Por Alexandra Vieira de Almeida.
A poesia de Antonio Carlos Secchin aponta para uma cabeça bifronte, que reúne num mesmo imaginário linguístico a dupla chama do real, revelando a sublimidade do mesmo e, ao mesmo tempo, a concretude do que é presente na nossa realidade mais cotidiana. Consegue misturar, em poemas de forma fixa, a solenidade formal com a temática irônica e humorística, em que temos poemas que se adensam no chão da experiência trivial e, por outro lado, ultrapassando as margens do real, a partir da simbologia das belas metáforas em sua diafaneidade. Neste livro Hálito das pedras, cujo curador da edição é o potente Diego Mendes Sousa, temos a coletânea dos melhores poemas de Secchin (professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras).
O livro é dividido em quatro partes, sendo a primeira “Pedras fundamentais”, em que temos a poesia essencial do escritor carioca por ora aqui apresentado. Em “Pedras de fogo”, temos a força maior da metalinguagem e intertextualidade de Secchin. Na terceira parte, o seu exímio trabalho de sonetista em “Pedras polidas”. Finalmente, temos a “Pura pedraria” em que encontramos como urdidura mais precisa a simbiose entre natureza e linguagem. O título é retirado de um verso do primeiro poema da obra aqui em questão. Ele foi escolhido, belamente, pelo prefaciador e curador do livro de Secchin. Essa escolha foi perfeita, pois nos dá um resumo da tessitura da obra deste poeta e crítico literário excepcional, ao reunir o “hálito”, que, figuradamente, significa brisa, sopro e aragem, algo ligado ao elemento aéreo e sublime da poesia à “pedra”, que revela, ao mesmo tempo, a matéria e o espírito da letra. Alguns exemplos da literatura: “...gelam-me os hálitos de sua alma” (João Guimarães Rosa) e “...o hálito sexual de uma terra sob o arado” (João Cabral de Melo Neto). Assim, Secchin hibridiza polaridades, aprendendo a grande lição drummondiana, de reunir numa mesma imagem, o sopro da sublimidade, ao elemento concreto da poesia, que é uma pedra no caminho da escrita, em seu viés cotidiano.
A obra de Secchin é lapidada pelo poder humano, dessacralizando o ritual repetitivo da religião tradicional. Não segue normas da convenção social ou moral, fazendo de seu livro um desauratizar das coisas mais tradicionais no plano do conhecimento, pois que não é simples conhecer, mas a potência do saber em sua sublimidade criadora e inventiva. Vejamos o que dizem os grandes dicionaristas Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre o verbete “pedra”: “A pedra talhada não é, com efeito, senão obra humana; ela dessacraliza a obra de Deus, ela simboliza a ação humana que se substitui à energia criadora”. A poesia de Secchin reúne o sublime e o carnal num mesmo hátito que dimensiona a força ambígua do literário. No poema que abre o livro, temos: “Operário do precário,/me limito nesse corpo amanhecido,/asa e gozo onde a morte mora.” Outro fator preponderante nos poemas de Secchin é a musicalidade e o ritmo que nos faz retornar ao poder da origem do lírico, em que os poemas eram cantados ao som da lira. A sua poesia se dirige aos ouvidos do leitor atento através de rimas não só no final dos versos, como rimas internas, num processo de rico virtuosismo.
Em meio às estruturas fixas, encontramos a flexibilidade e liberdade dos afetos: “...por mais que a mesa imponha/o frio irrevogável do aço,//combatendo o que em mim contenha/a linha flexível de um abraço...” A partir da melopeia, as palavras se traduzem como jogo de espelhos, em que as semelhanças e pertencimentos são amalgamados pelas imagens inusitadas e pelas ideias e conceitos profundos: “...apago o nome e a memória/num Antônio antônimo de mim”. Aqui, ele utiliza o acento circunflexo para revelar a diferença em meio a outros Antônios, pois no seu nome real, não se encontra o acento circunflexo, o que já é um grande diferencial. Cada ser tem sua autonomia. E é essa dicção particular que Secchin alcança, um antônimo dele mesmo, um duplo que foge ao lugar comum e à repetição. Outra característica contundente em sua obra, o que lhe dá um tom particular e original, é o processo de autoironia. Ele se reflete com riso e extrospecção sobre seu próprio fazer poético, sendo que a realidade acontece ao mesmo tempo em que se dá a leitura do poema, no seu agora, no seu já e instante: “Não posso dar-me em espetáculo/A plateia toda fugiria/antes mesmo do segundo ato”.
Esse riso irônico, de uma fina letra sem igual, revela a perplexidade do poeta com relação a sua obra. Um processo em que se luta a admiração e a rejeição, a beleza própria e a autocrítica, que nos impele a não sermos gênios já prontos e acabados, como queria o Romantismo, mas como artistas em crescente e madura expansão. O grande filósofo Giambatista Vico, no seu belo livro Ciência Nova, apresentou-nos sua história eterna ideal, em que dizia que a ironia surgiu na idade da razão, a dos homens, após a idade dos heróis, que falavam poeticamente. A ironia de Secchin é plena de cerebralismo, sem deixar de lado toda a força sublime de seu lirismo encantador. Na obra deste poeta ímpar, podemos encontrar ecos de vários poetas que o antecederam, tanto entre os brasileiros como os portugueses, mas Secchin os constrói, reconstrói e desconstrói o tempo todo, tirando a máscara do passado, e revelando para nós leitores, sua verdadeira persona.
Ao unir o sagrado e o profano, o espiritual e o carnal, num mesmo âmbito, o poeta carioca consegue a difícil proeza de misturar coisas distantes numa espiral barroca que aponta para o alto e para o baixo: “...todos os gozos são santos”. No poema “Não”, o poeta acrescenta e diminui a palavra “não” num processo de gradação que ao mesmo tempo amplia e nega suas ideias. Ele reúne a suavidade de um hálito à dureza da pedra. O abstrato e o concreto se conjugam num abraço cheio de beleza e erotismo. Ele, por exemplo, brinca com a morte, no seu humor negro. A morte ganha leveza, ao ser eufemizada, como podemos ver no poema “Feliz Ano Novo”. No poema “Cinco”, encontramos estrofes divididas por letras e não números, desconstruindo a matematização do universo, ao construir pela palavra sua força poética. E, no final, temos cortes abruptos nas palavras, com as artimanhas grandiosas do concretismo, trabalhando com as formas e com os espaços em branco. Já no poema seguinte, “Três toques”, o poema é dividido em números, como para dizer que ele mesmo aponta para o conteúdo das palavras, como, ironicamente, para a matemática, ao utilizar as estruturas formais com grande precisão. Neste poema aqui, o poeta mistura a língua amorosa ao poder da linguagem. A tessitura do amor é plenamente realizada pela linguagem, reunindo o desejo e a letra, a força de Eros na travessia da página em branco.
Em “Pedras de fogo”, se descortina o paradoxo da luz e da sombra, como na epígrafe do próprio Secchin, o fogo é o lado obscuro da chama, e se revela, assim, uma “filopoesia”, uma análise crítica, um pensar poético, que é fogo prometeico que trouxe a sabedoria para os homens. Aqui, podemos nos deparar com o coloquialismo de alguns poemas em meio à sublimidade poética em outros. Em “A um poeta”, temos a multiplicidade do gênero lírico em suas várias formas e expressões. A polifonia de vozes em Secchin é formidável, atingindo a plenitude do gênero lírico. É nesta parte do livro que podemos perceber o grandioso poder da metalinguagem e dos processos intertextuais da escrita, dialogando com a tradição literária.
O sublime e o cotidiano novamente comparecem aqui com todo seu fulgor: “Poemas casam nuvens e favelas...”, como podemos ver no poema “Arte”. Em “Poema”, um texto concreto, com a disposição das palavras na página em branco. Um jogo literário e espacial se cumpre, onde a questão do espaço está ligada ao tempo certeiro. Encontramos em Secchin, a dor humana em sua máxima expressão, desde a amorosa à dor do ser enquanto escravo do tempo e do espaço, limitado pelos quatro cantos de nosso mundo. Temos a queda de Ícaro, querendo ultrapassar as fronteiras do mundo e do terreno. O voo da imaginação é possível, mas tem de ser medido, para não desfalecer. Em “Itinerário de Maria”, o poeta brinca com a construção e a desconstrução das palavras.
