A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, consegue em poucas páginas, apresentar de forma profunda e metafórica a condição humana. O livro objeto da resenha foi a edição lançada pela Editora Rocco, em 2020.
São nos pequenos acontecimentos cotidianos, na movimentação em seu apartamento, no vislumbrar de um objeto, uma pintura ou qualquer outra coisa que o valha, que surgem os gatilhos para o desenrolar de pensamentos da personagem G. H. Sim, apenas as iniciais a definem e somente pelas iniciais vamos conhecê-la.
O romance de Clarice Lispector, a exemplo de outros por ela produzidos, não busca apresentar um enredo arquitetado e cheio de reviravoltas, mas busca sim entrar no universo introspectivo de suas personagens. Clarice delineia por meio do fluxo de pensamento de suas criações, aquilo que habita no interno, construindo assim um panorama amplo, profundo e reflexivo sobre nuances demasiadamente humanas.
O livro foi publicado originalmente em 1964. O fluxo da consciência da personagem G. H. é o condutor de toda a história, do início ao fim. É ela que fica em cena e outros personagens são apenas mencionados.
Característico dos livros de Clarice, ela parte de uma personagem que sai de estado atual para uma reflexão de consciência que transcende o momento presente. Há um abandono da realidade concreta e imediata para uma visão que ignora tempo e espaço, se fixa no interior da persona.
A protagonista se questiona o tempo todo sobre o ato de existir. Aquilo que vive parece não satisfazê-la, a imagem que os outros formam dela não condiz com a imagem que faz de si, mas encara com quase naturalidade o vazio existencial que é viver. Digo quase naturalidade, porque apesar da aparente decisão em relação ao vazio, há uma série de questionamentos sobre isso, portanto assunto incômodo para ela. O seu mundo da classe média, com uma vida recheada de padrões sociais impostos, não lhe diz respeito. O padrão se torna não perceber a existência. Por mais paradoxo que possa parecer é vivendo que vai se notando um vazio em relação ao existir.
Interessante observar como a história começa. Num ápice. "... estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi." A história tem início com essas palavras, no meio de um pensamento, sem uma introdução que apresente ao leitor o cenário, os personagens, os possíveis conflitos que podem surgir. Notadamente, é o fluxo de consciência da personagem que dita as regras.
A apresentação de tudo que acontece fica a cargo da narração de G. H. A protagonista, personagem única de corpo presente na narrativa, na voz em primeira pessoa, expõe de forma articulada e por vezes desencaixada os seus pensamentos e questionamentos. Não somos nós assim? Não fazemos essa conexão e desconexão entre os fatos e assuntos, como se a todo tempo, nossa mente montasse um quebra-cabeça? Referências sobre situações que viveu no passado reverberam no presente e quiçá no futuro.
A personagem G.H., num dia trivial, resolve arrumar o quarto da empregada que havia sido demitida. Arrumar, segundo ela, seria colocar as coisas em ordem, como se a vida também precisasse dessa pausa para a arrumação, para colocar os fatos, os sentimentos, as sensações e os pensamentos em ordem. Ao chegar no ambiente, a protagonista se choca com o vazio e a limpeza do lugar. No entanto, se depara com uma pintura na parede que tem um homem e uma mulher nus, e um cachorro.
Aquela imagem vira um gatilho para que G.H. passe a encarar como se o desenho traduzisse a imagem que empregada fazia dela. Por outro lado, desperta também o fato de que a empregada só passou a ter sentido e presença na vida da mulher, naquele instante, no instante em que ela apresenta alguma visão sobre G. H. A protagonista foi uma mulher que não deu a devida atenção aos outros e que dos outros recebeu o mesmo abismo, assim, quando ela percebe a presença da empregada, já na sua ausência (outro ponto paradoxal), há um lampejo de que a presença se torna forte porque ela teve uma visão que para G.H. foi crítica. A imagem desenhada em carvão é uma resistência da empregada em deixar marcado naquele vazio a sua presença (ainda que ausente no momento presente).
O quarto vazio, branco, limpo, representa metaforicamente o vazio da personagem, que busca de algum modo, ainda que com coisas banais ou inventadas de sua cabeça, preencher o espaço. Preenche, por um momento, com a análise da pintura que vê na parede.
