"Você é minha vida", livro do turco Ferzan Özpetek, que vive em Roma, foi lançado no Brasil pela Skull Editora. Publicado originalmente em 2015 sob o título "Sei la mia vitta", esse é o primeiro do escritor e cineasta que temos publicado por aqui. Ferzan, é diretor do filme "Istambul Vermelho" - disponível na Netflix.
O título da obra também era uma mensagem deixada gravada no celular do narrador, recebida de seu companheiro. Palavras "simples, essenciais, todavia desconcertantes". Note o quanto essas palavras podem se ampliar para dar sentido a uma relação. Numa manhã, dois companheiros partem de Roma, cidade em que moram. Na medida em que a cidade italiana vai ficando para trás, o personagem-narrador fala ao outro, que permanece em silêncio ao seu lado: "A minha vida é sua e agora vou contar-lhe, porque amanhã será somente nossa."
Transitando entre a realidade e a ficção, começamos então a acompanhar o relato do personagem que viera da Turquia para a Itália e que fixou moradia na Via Ostiense. Ele fala-nos sobre a chegada de seu parceiro em sua vida e das pessoas que habitam o prédio em que moram, e que se reuniam aos domingos, como uma verdadeira família. Ali havia uma trans extravagante, as anãs que eram as únicas a dar voltas na chave da porta, a família da porteira Rosita - uma mulher gorda e jovial, um jovem casal de inquilinos com uma criança e uma família tradicional em que "o Genro" disputava a atenção de todos. Pessoas com variados tipos físicos e dotadas de emoções diferentes, mas que convivem em harmonia, tornando a edificação o seu verdadeiro lar.
Contadas as histórias de cada um desses personagens, se entrelaçando com a vida do nosso narrador, vamos tomando contato com suas particularidades e conhecemos outras figuras, como Máximo (senhor de idade que aparentava ter esquecido de seu passado/presente), mas que resgata parte de sua vida.
O livro trata de amor entre o personagem-narrador e seu ouvinte. Nos são apresentados momentos que viveram juntos, detalhes que despertam lembranças, passagens que enchem o coração de sentimentos bons, situações de desencontros. Há ainda, em cada página, uma história de esperanças, decepções e conquistas.
"Por que a amizade pode se transformar na forma mais transgressora de amor, aquele que subverte antigos equilíbrios consolidados." Sim, a amizade se revela como esse trecho narrado na história. Os amigos que eles tem, a vida que passaram na Via Ostiense, demonstra bem as relações e laços que se estabelecem e que não estão no equilíbrio esperado advindo somente das relações sanguíneas.
Conhecemos também Federica, que atua com moda, é de família nobre e que exerce o poder feminino sobre o narrador. Eles tiveram um relacionamento há três anos. "Estar com ela era terrivelmente excitante, mas também muito árduo. Amava propor desafios, ultrapassar limites. Não se detinha diante de nada."
Nos deparamos com o sumiço de um personagem e o relato sobre sua mãe, uma apostadora patológica. E temos ainda Vera, a trans que outrora fora Mário e que se tornou a mais famosa de Roma, que nutria um desejo latente de aventuras e gostava de flertar com os perigos. Ela tinha inúmeros amigos gays e um sobrinho adorado. Nela reside uma história de doação ao próximo, de enfrentamento aos regramentos sociais. Rossella, outra das criações de Ferzan, é a personagem que traz o anseio de ter um filho, mas não quer ter um pai (um homem) a seu lado.
Note, caro leitor, como podemos constatar nesse microuniverso criado pelo autor, que há várias vertentes de pensamento e de comportamento se apresentando. O desparecimento de uma pessoa, o vício em jogos, o anseio de não seguir aquilo que a sociedade prega como "certo e errado" - grifo meu, a vontade da maternidade que não se sustenta na ideia de que só é possível se houver um marido. Personagens singulares, com histórias que nos faz refletir sobre nosso tempo e da necessidade de liberdade das pessoas. Mas não é só isso.
Para além da história recheada de bons personagens, que carregam características bastantes peculiares, temos o debate da necessidade do casamento de pessoas do mesmo sexo. Direito de casar. E a obra relembra que "quem ama não se rende jamais". Temos claramente uma abordagem sobre a vida da comunidade gay na década de 80, o medo da AIDS que paira sobre todos e que surge como uma doença capaz de dizimar, e fala-se sobre a sociedade que "era uma floresta de preconceitos". Com a chegada da AIDS, o local conhecido como Buraco deixou de lado a alegre descontração que existia nos que ali frequentavam e a doença atinge também alguém próximo ao nosso narrador.
Ao protagonista, as dificuldades parecem que deram mais gosto à vida, apesar dos pesares."A vida nunca é exatamente como queremos: sempre nos oferece surpresas e, quanto mais somos capazes de nos adaptar às mudanças de programa, melhor é."
Passam pela obra de Ferzan a liberdade sexual, o encontro com grandes nomes do cinema italiano, os almoços de amigos, as dores e perdas de gente amável e amada. A viagem que os personagens iniciam tem um significado tanto na relação deles quanto para nós, tal qual o silêncio do companheiro que parece distrair-se com a paisagem e ser tomado por névoas que não lhe permitem lembrar. Esse silêncio do narrador, ao passo que incomoda nos dá também a dimensão do amor que o outro tem; você entenderá ao ler a obra.