O real e o simbólico se casam a partir do poder da imagem que torna possível, como no arco e a lira de Heráclito, a “harmonia dos contrários”. No poema “Tempo: saída & entrada”, podemos ver o os versos iniciais e finais sendo invertidos. Os encaixes são perfeitos. E o poeta fecha belamente o poema das saudades daquele tempo antigo de sua avó. A família comparece aqui como em outros poemas do livro. E no poema Aire, percebemos até alguns traços surrealistas, elevando o poder do símbolo: “E há um pássaro parado na garganta de Carmen”. Em Disk-morte, ao contrário, encontramos a crítica social a um fato corriqueiro de nosso dia a dia. Novamente aqui, nesta parte do livro, temos a reunião entre a leveza do sublime e a concretude do real: “...o poema vai nascendo/pomba de pluma e granito”. Este é o poder da imagem poética, como bem analisou o grande poeta e ensaísta Octavio Paz: “A imagem resulta escandalosa porque desafia o princípio da contradição: o pesado é o ligeiro”.
Na terceira parte do livro, “Pedras polidas”, temos seu poder como sonetista, em que, ao mesmo tempo em que lemos sonetos que apontam para temas mais sublimes, como o estilo requer, encontramos também sonetos, como o “Soneto desmemoriado”, em que não temos o tom sério desta forma poética. Augusto dos Anjos, por exemplo, utilizava formas fixas e, mesmo tempo, revelava um conteúdo com palavras pessimistas, cientificistas e repugnantes, que não condiziam com as formas fixas do Parnasianismo. Mas Antonio Carlos Secchin reconstrói seu périplo próprio como sonetista a partir do humor e da ironia. Com temas leves e humorísticos dos seus sonetos, Secchin consegue alcançar com plenitude seus leitores. A memória e o esquecimento, o pleno e o vazio, estes paradoxos da poesia, aparecem em um de seus sonetos: “Tentei sair do pesadelo quando.../mas do que é mesmo que eu estava falando?” A desconstrução da forma fixa do soneto é um processo genial no seu trabalho de escritor. Mais uma vez aqui o teor de autoironia é recorrente. No poema “Quase soneto aposentado”, Secchin não coloca a terceira linha do segundo terceto. Há uma interrupção do modelo tradicional, negando-o. Os diálogos cotidianos quebram a diafaneidade da temática do sublime poético e lírico, como podemos ver no poema “Soneto da boa vizinhança”. Esse tom de conversa, de amenidades, dá o tom mais leve ao poema. Assim, entre a seriedade e o cômico, Secchin constrói seus mais belos sonetos.
Na quarta e última parte do livro, “Pura pedraria”, há uma forte presença da natureza, sendo transformada pela linguagem. Nos quatro primeiros poemas, temos os quatro elementos na natura, o ar, o fogo, a terra e a água. Aqui, é recorrente a presença das rimas internas. Nesses poemas iniciais, podemos perceber a sublimidade do que é concreto. A profundidade dos elementos da natureza cria um alfabeto da natureza semiótica. Temos assim uma textualidade do que é natural, mesclando a natureza e a cultura. No poema “O galo gago”, encontramos um poema que depois foi transformado num belíssimo livro infantil. Contrariamente à gagueira deste galo, Secchin não titubeia, pois é perfeito nas suas construções poéticas. Portanto, perfazendo seu voo moderado e contido, não temos em Secchin o excesso do voo de Ícaro. Em Secchin, não temos a soberba da linguagem. O poeta carioca impõe os limites do voo na sua poesia para que haja uma ordem em meio ao símbolo. Secchin seguiria o conselho de Dédalo que disse, de acordo com “O livro de ouro da mitologia”, de Thomas Bulfinch: “Ícaro, meu filho – disse, quando tudo ficou pronto para o voo -, recomendo-te que voes a uma altura moderada, pois, se voares muito baixo, a umidade emperrará tuas asas, e se voares muito alto, o calor as derreterá”.
“Hálito das pedras”, poesia (edição para colecionar: limitada, numerada e assinada pelo autor). Autor: Antonio Carlos Secchin. Editora Penalux, 162 págs., 2019.
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Sobre a resenhista:
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
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