Em “A Filha Primitiva”, livro da
escritora Vanessa Passos, que foi ganhadora da 6ª edição do Prêmio Kindle, as
personagens principais são denominadas apenas como mãe, filha e neta.
Ou seja, elas não tem um nome próprio dado pela autora. Isso me levou a buscar por outros livros que tenham personagens inominados.
No livro “Todos os Nomes”, de José Saramago, os personagens também não têm um nome. Somente o protagonista carrega uma identificação que ainda assim é um não-nome. O mesmo ocorre em outro livro do autor, o célebre “Ensaio Sobre a Cegueira”. Em entrevista que o escritor concedeu à Folha de São Paulo, durante a Feira de Frankfurt em 1997, Saramago explicou: “É como se, neste momento, os temas que eu trato, sobretudo depois do ‘Ensaio sobre a Cegueira’, fossem de caráter tão amplo e geral que os nomes deixam de ter sentido. Chamar o personagem Antonio, ou Manuel, o que significa?”
“Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski, é outro livro que segue a mesma linha. A obra foi lançada em 1864 e o personagem não tem nome algum. O protagonista, um homem cheio de amargura que vive isolado é chamado apenas de “Homem Subterrâneo” e é por essa descrição que se apresenta ao leitor. Há outras características que são citadas na obra, mas ele não recebe um nome próprio. Não é Mikail, não é Aleksei, não é Boris.
Os estudos apontam que, foi a partir do modernismo europeu, principalmente com o escritor James Joyce, que este recurso de não nominar os personagens passou a ser adotado com mais frequência.
Alguns autores dizem que a escolha de um nome inevitavelmente nos leva a algum tipo de memória. Se você ler sobre um personagem chamado Astolfo, por exemplo, certamente sua mente pode te conduzir a formular algumas impressões com alguém que você conheça e que carregue esse mesmo nome. Faça esse exercício. Durante a leitura, portanto, o leitor pode ser levado a carregar suas memórias para alguém com o mesmo nome, perdendo-se do personagem. Claro que isso é apenas uma hipótese, não que vá acontecer com todo e qualquer personagem ou leitor.
Quando o personagem tem um nome definido você pode ou não fazer tal assimilação, ou talvez a faça de maneira inconsciente. Todavia, quando quaisquer personagens da obra literária são inominados, saltam aos olhos as suas ações, suas características intrínsecas e suas constituições internas. O leitor, decerto fica mais atento e mais focado no comportamento e na visão sobre a psique do personagem. Os sentimentos desses personagens e os temas que eles tratam ganham maior destaque.
Um exemplo disso é o que acontece com a personagem G.H., do livro “A Paixão Segundo G. H.”, da escritora Clarice Lispector. Não sabemos o nome da protagonista que narra o livro. Suas memórias, desejos, inquietações, angústias, medos, reverberam em sua trajetória. A identificação G. H. toma uma medida maior quando sabemos que tais consonantes se referem a gênero humano.
Se para Saramago o uso desse artifício é levar o leitor a pensar nas características dos personagens e não em sua denominação, no conto “Descrição de uma luta”, de Franz Kafka, esta inexistência do nome serve para o narrador especular sobre a solidez de sua própria existência e do mundo em volta. Kafka recorreu mais de uma vez a este tipo de personagem indeterminado em sua obra. Três exemplos conhecidos estão nos contos “Na colônia penal” e “Um artista da fome” e no romance “O castelo”. Em todos eles, os nomes são substituídos pela indicação da profissão dos personagens.
O romance de Samuel Beckett, “O Inominável”, que foi escrito em 1949, que é o último romance da famosa “Trilogia do pós-guerra”, traz um personagem incapaz de descrever a si mesmo. Ele não tem um nome por também não ter uma existência corpórea, a única coisa verdadeira expressa sobre ele é a ausência de ser. Para Beckett o inominável é uma evidência do absurdo.
Sam Sacks, escritor americano, diz que os personagens sem nome na ficção contemporânea, quase sempre estão tentando convencer a si mesmos, muitas vezes de maneira inútil, da realidade e da própria existência. O autor aponta para os exemplos de Tom McCarthy, Daniel Galera, Alejandro Zambra, Paul Auster e Philip Roth, como autores que adotam essa tendência.
Por fim, a observação com relação a existência do nome ou não do personagem ficará na interpretação do leitor, que ao receber o texto e decodificá-lo vai dar sentido à história do personagem presente no livro.
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