É uma história de memórias, de sentimentos, de amizade e, sobretudo, de amor. Amor que enfrenta obstáculos, que dá força mesmo nas dificuldades, que requer carinho, atenção, cuidado. É uma história também de loucuras de amor. Como dizia Friedrich Nietzche: "há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura." Ferzan, que sabe falar bem sobre sentimentos, traz página após página uma história de existência que se anula por amor. O amor que não desiste, que resiste.
O livro é emocionante e nos envolve desde o início, tanto pelos personagens que conhecemos como pela trama elaborada pelo escritor. Vamos ficando cúmplices do personagem-narrador e, íntimos, vamos sentindo suas emoções mais profundas. A viagem que nos remete a uma grande história de amor, nos leva também por um trajeto de discussão de temas importantes que estão até hoje sendo debatidos na sociedade, nos traz uma visão de mundo que clama por direito, inclusive o direito irrestrito de ser quem se é.
"Desconfio de quem procede por exclusão, de quem se deixa guiar por preconceitos. É como viver em preto e branco, renunciando aos maravilhosos matizes que esquentam a existência."
Conheci a história do autor, após ser convidado pelo editor para fazer um texto sobre a obra. Fui pesquisar de quem estávamos falando e me deparei com uma história que, coletada por fragmentos aqui e ali, já me colocaram em conexão com o livro. Traduzi alguns trechos do que encontrei nos sites, de entrevistas do autor e fui notando que, possivelmente, dentro das páginas da obra haveria uma grande história. Ao receber o livro que estava em processo de revisão, me deparei com uma obra consistente, uma incrível história, com personagens que me chamaram a atenção. O que imaginei de "ouvir falar" foi superado pela leitura.
Os personagens de Ferzan fogem do comum, fogem do cenário da mesmice e se revelam pessoas intrigantes, curiosas e daquelas que queremos saber mais na medida em que a história avança e que, se fossem pessoas reais, nos faria querer conhecê-las, tanto pela excentricidade quanto pela humanidade de que são dotadas tais figuras. Possivelmente a verossimilhança que emana dos personagens, advenha da mescla que o autor faz de ficção com acontecimentos reais.
O fato de o livro também trazer questões importantes para a sociedade, nos faz pensar sobre o preconceito, sobre a limitação que as pessoas impõe a vida dos outros, sobre empatia, sobre respeito. A história de amor que aparece pode soar como uma história simples de dois homens que se relacionam, mas há mais ali na relação existente entre o narrador e seu silencioso companheiro. Há uma história de doação (no sentido mais amplo que essa palavra pode alcançar). A viagem que fazem se torna, para nós leitores, uma viagem pela convivência, pela parceira, pelo companheirismo, pela dedicação, pela abnegação, pelo desprendimento de si mesmo, pelo respeito ao outro.
"Quando me sinto andar na onda do desespero, penso então no amor. Porque é o amor que nos salva, o amor muda tudo, o amor torna possível o impossível, belo o feio, aceitável o inaceitável."
Emocionante e envolvente, são esses os adjetivos que me surgem enquanto penso sobre a obra de Ferzan. Terminei de ler exclamando: Que livro sensacional!
Você é minha vida é um livro que nos faz viajar. Viajar com personagens singulares, viajar por paisagens que despertam nosso imaginário, viajar por eventos que suscitam reflexão, viajar por um sentimento que mexe com o ser humano: o amor.
Você é minha vida é um livro que nos faz viajar. Viajar com personagens singulares, viajar por paisagens que despertam nosso imaginário, viajar por eventos que suscitam reflexão, viajar por um sentimento que mexe com o ser humano: o amor.
Sobre o autor:
Ferzan Ozpetek | Foto: Divulgação |
Ferzan Ozpetek nasceu em Istambul e vive em Roma desde 1976. O primeiro filme que escreveu e dirigiu, Il bagno turco (O banho turco), foi exibido no Festival de Cannes em 1997 e obteve grande sucesso. Com Harem Suare (1999) e Le fate ignoranti (Um amor quase perfeito, 2001) passou a ser um dos principais diretores na Europa. Seus filmes seguintes La finestra di fronte (A janela da frente, 2003) Cuore sacro (Sagrado Coração, 2005) Saturno contro (Saturno em oposição, 2007) Un giorno perfetto (Um dia perfeito, 2008) Mine vaganti (O primeiro que disse, 2010) Magnifica presenza (Magnífica presença, 2012) e Allacciate le cinture (Apertem os cintos, 2014) trouxeram ainda mais sucesso. Dirigiu as óperas Aida (2011) e La Traviata (2012). Em 2008, o Museu de Arte Moderna (MoMa) em Nova Iorque dedicou uma retrospectiva a Ozpetek, que recebeu muitos prêmios por seus filmes exibidos em diversos países. Seu primeiro romance Rosso Istanbul foi publicado em 2014 e o segundo Você é minha vida em 2016. Seu trabalho ainda não é muito conhecido no Brasil, especialmente como escritor. Você é minha vida é a porta de entrada para o imaginário cinematográfico de Ozpetek, no qual se encontram as origens de muitos personagens e histórias e onde também confluem a estética e a escritura que distinguem os seus multifacetados filmes.
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