"A hora de viver é tão infernalmente inexpressiva que é o nada."
Ali, no guarda-roupa que está no cômodo, ela se depara com outra figura que vai lhe dar mais inputs para que reflita sobre a vida: uma barata. O inseto se torna uma representação de seus medos, angústias e também simboliza, em dado momento, um rito de passagem. Outrossim, a barata, um ser que habitaria o planeta antes mesmo do homem, parece ser o elo eterno de ligação entre o mundo atual e tudo que já acontecera por aqui.
G.H. se redesenha novamente a partir daquele instante em que se depara com o bicho e tem com ele uma relação controversa (o medo e o nojo são expressos explicitamente, mas percebe-se nas entrelinhas uma certa admiração). Quando a barata expele sua secreção branca, expele a sua essência. Essa metáfora transcende para G.H. que se transmuta.
Quando ela se depara com suas iniciais gastas numa mala faltam-lhe palavras. É um significado simbólico de que o que vemos de nós às vezes nos foge ao sentido que queremos dar a nós mesmos. Ou que, no desgaste das iniciais, ela sente que deixou de ser aquela pessoa que fora outrora, a mesma pessoa que gravara as iniciais nos objetos. Em linguística se diria que a palavra perdeu o seu significado. Para ela a vida que vivera tinha sido ceifada de significados outros. Passa, a partir daí, por uma transformação.
"Desde já calculo que aquilo que de mais duro minha vaidade terá de enfrentar será o julgamento de mim mesma: terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária."
Clarice Lispector consegue pegar algo trivial e transformar em uma grande obra. Os pensamentos e reflexões, bem como todas as proposições feitas pela personagem G. H. ao longo do livro, nos levam a um profundo questionamento sobre a vida, sobre a humanidade. Sobre a busca que precisamos fazer acerca de nós mesmos. Ela levanta questões bastante pessoais que se refletem em questionamentos feitos por todo e qualquer ser humano – sem distinção de gênero. Daí que G. H. representa na verdade a expressão Gênero Humano.
O estilo de escrita de Clarice consegue ser provocador, profundo e ao mesmo tempo cheio de lirismo. Ela maneja as palavras com maestria e nada parece perdido no texto, tudo tem conexão, reverbera sentido para o leitor. Os encaixes das indagações com as respostas que os sucedem nos conduzem por uma história que não se propõe a apresentar um grande clímax, mas ser o clímax da existência daquela figura.
A busca dessa mulher que perdida está reflete uma busca humana. Daí que a busca dela, apesar de singular, representa a busca de todos nós. Para além disso, A Paixão Segundo G.H. revela uma jornada humana e o termo paixão não está só ligado ao amor ou ao relacionamento, mas como associação ao processo de sofrimento da personagem que sai de um estado de busca incessante e de grandes incômodos para um estado de contemplação, de graça. Poder-se-ia dizer que é algo como a Paixão de Cristo. Ela encontra, depois de um longo e árduo percurso, a sua redenção.
Clarice brinca com as palavras. No livro ela começa cada um dos capítulos com a oração que terminou o capítulo anterior, algo que revela uma continuidade, que expressa que a vida não tem interrupção. É tudo contínuo, o agora faz parte do ontem e o hoje fará parte do amanhã.
"Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço - viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono."
A Paixão Segundo G. H. é um daqueles livros que é necessário ler e reler. Ler para se deliciar com as palavras de Clarice e a forma inconfundível de dar vida aos seus personagens, com lirismo e profundidade nos assuntos que aborda. Reler para rememorar os acontecimentos e refletir novamente, em outro momento, sobre tudo que Clarice é capaz de despertar em seus leitores.
Sobre a autora:
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasivna Lispector foi uma escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia. Autora de romances, contos, e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas cotidianas simples e tramas psicológicas, reputando-se como uma de suas principais características a epifania de personagens comuns em momentos do cotidiano. Quanto às suas identidades nacional e regional, declarava-se brasileira e pernambucana.
Ficha Técnica:
Título: A paixão segundo G. H.
Escritora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Ano: 2020
Edição: 1ª
ISBN: 978-65-5532-006-0
Número de Páginas: 188
Assunto: Literatura brasileira
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