Lampião foi um homem que, para além de sua
existência, tornou-se um mito (ainda em vida) no Nordeste brasileiro. Sua
vontade tornou-se lei nas zonas rurais de Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba,
Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe. Sua passagem por tais lugares se deu no
espaço temporal de vinte anos.
Figura intrigante e que é tido como herói por
alguns, bandido por outros e fruto da construção social de seu tempo por
outros, não nos resta dúvidas sobre a força de sua representação e sobre a
curiosidade que desperta em quem dele ouve falar. O livro objeto da resenha,
Apagando Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço, publicado pela Global
Editora em 2018, trata do maior cangaceiro do país, revelando facetas do
intrigante personagem. Como bem destaca o autor na introdução do livro, a obra
privilegia “os acontecimentos ainda
controversos ou à sombra, a despeito dos oitenta anos decorridos de sua morte”.
O historiador Fernando Pernambucano de Mello,
num amplo e atento trabalho de pesquisa, incluindo livros, notícias, coleta de
depoimentos de quem viveu ou passou pela vida de Virgulino Ferreira, consolida
a história do biografado com ricos detalhes, as batalhas que travou, a
contextualização social, política e econômica, bem como todo o panorama de
ações realizadas por Lampião.
Acompanhamos a formação do cangaço, o
surgimento do movimento de banditismo em zonas rurais, as lutas empreitadas
pelo grupo de Lampião, relatos que versam sobre a infância do cangaceiro, a
situação do Nordeste no tempo em que Virgulino ali viveu. Não obstante, não
faltará ao leitor explicações sobre a vestimenta, o clima, os conflitos entre
diferentes grupos, a ação do Estado ante o temor provocado por Lampião, a
constituição de sua personalidade e o fascínio que ele exercia, tanto para a
população, quanto para a imprensa que o acompanhava e noticiava seus feitos.
Lampião morreu no ano de 1938, época em que
supervisionava dez subgrupos de cangaceiros espalhados pela caatinga e vários
estados nordestinos. O grupo central, que comandava o cangaço, reunia cerca de
vinte e dois membros, selecionados a dedo pelo líder. Lampião se deslocava com
esse grupo ao lado da esposa, Maria Bonita.
Numa vida relativamente curta, Lampião se
tornou um homem de luta e resistência, com inteligência aguçada, valentia e
coragem, além de visível carisma e eficaz trato social, um sedutor, por assim
dizer, capaz de manter a diplomacia com quem negociava e se conectar facilmente
com aliados que subsidiavam o grupo e permitiam que pudessem transitar.
“O bem
era o que ele queria. O que recomendava. Bom era aquele de quem gostasse.
Porque não sendo assim, na simples falta de apoio, e principalmente na traição,
pecado máximo, nada lhe custava matar. E matar malsinando previamente o
condenado, como se fosse um deus, com a frase tornada notória nos sertões do
Nordeste: ‘Vai-te pro inferno, cão!’”
O cangaço apresentou ao país homens que agiam
com crueldade, quase como uma “reação
diante da necessidade, cores de salve-se quem puder”, como destacou
Graciliano Ramos em artigo que escreveu para a revista Observador Econômico
Financeiro em 1938.
Dos relatos, destaca-se que o único incômodo
pessoal de Virgulino era seu olho direito, afetado por glaucoma que lhe roubara
a visão bastante cedo. Um mal que foi antecipado pela ponta de uma madeira
(ponta de pau, como diz-se no livro), coisa frequente para vaqueiros, atuação
que teve enquanto morava com a família.
Lampião lançou moda e atraiu a atenção de
muitos jovens. Quando Antônio Ferreira, homem fundamental na guerrilha de
Lampião morreu, ele passou a não cortar o cabelo; cortava-o apenas quando
sobrecarregavam os ombros. O corte virou moda entre os cangaceiros. A
vestimenta que utilizavam também chamava a atenção, alpercatas, espelhos,
moedas, lenços e o chapéu atiçavam a vontade do uso, incluindo membros da
polícia que não resistiram ao uso das alpercatas, por exemplo.
“A
importância do traje bebia no aproveitamento, pelo cangaceiro, de parte dos
produtos dos saques, cravados ou costurados sobre o equipamento, compondo
arranjos individuais...”
A falta de oportunidades econômicas, a imagem
de sucesso dos cangaceiros, a exaltação cultural promovida pela poesia que
tratava do assunto e se difundia entre a população, a ostentação de dinheiro e
joias que os membros do cangaço portavam, não deu outra coisa que não fosse a
imitação. A mocidade da época começava a reproduzir os símbolos do cangaço.
