A Camisa do Marido, da escritora Nélida
Piñon,foi publicado pela Editora Record em 2014 (158 páginas). Temos na obra
nove textos da autora.
O primeiro deles é A Camisa do Marido, que dá
nome ao livro e fala sobre uma mulher que perde seu marido após trinta anos de
convívio.
“Decidiu , então, que a camisa do marido o substituiria
no leito. Para isso, guardou a peça, machada de sangue, dentro de uma urna
posta na cama, como a lembrança mais duradoura do homem. Relíquia que
demonstrava um zelo que ele teria apreciado.”
A partir da morte e do luto surge o conflito
entre irmãos, destacando-se sentimentos controversos e a luta para ser o centro
da história da vida familiar.
“...o que mais haveria de lhes deixar como herança senão
a capacidade de dispor do pensamento frágil e instável com que averiguar as
oscilações do mundo?”
Em O Trem, um pai que adora trens leva os
filhos à uma locomotiva em que fantasia para si e para deixar legado a seus
filhos. A história do pai que pouco tem, mas que faz os filhos sonharem uma
viagem fabulosa, nos toca. A fantasia se sobrepõe a realidade, como que para
dar alento a vida e reforçar a necessidade de sonhar (seja lá por qual motivo
for).
Em certo conto do livro, aquele que leva o nome de
Dulcineia, temos a plena inspiração da autora no romance de Miguel de Cervantes
Saavedra. A obra clássica da literatura mundial, Dom Quixote, empresta os nomes
dos personagens, a loucura de um, a sensatez do outro, a tormenta da mulher que
é chamada de Dulcineia, sem que seja. No texto da escritora, para quem já leu
Dom Quixote, há muito da obra nos sentimentos que os personagens transparecem
ao leitor. Temos nesse conto o olhar da loucura sobre os fatos, as pessoas, as
coisas.
Nélida não deixa de passar por momentos nebulosos
das relações familiares, nem pela inquietude da mente do personagem. O que se
vê em A Mulher do Pai é a família abastada, patriarcal, cujo pai não dá espaço
ao filho. Este, por sua vez, tem desejos tórridos por aquela que é a mulher de
seu pai. Uma variação do mito de Édipo, que no livro de Sófocles se casa com a
mãe e mata o pai, sem o saber. Aqui, no conto presente no livro, um caminho
inusitado da trama, nos conduz a seu
desfecho, abrindo-nos a imaginar
possibilidades que se deram com aquela família, cujo cerne da relação revela-se
no patrimônio.
A traição feminina e a perda estão presentes no
conto Para Sempre. A mulher, com o passar do tempo, envelhece ainda jovem,
carregando a morte do amante e a do pai, que aconteceu logo depois. As perdas
se misturam.
Um envelope guarda a herança deixada pela tia do
personagem que faz a narração de A Sombra de Carlos. As relações familiares, a
lembrança do homem e de sua tia, as marcas da família e as impressões com o
dinheiro estão no conto.
"A chave que abria a porta
da casa descerrava também seus corações camponeses."
O trecho acima é de Em Busca de Eugênia. Conto que
trata de uma família e da personagem Eugênia que partiu. A narradora, irmã de
Eugênia, fala sobre sua família e traz lembranças sobre a irmã que não está por
perto, mas cuja busca incessante se faz presente nas recordações, na vivência
que tem os sobrinhos, na espera de um encontro que ainda possa acontecer.
A Quimera da Mãe é o próximo conto do livro e A
Desdita da Lira encerra a obra, falando sobre um poeta desiludido que ao fim da
vida desdiz o que fizera.
O livro de Nélida Piñon tem uma narrativa elegante,
rebuscada, de palavras bem colocadas e que trazem questões humanas. A ficção revela personagens que podem ser
identificados com o leitor ou, ainda que se mantenham distantes deles, carregam
nas entrelinhas de suas histórias um universo a ser descoberto por quem lê. Há
os personagens que sonham, os que se encontram em meio a conflitos, os que
namoram a solidão, os que pensam em dinheiro, outros que parecem formar a sua
própria ficção para fugir da realidade que não lhes apraz. Há saudade,
quimeras, poesia, literatura, relações que se desfazem e outras que se refazem.
Decerto que todos os contos tratam de relações
familiares, como a frisar que estamos todos conectados com nossa família, mesmo
que dela haja distância, mesmo que haja períodos de tormenta e de ausências,
ainda que nela repouse nosso sossego e nosso desconforto. Há as impressões
pessoais de cada personagem de Nélida que, fortes em suas narrativas, deixam
saltar ao leitor as suas características, num desnudar sútil, mas intenso. Não
importa se a família que fazem parte é carregada de luz ou se mostra sombria.
A Camisa do Marido é uma reunião de contos, de ótimas
histórias. Ainda que o livro tenha sido
lançado em 2004 seus contos são atuais. Leitura agradável e que nos leva pelo
universo do cotidiano narrado de ponto de vistas singulares.
Sobre a
autora:
Nélida Piñon | Foto: Reprodução |
Carioca, Nèlida Piñon estreou em 1961 com o
romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo. Ao longo de sua carreira, colaborou em
publicações nacionais e estrangeiras, proferiu conferências em diversos países
e foi traduzida para diversas línguas. É catedrática da Universidade de Miami
desde 1990, havendo sido escritora-visitante das universidades de Harvard,
Columbia, Johns Hopkins e Georgetown. Recebeu os prêmios brasileiros Golfinho
de Ouro, Mário de Andrade e Jabuti – este, de melhor romance e livro de ficção
de 2005, por Vozes do Deserto. E os internacionais Juan Fulfo, do México, Jorge
Isaacs, da Colômbia, Rosalía de Castro, da Espanha, Gabriela Mistral, do Chile,
e Menéndez Pelayo, da Espanha. Em 2005, pelo conjunto de sua obra, recebeu o
importante Príncipe de Asturias. É doctor
honoris causa das universidades Poitiers, Santiago de Compostela, Rutgers,
Florida Atlantic, Monteral e UNAM. Em 1990, foi empossada como imortal pela Academia
Brasileira de Letras, e em 1996, por ocasião do centenário da Academia,
tornou-se a primeira mulher a presidi-la.
Ficha
Técnica
Título: A Camisa do Marido
Escritor: Nélida Piñon
Editora: Record
Edição: 1ª
Número
de Páginas:
158
ISBN: 978-85-01-06633-6
Ano: 2004
Assunto: Conto brasileiro
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