O bug do milênio foi o termo utilizado para definir um problema que estava previsto para ocorrer na virada do ano de 1999 para o ano 2000. Era esperado que os computadores desenvolvidos no século XX, que armazenavam dois dígitos para referir-se ao ano calendário, entrasse em colapso ao não reconhecer a passagem e interpretasse o ano 2000 como 1900. Por que estou falando disso? Porque o livro Feitos de Sol, do escritor Vinícius Grossos, publicado pela Faro Editorial em 2019 (1ª edição; 254 páginas) nos transporta para década de 90, mais precisamente no ano 1999. E no livro, vamos ter contato com uma porção de coisas relacionadas ao período, como o medo do bug, músicas, filmes, animações e lembranças de um personagem.
Cícero é o narrador da história. Ele retorna para sua cidade natal, que pouco mudara desde que ele havia partido. A convite de Karol, uma grande amiga, ele está disposto a colocar um ponto final numa história que ele deixou escrita com reticências. Os pensamentos sobre um grande amor aparecem e então começamos a conhecer a história de Cícero e de Vicente.
Os dois se encontraram pela primeira vez na frente de um estabelecimento chamado Taverna do Dragão. Cícero estava em busca do último exemplar de Under Hero, seu quadrinho preferido. No entanto, o que ele não esperava é que o estabelecimento estaria fechado (fora de funcionamento). E ali ele, que era tímido e pouco dado a interações sociais, passou a conversar com Vicente.
"...não era todo dia que encontrava um cara tão estranho quanto eu" - declara o personagem.
A proximidade com o bug do milênio fazia com que Cícero acreditasse na possibilidade do fim do mundo. Vicente, por sua vez, acreditava no mesmo fim, mas por motivo diverso. De uma família evangélica, com pai pastor, ele tinha a crença de que Jesus voltaria à Terra para levar os seus fiéis ao paraíso. Por aqui podemos notar que teremos dois personagens com visões de mundo diferentes e de famílias que se configuram também de modo diferente. Cícero vive apenas com usa mãe, que trabalha arduamente e que tem um namorado.
O encontro dos dois jovens vai seguindo uma relação crescente, se tornando mais do que apenas uma simples amizade. Torna-se paixão, torna-se o primeiro amor. E esse gostinho de romance novo no ar, de encontros, de sorrisos trocados, de afetividade que se demonstra de diferentes maneiras e de perceber o outro, entre em cena na história. Vicente vê luz em Cícero.
Por trás dessa relação que se estabelece temos ainda uma aventura juvenil que Vicente e Cícero resolvem fazer: encontrar o autor de Under Hero numa feira alternativa. Essa jornada causa preocupação aos pais dos jovens e revela a generosidade de uma personagem simpática e singular, a avó de Vicente, que se demonstra ser completamente diferente dos pais do jovem e que tem uma ideia de vida mais livre, sem preconceitos.
Vinícius Grossos aborda o impacto que a família tem na vida de jovens que estão descobrindo a sua sexualidade. Por vezes, quando ela é preconceituosa e cheia de conceitos pré-estabelecidos que teimam em mudar as pessoas, gera desconforto, faz com que os jovens se fechem, que sofram e até podem chegar a provocar dores (tanto as emocionais que ficam marcadas por todo o tempo, como as marcas físicas, impingidas por um ente próximo). Em função da visão restrita da família o jovem tem de fingir ser o que não é, tem que procurar uma forma de passar desapercebido no seio familiar e cria nele uma dolorosa e árdua missão de agradar aos outros e de se sacrificar em detrimento da própria felicidade. E mais do que isso, a anulação de ser quem é.
Vemos, por exemplo, o pai de Vicente que revela a face do machismo, do patriarcado, da religião que oprime, das crenças sociais que sufocam e refletem o preconceito.
No entanto, também será identificado pelo leitor que na história há outra face dessa moeda. A família que acolhe, que respeita, que apoia quem o jovem é e percebe que ele não deixa de ser quem é, por ter que se relacionar com alguém do mesmo sexo. A mãe de Cícero é uma personagem que revela muito desse viés, além de ser uma personagem feminina bastante forte. Ela tem uma boa relação com o filho, é aberta ao diálogo, tem um companheiro que a auxilia, trabalha e é capaz de compreender o cenário que se desenha na sua possível configuração familiar.
Esses pontos, surgem como camada secundária na obra, mas estão presentes e nos levam a refletir sobre o tema. O mote principal, que não é perdido pelo autor em sua narrativa, é a construção, ou melhor, a descoberta que Vicente e Cícero fazem a respeito de sua relação de amor. Relação essa que se revela em pequenos detalhes, nos olhares, nos toques, nos segredos que são compartilhados, na aproximação que vai se intensificando.
O autor nos entrega uma história que comove, que emociona, que envolve. A narrativa fluída, com referências da década em que se passa a história, alinhada aos personagens que cativam o leitor, nos conduz por uma trama delicada e bem desenvolvida que fala de relacionamento LGBT.
Músicas, filmes, animações e outros elementos da cultura pop da década são mencionados. Quem viveu nos anos 1990, certamente encontrará uma dosagem de saudosismo na história. Quem não viveu se deliciará com tais referências que nos levam a perceber o que temos hoje. Outrossim, temos uma grande história, que toca o leitor.
Se pudesse resumir o que o leitor encontrá nessa obra, diria que: temos uma excelente história de amor entre dois jovens, que se mescla com aventura e apresenta um contraponto feito pelas famílias que nos provocam e refletir sobre ser humano, sobre respeito e sobre acolhimento.
Diria ainda que Alessandra, a mãe de Cícero é uma mulher admirável, que Cícero é aquele tipo de pessoa que queremos dar um abraço e ser amigo, que Vicente é uma figura impar, porque ele é capaz de revelar grande sensibilidade e humor, mesmo carregando tanta dor, que Karol é uma personagem que rompe com padrões.
Feitos de Sol é de fato um livro comovente, que você perceberá já na carta ao leitor, escrita pelo autor e que abre a obra. Feitos de Sol é sobre a leveza de uma relação e o peso do preconceito, o sabor de aventura e o amargor da repressão, o ódio e o amor.
Sobre o autor:
Vinícius Grossos | Foto: Caíque Cahon |
Vinícius Grossos é taurino, jornalista, carioca e, assim como Cícero e Vicente, também acreditou que o mundo ia acabar no fim dos anos 1999. Mas nada aconteceu e, assim, ele pôde escrever livros. Seu primeiro romance pela Faro Editorial, O Garoto quase atropelado será lançado em sete países da América Latina. Também lançou 1+1 – A matemática do amor e O verão em que tudo mudou, ambos em parceria. Vinícius mora em São Paulo e tem a tradição de fazer uma tatuagem para cada livro publicado.
Ficha Técnica:
Título: Feitos de Sol
Escritor: Vinícius Grossos
Editora: Faro Editorial
Edição: 1ª
Ano: 2019
ISBN: 978-85-9581-080-8
Número de Páginas: 254
Assunto: Ficção brasileira
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário.