Sula, livro de Toni Morrison, foi publicado originalmente em 1.973. A edição lida foi a entregue pela TAG Livros na caixa de fevereiro de 2.021, que teve como curadora a escritora brasileira Conceição Evaristo. Pela indicação de Conceição a expectativa em relação a leitura foi elevada. Aliado a isso, tem o fato de que a escritora Toni Morrison foi a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1.993. Temos, portanto, um livro de uma escritora consagrada e uma de suas principais obras, o que, naturalmente, despertou a curiosidade e aguçou ainda mais a vontade de ler a história.
Contextualmente, estamos falando de uma obra que começou a ser escrita num período em que o ativismo político dos negros americanos em prol de igualdade estava em alta. O livro é ambientado no período de 1920 a 1965. Partindo de tal contexto histórico-social, a narrativa aborda situações de racismo (sofrido pelos negros na trama), pobreza (os personagens vivem em situação de vulnerabilidade social e não são economicamente abastados) e hipocrisia social (há a presença latente da dissimulação sendo utilizada como forma de coesão da sociedade).
Nel Wright e Sula Peace centralizam a trama de Morrison. Sula, que dá nome ao livro, assume o protagonismo. Elas são complementares na história, situação que é percebida pelo leitor com o avançar da leitura. As mulheres são de famílias com características bastante diferentes. Isso reverbera na constituição da personalidade de ambas, que nos leva a vê-las ora como opostos, ora com diferenças gritantes, ora com traços que se conflitam na relação de amizade que, apesar disso, se constitui, até chegarmos ao ponto de olharmos para estas personagens como personalidades complementares. O fator cultural e de costumes atribuídos a cada personagem cai perfeitamente bem em cada uma delas e tem total relevância na trama. Observe-se que a construção das personagens rompe o maniqueísmo.
O livro é narrado em terceira pessoa e, pelo fato de ser escrito por uma mulher e ter personagens femininas, a obra acaba expressando a multiplicidade do universo feminino em distintos panoramas: o social, o familiar, o histórico.
Veja-se que há a relação conturbada das personagens centrais com suas respectivas mães (uma relação controversa que se mostra em ações que reverberam na própria família), há a história de cada uma dessas mulheres vivendo na sociedade (seguindo ou se opondo ao que o universo social dita como comportamento), há a forma com que cada uma assume sua postura na vida (uma pela visão patriarcal e a outra mais libertária, livre e de enfrentamento das convenções sociais).
A história começa logo após o período da Guerra, em que no vilarejo é celebrado o Dia do Suicídio e traça a vida de Sula desde a sua infância até a vida adulta.
“(...) Estavam muitos preocupados com coisas mundanas – e com os outros, questionando já no início da década de 1920 o que era (...) aquela menina Sula que tinha virado mulher na cidade deles, e o que eram eles mesmos, enfiados lá em cima, no Fundão.”
Nel, a amiga de Sula, é filha de Helene, que vive com a sombra de sua mãe, uma ex-prostituta. Foi criada pela avó e tem valores que estão firmemente ligados às tradições e a toda convenção social estabelecida na comunidade que vivem. De certo modo, como a mãe de Nel se vê inferior aos brancos, isso é transmitido para a menina que assume essa postura no vilarejo. Uma demonstração da autora de que o racismo estrutural penetra na sociedade desde a tenra idade e sem a percepção clara do que está acontecendo. O racismo sofrido por Nel é tratado por ela como uma coisa “natural”.
Em oposição à essa tradição existente na família de Nel, Sula é uma menina que nasce na família de uma matriarca. Eva (avó de Sula) foi abandonada pelo marido e, sozinha, criou os filhos. Eva acaba por deixá-los, inicialmente, com uma vizinha, dada a miséria e situação de precariedade em que vive, o que a impossibilitava de alimentar os rebentos. Contudo, ela retorna, sem uma perna e com uma situação financeira que permite, ao menos, cuidar dos filhos.
O contraponto das duas famílias está posto. De um lado o tradicionalismo e a formação patriarcal e de outro o enfrentamento das convenções sociais, por meio de mulheres destemidas e que zelam por sua liberdade.
Quando a história nos vai sendo revelada nas primeiras páginas, temos a impressão de que são desconexas e que pairam sobre vidas de famílias diferentes apenas. No entanto, na medida em que a autora tece seu texto, página a página, vamos mergulhando num emaranhado de fatos que se contrapõe, se complementam e estruturam uma base sólida para nos contar tudo sobre Sula e Nel, que guardam um segredo que lhes pesam sobre o ombro, desde há muito.
“(...) Eu não sabia mais o que fazer. Eu devia ter falado sobre isso contigo antes. Você sempre foi mais sensata que eu. Sempre que eu sentia medo, você sabia direitinho o que fazer.”
Em dado momento da trama Nel se casa e Sula sai do vilarejo para cursar a faculdade. Ela retorna alguns anos depois e, essa volta, causa certo frisson na comunidade local. A personagem começa a ser encarada como uma personificação do mal, com lembranças que são retomadas pelas pessoas e sendo escancarada a percepção que elas faziam de Sula.
A protagonista chega a ser criticada pela sua mãe, no entanto, há uma certa hipocrisia pairando em tais críticas, posto que aquilo que ela rechaça na filha é exatamente o modo como ela, quando mais nova, vivia. Notadamente, vemos em Sula uma formação de hábitos que foi moldada com os exemplos que via no cotidiano de sua mãe e de sua avó. Com Nel, como dito anteriormente, não foi diferente. Sula vive sua vida de modo independente, sem seguir padrões impostos. Para ela, o amor não é romantizado, o sexo é livre e prazeroso, enfim, se torna afastada de qualquer laço de moralismo que possa encontrar em sua jornada.
Interessante observar outra situação apontada pela autora na obra. A mãe de Sula, Hannah, também tem o comportamento sexual livre, não se entregando apenas a um homem, mas usufruindo do prazer. Isso desperta nas outras mulheres o desejo de ser como ela. Da admiração que a mãe provoca nas demais mulheres Sula nada herda. A sua força sexual, pelo contrário, causa desconforto nas demais mulheres da comunidade.
Sula pode ser interpretada sob duas vertentes. Ela é uma mulher à frente de seu tempo, que não segue padrões, que não se delimita pelo que lhe impõe; ou demonstra-se uma pessoa egoísta, voltada a atender aos seus próprios caprichos e desejos, sem se importar com quaisquer consequências que possam advir de suas ações. Essa dualidade aparece sutil ou explicitamente em diferentes fases da vida de Sula. A força da personagem está no fato de que ela rompe as barreiras do bem e do mal, sendo uma personagem com camadas, que nos despertam diferentes reflexões sobre o papel que a mulher ocupa na sociedade. Daí, revela-se a visão da autora, em expor a dissimulação social que busca ditar as escolhas do masculino como comportamento adequado a ser seguido.
“Você é mulher e, aliás, é uma mulher de cor. Não pode agir que nem homem. Não pode andar por aí toda independente, fazendo o que bem entender, roubando o que bem quiser, largando o que não quer.”
Em seu retorno, a diferença entre ela e Nel se evidencia. Entre elas há um abismo que foi criado antes de Sula partir. Esse abismo e os diferentes acontecimentos que são atribuídos ao comportamento de Sula, levam a comunidade a vê-la como a responsável por muitas das coisas ruins que aconteceram. O ódio/raiva que nutrem por ela, cria uma unidade nesta sociedade que, até então, vivia distanciada.
Sula é uma obra provocativa, que nos traz reflexões por meio de uma história impactante e bem construída em que demonstra a força da mulher e a sua multidimensionalidade. Os homens, na história, recebem um papel secundário. Os questionamentos e reflexões são transmitidos por meio da vivência e do comportamento das personagens femininas. É um livro intenso e de camadas que requer um olhar aprofundado sobre o que se conta.
Toni Morrison / Foto: Reprodução
Sobre a autora:
Toni Morrison, nasceu Chloe Ardelia Wofford e foi escritora, editora e professora. Seu livro de estreia “O olho mais azul” é um estudo sobre raça, gênero e beleza, temas estes que são recorrentes em seus últimos romances. Foi ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1993. Os romances da escritora, normalmente, apresentam personagens femininas fortes e com histórias marcantes.
Ficha Técnica:
Título: Sula
Escritora: Toni Morrison
Tradução: Débora Landsberg
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1ª
Ano: 2020
ISBN: 978-89-359-3428-4
Número de páginas: 189
Assunto: Ficção norte-americana
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