma certa ligação e simpatia. A jaguatirica representa na trama uma metáfora às nossas paixões reprimidas, que tentam invadir a nossa rotina e de alguma forma saquear algo do nosso tempo, de nossas relações, de nossa vida.”


Outro ponto que desperta curiosidade no livro do Gorj é o título, que lembra o de outro livro, a famosa obra do tcheco Milan Kundera. O próprio autor elucida essa referência: “O livro inicialmente chamava-se ‘A carne é fraca’. Mas então, ainda no processo de concluir a trama, veio-me à mente este ‘A inevitável fraqueza da carne’. O novo título me fisgou, mas logo aquela voz crítica que todo autor tem (ou deveria ter) buzinou o alerta: isso lembra o livro do Kundera, ‘A insustentável leveza do ser’. Inicialmente essa constatação foi um desalento, tanto que pensei em deixar esse título de lado por conta dessa fácil associação a outro já existente e conhecido. Mas não demorou muito para que a ideia se tornasse um estímulo, porque vi a possibilidade de transformar o pastiche do título numa referência explícita, irônica, uma espécie de homenagem ao autor. Em outras palavras: eu poderia usar essa associação ao Kundera a favor do livro. Além do mais, entre os dois títulos parecidos há um contraponto interessante: o livro do escritor tcheco trata de questões do ser, o espírito humano, abarca questões mais elevadas, sendo assim, do outro lado, o meu – com menos competência, obviamente – trata de questões da carne, um tema mais ao chão, sem muitas pretensões filosóficas. Em resumo, a referência ao Kundera foi um tempero a mais à minha história”, finaliza Gorj.


Como ocorre em histórias permeadas por erros e perdas, da leitura desse romance também podemos tirar alguma lição: a de que toda rotina está sujeita à interferência do inesperado. E o inesperado pode se apresentar de várias formas, seja por meio de uma herança, uma revista ou, quem sabe, um felino... Afinal, mudar nem sempre é uma escolha. Às vezes é um imperativo inevitável.


 


Trecho:


“Horas depois, já na cama, Carlos acordou com um barulho no quintal. Consultou no quintal. Consultou o relógio do celular. Era mais de meia-noite. Luísa roncava levemente ao lado. O barulho vinha da parte detrás da casa, próximo ao galinheiro. Àquela hora, certamente, não poderia ser o caseiro.


Carlos lembrou-se de ter visto uma lanterna na dispensa, quando Dona Marta abriu para pegar o arroz e os temperos.


Era uma lanterna pesada, a base de pilhas. Estava agora com ela nas mãos. Acionou o botão: acendeu. Um facho meio fraco, de pilhas que precisavam ser trocadas.


Vestiu um moletom por cima do short e saiu pela cozinha, avançando cautelosamente pela área coberta.


Os cães do caseiro, na casa ao lado, latiam sem parar. No galinheiro, as aves também pareciam alvoroçadas. Ele apontou a lanterna naquela direção e teve um sobressalto: a luz devolveu dois olhos vermelhos olhando fixos para ele. O animal estava imóvel, como que suspenso no gesto de fuga. Os dois, homem e felino, ficaram se mirando por um tempo, até que o bicho saltou sobre um monte de telhas acumuladas ali perto, depois galgou o muro e dali ganhou a árvore robusta cujo galho invadia um pouco a propriedade.


Muito pequena para ser uma onça, ele pensou, embora o pelo amarelo salpicado de manchas negras reforçasse essa impressão. Se não fosse um filhote, provavelmente tratava-se de algum gato selvagem.”

Wilson Gorj / Foto: Divulgação

Sobre o autor:

 

Wilson Gorj é natural de Aparecida, SP. É escritor e editor pela Penalux. Possui participações literárias em antologias, jornais, revistas e sites. Este romance de estreia é o seu quarto livro publicado.

 

Serviço:

 

“A inevitável fraqueza da carne”, romance; p. 162 (Penalux, 2023).

Link para compra:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/romance/a-inevitavel-fraqueza-da-carne


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