Por Sandra Abrano
REALIDADE. substantivo
feminino
1. qualidade ou característica do que é real.
2. o que
realmente existe; fato real; verdade.
3. o
conjunto das coisas e fatos reais.
Ao relatar um fato
ocorrido no trânsito, por exemplo, resumimos um acontecimento real, porém, não
só isso. Na narração oral, a entonação da voz e trejeitos do corpo interagem,
carregados de elementos que compõe a história: emoções, lembranças, ligações
com o que você já sabe e com o que imagina. Para mim, essa é a porta de entrada
da ficção.
Uma história
contada nunca é um fato somente.
VESTÍGIOS - Mortes
Nem Um Pouco Naturais teve uma trajetória de cinco anos entre os primeiros
rascunhos e a impressão final.
O thriller tem como cenário a cidade de São Paulo no período de 1976 aos primeiros anos de 2000, apresentando o submundo do serviço secreto brasileiro. Na trama, Mário, um agente do Sistema de Informações retorna depois de duas décadas à Vila Maria, bairro paulistano de sua juventude, para administrar uma empresa de segurança. No passado, Mário foi um dos agentes infiltrados no movimento estudantil da época e que também atuou na queda da Casa da Lapa -- assim ficou conhecido o local em que dirigentes do PC do B foram emboscados ao término de uma reunião. Mas essa é apenas uma das histórias baseadas em fatos reais que estão nas páginas de VESTÍGIOS.
Ao delinear a ideia
geral do livro, faltavam as minúcias do projeto, porém, tinha definido a opção
de compor a narrativa ambientando fatos da história recente brasileira com
personagens ligados à ação: os agentes secretos brasileiros sem postos de
comando, homens a quem cabiam as tarefas menos nobres e mais violentas, os que
estavam na linha de ação e perpetravam a violência diretamente.
Com as primeiras
leituras, firmou-se a ideia de colocar esses personagens em um período de
descrédito do governo militar e ascensão das vertentes democráticas, período
que encontrou o auge das tensões em 1976, em que as negociações para a abertura
democrática estavam delineadas e, no outro extremo, grupos contrários a essa
ideia agiam com violência.
Um thriller de arrepiar é o que ocorreu no
Brasil de 1976.
Em 1976 foram
mortos o metalúrgico Manoel Fiel Filho, o jornalista Vladimir Herzog, os
dirigentes do PC do B Ângelo Arroyo e Pedro Pomar (os dois últimos na Casa da
Lapa), sem esquecer as numerosas bombas plantadas, mostravam a quem quisesse
ver que setores militares e civis não entregariam tão facilmente o poder.
Para os agentes
lotados nas agências de inteligência brasileiras esse foi um período de
desgaste extremo, de lutas internas, de insegurança quanto ao futuro, de perda
de poder, de queima de arquivo em disputas de vida e morte.
Nada como um
período de insegurança e caos para situar a trama de um livro.
Os perpetradores
de violência.
Cláudio Guerra forneceu
uma parte das informações para compor o cotidiano e cenas de violência dos
personagens sargento Amaral (codinome Ivan) e Mário, em VESTÍGIOS, especialista
em escutas e vigilância, responsável por uma empresa de segurança instalada na
Vila Maria, cidade de São Paulo.
Cláudio Guerra,
hoje pastor evangélico, foi um policial tido como responsável por 60 execuções
em curto espaço de tempo, apontado pela Polícia Federal como chefe do crime
organizado no Espírito Santo, condenado a 42 anos pela morte do bicheiro
Jonathas Bullamarques e com uma condenação de 18 anos suspensa pelo assassinato
de sua mulher e cunhada, abandonadas no lixão da grande Vitória.
"UM AGENTE
SECRETO QUE NUNCA ESTEVE EM LISTAS DE ENTIDADES DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
E DE TORTURADORES, ATÉ PORQUE NÃO TORTURAVA. MATAVA. GUERRA COMEÇOU A ELIMINAR
ESQUERDISTAS EM 1973." Marcello Netto e Rogério Medeiros, Memórias
de uma Guerra Suja, em depoimento dado por Cláudio Guerra.