Foi na Bahia que Lampião conheceu aquela mulher
que o acompanhara por onze anos, até a morte; Maria Bonita. Tal era a alcunha
de Maria Gomes de Oliveira, filha de Dona Deia. Lampião abriu precedente: o da
aceitação de mulheres em grupos de cangaceiros, até então dominado por homens.
Dadá, de Corisco, é um exemplo que se seguiu a Maria Bonita.
A Bahia representa também o local em que o
cangaço teve uma “evolução estética”.
Foi a convivência das mulheres do cangaço com a família de coronéis que
culminou no aprimoramento estético dos trajes e equipamentos. Veja-se, por
exemplo, a presença da máquina de escrever e de costura (Lampião, inclusive,
costurava), o gramofone, a lanterna portátil, a garrafa térmica e a presença de
filmadora de 35mm que chegaram à caatinga.
Com a instauração da ditadura militar em 1937
houve acontecimentos que também tocaram os cangaceiros, entre eles a discussão
sobre pena de morte, cuja Constituição da época ensejava a medida para casos de
“homicídio cometido por motivo fútil ou
com extremos de perversidade”. Notadamente, miravam as ações de bandos do
cangaço.
No ano de sua morte, 1938, Lampião e seu
grupo, passaram por Alagoas e Sergipe, onde fixou-se nos últimos quatro anos um
certo capitão médico do exército que era interventor federal no Estado e amigo
de Getúlio Vargas. Dele Lampião se tornou dependente de tudo que não podia
obter por meio dos saques. Recebia do capitão munição militar de alta qualidade.
A morte de Lampião contém pontos nebulosos e
que despertam o imaginário. A obra, como o título alude, se propõe a esclarecer
os fatos que precederam a morte do cangaceiro no Angico, Sergipe. Quem
realmente foi o homem que matou Virgulino? Quem apagou o Lampião?
No ano de sua morte a migração do nordeste
ocorria a todo vapor. Lampião estava planejando ir para o estado de Minas
Gerais. “Mais de uma vez, o chefe
alertava os auxiliares de que o mundo começava a se fechar para o cangaceiro no
Nordeste, especialmente naquele Baixo São Francisco, talado à exaustão”.
A grota do Angico, local da morte do Rei do
Cangaço, era um lugar difícil de escapar, caso houvesse algum ataque. O próprio
Corisco já havia alertado que “Angico é
cova de defunto”. Mas, Lampião resolvera instalar o grupo ali pela
abundância de água.
Frederico Pernambucano de Mello descreve
detalhadamente a ação que levou Lampião à morte. Um único tiro que fizera o
corpo do homem tombar. Depois, como já sabido, o cangaceiro e outros mortos de
seu grupo, tiveram a cabeça decepada e apresentada em vários locais, como um
troféu mórbido, uma verdadeira “caravana
macabra”.
A obra do historiador é rica em detalhes e
torna-se um livro necessário para quem deseja conhecer um homem que fez parte
da história do país. Personagem polêmico, com nuances misteriosas, que até hoje
deixa as pessoas curiosas com sua vida e sua morte. Recomendo a leitura,
sobretudo para quem aprecia um excelente livro de não-ficção.
Sobre o
autor:
Fernando Pernambucano de Mello nasceu no
Recife, em 1947. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de
Direito do Recife, sua especialização profissional abrange, além do Direito,
Administração de Assuntos Culturais. Em 1988, foi eleito para a Academia
Pernambucana de Letras (APL). É membro do Instituto Arqueológico, Histórico e
Geográfico Pernambucano. Foi procurador federal no Recife, integrou a equipe do
sociólogo Gilberto Freyre na Fundação Joaquim Nabuco. Dentre outros livros é
autor de Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo do Nordeste do Brasil (A
Girafa), Estrelas de Couro: A Estratégia do Cangaço (Escrituras) e A Guerra
Total de Canudos (Escrituras).
Ficha
Técnica:
Título: Apagando o Lampião –
Vida e Morte do Rei do Cangaço
Escritor: Fernando
Pernambucano de Mello
Editora: Global
Edição: 1ª
Número
de Páginas:
332
ISBN: 978-85-92260-2455-7
Ano: 2018
Assunto: Cangaceiro
Foi omitido um item de relevante importância: o preço.
ResponderExcluir