O livro foi publicado originalmente em 1969 sob o título I know why the caged bird sings. O nome da obra foi inspirado em um poema homônimo de Paul Laurence Dunbar (1878-1906), que foi um poeta e romancista, primeiro autor afro-estadunidense a obter reconhecimento atingindo um grande público. Maya foi uma leitora do trabalho de Dunbar.
Em “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola” a autora narra a própria vida. É, portanto, uma fonte autobiográfica em que muitos aspectos sobre a história da autora se faz presente no texto. O objeto de leitura foi a edição de 2018, publicada pela Astral Cultural e veiculada por meio da TAG, em formato capa dura (336 páginas), com tradução de Regiane Winarski.
Angelou foi uma mulher que rompeu paradigmas ao longo de sua vida. Ela foi a primeira mulher negra a conduzir trens nos Estados Unidos, logo depois de se tornar mãe aos dezesseis anos. Trabalhou no cinema e na TV, foi diretora, produtora cultural e roteirista, funções preferencialmente masculinas na época de sua atuação. Como atriz, participou de várias peças e musicais da Broadway. Foi também professora e poeta.
Na obra, podemos perceber que são tratados inúmeros temas que impactaram a vida das personagens citadas do livro. A história passa pela economia algodoeira, com negros trabalhando em regime de exploração, perpassa pelo sistema educacional segregacionista, em que as melhores escolas eram para a comunidade branca, fala do acirramento do racismo no Sul dos Estados Unidos e sobre os movimentos de emancipação negra.
Muito do que é narrado na obra, sejam em curtas passagens ou em momentos mais longos, demonstram a divisão racial existente nos Estados Unidos. A obra, portanto, é rica em sentido histórico e social, pois se torna um reflexo de fatos ocorridos que não afetaram apenas a narradora e sua família, mas toda uma nação. Mas, para além desse pano de fundo, percebemos o quanto aquele contexto afetou a vida da protagonista – a própria autora.
A vida de Maya é narrada desde sua infância (três anos de idade) até a juventude (dezesseis), período longo e que podemos dizer que foi atribulado. Porém, apesar do universo inóspito em que vive, Maya demonstra, em sua narrativa, que esse ambiente a fortaleceu, deu-lhe empoderamento feminino e a levou a superar as limitações impostas pela cor.
Outro ponto que deve ser ressaltado acerca do livro é a presença das vozes femininas na vida da autora. São mulheres negras, protagonistas e que se tornaram muito significativas na construção da personalidade de Angelou. Suas características particulares pincelaram uma gama de virtudes que se juntaram na formação da menina.
Anne Henderson – chamada no livro de Momma -, avó paterna de Maya, é uma mulher forte, corajosa e inteligente que cuida de Maya durante a maior parte de sua infância, ensinando-lhe a sobreviver em um ambiente hostil, sem jamais perder a dignidade ou deixar com que as agruras vividas na infância e as experiências negativas a abalassem a ponto de perder a fé na vida, o que faz de Momma figura central na formação pessoal da autora. Momma entende o contexto no qual vive, no entanto, não se diminui.
A avó era viúva, filha de ex-escravos, próspera e respeitada como comerciante, proprietária do único mercado localizado no epicentro da área dos negros; porém, seu comércio atendia brancos e negros, como é registrado pela escritora. Maya se beneficia muito do convívio com a avó, fortalecendo sua identidade negra, mas ao mesmo tempo mantendo-se alerta e cautelosa ao poder branco, como ensinado pela velha senhora.
Momma valoriza muito a educação, e os irmãos Maya e Bailey se tornam leitores assíduos de obras literárias, o que melhora seu desempenho na escola. A avó exige deles dedicação aos estudos, vislumbrando, portanto, na formação das crianças uma possibilidade de ascensão social. A educação é, de certo modo, um potencializador de redução de desigualdade social.
O hábito da leitura, estimulado por Momma e pela Sra. Flowers, desempenhou um papel fundamental e significativo no fortalecimento da autoconfiança de Maya e lhe deu o capital cultural para se transformar, posteriormente, em escritora.
A senhora também assume papel de conselheira para os dois netos a fim de protegê-los do racismo.
“Momma pretendia ensinar a Bailey e a mim a usar os caminhos da vida que ela e a geração dela e todos os outros Negros anteriores encontraram e achavam seguros. Ela não gostava da ideia de que se podia falar com os brancos sem botar sua vida em risco.”
A segregação racial é exposta por Maya em sua narrativa, como dito anteriormente. Tal segregação aparece em vários ambientes. Seja na escola, nas igrejas, nas ruas, ela existe e a avó lhe instrui a se distanciar dos brancos a fim de evitar situações de perigo. No entanto, o confronto com o outro vai fortalecendo a identidade negra da protagonista.
“O que diferencia uma cidade sulista de outra, ou de uma cidade ou povoado do norte, ou de uma cidade com prédio? A resposta deve ser a experiência compartilhada entre a maioria desconhecida (ela) e a minoria conhecida (você).”
Vivian Baxter, mãe de May é outra mulher presente na vida da menina. De temperamento forte, independente, muitas vezes se utiliza de artifícios, como a beleza física, para dominar os homens e fazer com que ajam conforme suas necessidades. Apesar de sua ausência durante a infância de Maya, foi em Vivian que a protagonista encontrou muito do apoio para vencer os obstáculos da vida adulta.
Os irmãos Bailey e Maya moraram com a avó materna por seis meses, antes de voltarem a viver com a mãe e o companheiro dela, Sr. Freeman. Ele tem um temperamento possessivo e ciumento, começou a molestar Maya e, por fim, aproveitando-se da ausência da mãe que pouco ficava em casa, a estuprou.
Na ocasião, a menina tinha oito anos. Após estuprá-la, o homem ameaçou matar seu irmão e matá-la também, caso ela contasse para alguém. A situação é narrada em capítulo destinado a essa fase da vida da garota e em detalhes. Maya sentiu o peso da ameaça e omitiu o que aconteceu, porém acabou por revelar quem a estuprou para o irmão. A situação então vem a público, o estuprador é julgado, preso, mas logo é solto. O carrasco foi morto alguns dias depois de sua soltura.
A ingenuidade de Maya, uma criança, é reverberada em dois momentos. Antes do estupro, quando apesar do alerta da mãe para que não deixe ninguém tocá-la, a confiança depositada no padrasto permite com que ele se aproxime e até lhe dê um abraço que classifica como “carinhoso”. Esse abraço, sentido com afeto, cria uma expectativa de acolhimento que não vêm com o ato praticado.
Reverbera também quando ela acredita que o fato de ter falado algo sobre seu estuprador, o levou a morte. Sua palavra era que o havia condenado, na cabeça da menina. Ela então, se sente culpada, e resolve não falar com mais ninguém por um período, conversando apenas com seu irmão. Eles são enviados novamente ao Sul para voltar a viver com a avó.
Sra. Bertha Flowers foi a figura feminina responsável por auxiliar Maya a sair do trauma sofrido em decorrência do estupro. Foi por meio da amiga da avó que a narradora desenvolveu seu poder da oralidade e de uso das palavras como estratégia de luta.
“Ela foi uma das poucas damas que conheci e permaneceu em toda a minha vida como medida do que um ser humano pode ser.”
Ao lermos o romance autobiográfico de Angelou, conseguimos observar as divergências entre posições ideológicas, sociais e raciais, principalmente as oposições entre negros e brancos. No romance, as vozes negras e femininas é que protagonizam a trama e expõem os fatos. É o protagonismo da voz negra feminina no contexto cultural estadunidense.
Registrar a vida em formato de autobiografia, ao mesmo tempo que parece libertador para a autora, parece ser também uma tentativa de responder algumas incertezas que ela traz consigo, desde sua infância e juventude. Angelou trata da difícil luta de constituir sua identidade em ambiente inóspito: “Se crescer já é doloroso para uma menina negra do sul, estar ciente de que você não pertence àquele lugar é a ferrugem na navalha que ameaça cortar sua garganta. É um insulto desnecessário”
A religião também aparece na obra. Frequentadora da igreja, ela se refere ao divino, expressando a existência de seu povo a um Deus e demonstrando que, em suas reflexões, quando o branco ascende socialmente vai se distanciando desse Deus.
“As pessoas cuja história e cujo futuro eram ameaçados diariamente de extinção achavam que só podiam estar vivas por intervenção divina. Acho interessante que a menor das vidas, a mais pobre das existências, seja atribuída à vontade de Deus. Mas, conforme os seres humanos ficam mais abastados, conforme o padrão e o estilo de vida começam a ascender na escala material, Deus diminui a escala de responsabilidade em velocidade proporcional.”
Quando parte para morar pelo período de um mês num ferro velho, na companhia de sem-tetos, Maya é tocada pela experiência da aproximação com diferentes tipos de pessoas. Com isso ela repensa as desigualdades existentes, que atingiam tanto os brancos quanto os negros. Entende, assim, que há uma separação de classe social a partir da questão econômica, além das diferenças culturais.
Com a leitura do livro, percebemos a capacidade da escritora de contar sua autobiografia e ainda assim ser capaz de manter certo distanciamento. No texto ela mantém-se distante de sentimentos que poderiam saltar de sua mente e aparecer na escrita, vez que ela não está situada no momento em que a história se passa, o relato é posterior a data do acontecimento. Maya demonstra habilidade com as palavras e consegue imprimir estilo em sua forma de escrever.
Interessante observarmos que é uma autobiografia, mas que se apresenta também a partir de uma voz mais ampla, ela fala do lugar de um grupo, de uma etnia. Mulher e negra, sua voz é uma prática social. Seu olhar externo sobre si mesma torna a obra ainda mais provocativa, pois, na medida em que avançamos na história, vamos notando a percepção que a protagonista tem dos fatos de sua vida, tal qual como se estivéssemos ali naquele dado momento.
O protagonismo da voz feminina merece destaque. Tal atuação vem tanto da própria escritora como de todas as mulheres que passaram pela vida dela.
Inegável dizer que há relevância por conta da abordagem sobre preconceito, racismo e abuso. Tais temas devem ser discutidos pela sociedade e, apesar de se tratar de uma obra que narra a história de uma personagem estadunidense, muito há que se assemelhe com os dilemas que são vividos na cultura brasileira. A leitura do livro nos permite refletir sobre o tema e sobre possíveis caminhos para contornarmos essas situações estarrecedoras que ainda violam direitos humanos.
Sobre a autora:
Maya Angelou foi criada em Stamps, Arkansas. Além das autobiografias que se tornaram best-sellers, que incluem Eu sei por que o pássaro canta na gaiola e The Heart of a Woman, ela escreveu vários livros de poesias. Maya Angelou faleceu em 2014.
Ficha Técnica:
Título: Eu sei porque os pássaros cantam na gaiola
Autora: Maya Angelou
Tradução: Regiane Winarski
Editora: Astral
Edição: 1ª
Ano: 2018
ISBN: 978-85-8246-775-6
Assunto: Autobiografia / Racismo
Números de páginas: 336
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