Com Cláudio Guerra
aprendi o que eram conversas diversionistas. “Quando era para eliminar somente
um guerrilheiro urbano, a ação era seguida de conversas diversionistas, após a
execução, com as testemunhas oculares. Um ou dois agentes se misturavam entre os
populares e começavam a descrever o tipo físico do atirador e o veículo de
fuga, totalmente diferente da realidade. As pessoas absorviam aquelas
informações, até mesmo as aumentavam e davam depoimentos incoerentes,
dificultando qualquer investigação.”
Para incinerar suas
vítimas, esse agente usava o Forno da Usina de açúcar Cambahyba, em Campos de
Goytacazes, RJ. Entre as décadas de 1970 e 1980 esse expediente ainda era
usado.
E quanta realidade cabe num livro de ficção?
Revista Veja | 09 de dezembro de 1998 |
Já com o agente
Carioca conheci o lado dramático do "trabalho" de perpetrador de
violência. Taís de Morais organizou as "Revelações de um agente secreto da
ditadura militar brasileira" no livro Sem Vestígios. Carioca deixou
anotações de suas ações e remorso, entregue pelo correio à editora que o
publicou em uma pasta volumosa, endereçada por uma mulher que pedia anonimato.
Houve um único encontro entre o editor e a mulher misteriosa que se mostrava
preocupada em rapidamente se livrar daqueles papéis e exigia anonimato,
inclusive do nome do agente. Nas palavras do editor, nas páginas que antecedem
o conteúdo, "A pasta continha um conjunto de papeis manuscritos em forma
de diário e alguns capítulos do que pretendia ser um livro. Havia também algumas
poucas fitas e recortes de jornais. O material parecia ter sido escrito até o
início dos anos 90 [...]"
“Aquele estranho
impulso à indiscrição, comum aos homens que vivem vidas secretas, e que é
responsável pela invariável existência de ‘documentos comprometedores’ em todos
os conluios e conspirações da história.”
Joseph
Conrad, Sob os olhos do Ocidente.
Em VESTÍGIOS
Mortes Nem Um Pouco Naturais, a história brasileira recente vai sendo delineada
nas anotações em cadernos do agente Mário. A ordem é cronológica e se inicia em
1976, durante a investigação e cerco que se fez à reunião de cúpula do Partido
Comunista do Brasil, com a queda da casa em que se realizava o encontro dos
dirigentes do PC do B, resultando em mortes e prisões.
Na trama, apesar
de os dois últimos militantes que saem da casa em que se realizava o encontro e
deixados livres, serem personagens ficcionais, Coutinho e Rui, houve sim um ex-dirigente
do PC do B acusado de entregar informações que levaram ao cerco da Casa da
Lapa. Matérias e artigos a respeito são facilmente encontrados em pesquisas na
internet.
Agentes
disfarçados ou os chamados "cachorros" (militantes que, a maioria das
vezes, presos e chantageados pelos agentes), passavam a colaborar com os
setores de inteligência do governo, entregando informações fundamentais para a
perseguição de militantes de esquerda também são personagens na trama de VESTÍGIOS.
Personagem real
que encontra espaço importante nas páginas de VESTÍGIOS é o Grupo Secreto que
na calada da História deixou marcas de atuação da extrema direita no Brasil,
com ataques a bomba e atuação militar, acobertada e pouco comentada até hoje a
não ser por honrosas exceções em alguns livros de não ficção.
Mortes?
Desaparecimentos? Mentiras? Roubos? Fraternidades de poderosos acobertando
crimes, ganhando com a morte, com venda de armas, com contrabando? Então,
é só acompanhar o que acontece no Brasil, no Estado, no Município, no seu
Condomínio...
Como escritora,
acredito que a melhor matéria-prima para a ficção está na realidade.
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Para ler um trecho de
VESTÍGIOS Mortes nem um pouco naturais de Sandra Abrano.
Clique aqui http://tomoliterario.blogspot.com/2018/10/entrevista-sandra-abrano.html Para acessar entrevista de
Sandra Abrano ao TOMO LITERÁRIO.
Nota: Sandra Abrano, escritora do livro Vestígios - Mortes Nem Um Pouco Naturais gentilmente cedeu o texto e as imagens para que fossem publicados no blog.
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