Por Alexandra Vieira de Almeida
O novo livro de Patrícia Porto é um livro de
contos. Editado pela Penalux neste ano de 2018, A memória é um peixe fora
d’água apresenta quadros corriqueiros que ganham densidade dramática. O livro é
dividido em três partes chamadas aqui de tombos (Os ossos no porão – 19 contos,
Os crônicos – 5 contos e Fogaréu no céu, exílio na terra – 10 contos),
totalizando 34 contos curtos, mas que apresentam a tensão trágica própria do
drama. E não poderia faltar a referência aos mitos em vários contos. Massaud
Moisés em seu Dicionário de Termos Literários, assim disse: “No tocante à
linguagem, o conto prefere a concisão à prolixidade, a concentração de efeitos
à dispersão”. Temos nesses contos admiráveis a concentração de efeitos
literários e complexos que adentram nas camadas mais profundas de nossa
individualidade, fazendo o diálogo entre os elementos exteriores e interiores.
Os contos ganham densidade psicológica num curto espaço de tempo, eis a
estratégia narrativa desta grandiosa escritora Patrícia Porto.
No conto “Coturno 36”, temos a figura da
personagem que é uma moça que quer usar um coturno 36 e pede ao padrasto esta
incumbência de conseguir para ela este objeto de cunho masculino, já que no Dicionário
Houaiss se diz que o coturno é uma bota de soldado. O machismo do pai mostra o
preconceito com relação a este desejo da moça. E mais uma vez aqui a referência
ao teatro se faz presente, pois num dos significados de coturno no mesmo Dicionário
se revela o seu uso antigamente por atores nas representações, especialmente
nas tragédias. Esse objeto mostra uma imponência de quem o usa, figuradamente.
A personagem demonstra seu poder e força ao se comparar à figura do homem. É
uma mulher fálica que quer se sobressair perante o machismo do padrasto. O
final é surpreendente, deixando-nos impactados diante do poder desta moça
imponente. O padrasto fala: “E tu é homem? Vai usar coturno pra quê?” Com seu
dinamismo masculino-feminino, a moça resolve a questão pela agressividade e
violência. No sentido figurado, o uso do coturno representa nobreza, muita
importância e imponência.
No conto “Ícaro”, mais uma vez a presença da
densidade dramática, típica da tragédia, mas que é iluminada pela força
figurativa desses ricos e profundos contos. A personagem diz: “Ícaro morreu aos
sete meses dentro da minha barriga”. E
continua: “Fiquei anos me odiando pela escolha desastrosa do nome”. A ideia de
culpa é uma dos elementos desse conto magistral. Ícaro queria voar além, até o
sol, e, por isso, ganha o abalo de sua queda trágica. As imagens da vida e
morte, nascimento e queda, comparecem neste belíssimo conto. Aqui os símbolos
da subida e da descida, da anábase e da catábase se espelham paradoxalmente. A
ensaísta Danielle Perin Rocha Pitta, no texto crítico “Iniciação à teoria do
imaginário de Gilbert Durand”, assim disse sobre este importante teórico das
estruturas antropológicas do imaginário com relação aos símbolos metamorfos:
“São aqueles relativos à experiência dolorosa da infância. A queda tem a ver
com o medo, a dor, a vertigem, o castigo (Ícaro). Mas a queda frequentemente é
uma queda moral (pelo menos no Ocidente) e tem então a ver com a carne, o ventre
digestivo e o ventre sexual e daí, com o intestino, o esgoto, o labirinto, e o
cair-se no abismo, e o abismo pode ser tentação.” O gerar a vida tem cheiro de
morte e a ideia da culpabilidade materna se apresenta neste conto dramático e
simbólico.
No conto “O método”, temos a tensão entre
dois seres, um casal, homem e mulher. Encontramos a reciprocidade e o
paralelismo, a mesma moeda com que se paga na relação entre ambos. Com seres
tensos como numa corda esticada para os dois lados, vemos a tão intrigante
“guerra dos sexos”. Ele se apresenta como desinteressado pelos gostos e
assuntos da mulher. A incomunicabilidade dele forma uma teia de aranha entre os
dois, minando o relacionamento conturbado: “Claro que ele não acredita em nada
do que eu digo. Nem eu acredito em nada do que ele diz”. A palavra “paz” cria
um clima denso, na verdade. Há uma reversibilidade irônica, pois, na verdade,
não é a paz que impera no casal, mas sim o conflito. Ele se caracteriza pela
secura, sem amor, até mesmo no sexo, que se tornou uma coisa mecânica, por
obrigação dele. Ele tem todo um método. E por isto, ela vai tentar reconfigurar
o espaço deles e não consegue. Ela tenta redesenhar o relacionamento pelos
objetos da casa, mas não se sente confortável e tudo volta para o mesmo lugar.
Ela consegue criar seu próprio método, pois não consegue se adaptar ao método
dele. Por isto ela flerta com a literatura, com a linguagem simbólica, para que
a realidade não a deixe cair por terra. Enquanto ela é sentimento, ele é
frieza. A tensão está configurada e ela tenta driblá-la com a criatividade. A
solidão, o vazio e a incomunicabilidade se perdem no tempo da eternidade. Ela
escreve poesia para matar o tempo. Ao contrário do amor, o desamor ganha força:
“O amor que não existia dentro do caderno. Nem mesmo o amor menor. O desamor
era tudo”.
Em “O nascimento de Vênus”, encontramos o
contraste entre o trágico e o cômico, mas não deixando de lado o questionamento
da personagem na sua crença ao esoterismo, à astrologia. No mapa astral, a
personagem convive durante anos com o ascendente errado e após o descobrimento
destas veredas “reais” tem um choque, fazendo-a entrar em conflito com relação
aos seus apegos ao misticismo e, num tom, de niilismo, ela questiona a crença a
partir do vazio e do desapego: “Descobri desta maneira um tanto pitoresca o
quanto nos apegamos às coisas, as mais incrédulas, as menos questionadas,
creio”. Paradoxalemte, no final das frases, ela utiliza uma ironia ácida, a
palavra “creio”, que, na verdade, revela a descrença da personagem com relação
à vida e seus percalços. A tensão aqui não ocorre entre dois seres, mas no
interior dúbio e ambíguo da personagem que tem uma referência errada que quebra
com seus padrões de verdade. Há uma contradição entre o que ela é, sua personalidade,
sua persona, com relação à máscara trágica, sua aparência. Questiona o
ascendente por não ter a ver com ela. A astróloga conta o mito de Afrodite para
ela e a questionadora recoloca o mito de acordo com seu ponto de vista, havendo
um jogo psicológico tenso e denso em sua persona. A ressignificação do mito por
Patrícia Porto é excepcional neste conto, ganhando toda sua força dramática: “O
caminho da verdade é a dialética”. Assim, temos a personagem e seus fantasmas,
suas questões. Mas, por outro lado, a personagem conclui que deve haver uma boa
dose de “fantasia” na nossa vida para que o real não nos choque com sua
descrença. No final do conto, de forma surpreendente ela busca a ciência, o
ponderável, “o equilíbrio libriano”, por assim dizer. Como não nos lembrarmos
aqui do conto “A cartomante”, de Machado de Assis. Aqui a referência é
marcante.
No conto que fecha o livro, “A gata amarela”,
temos a imagem paradoxal da violência e proteção, ao mesmo tempo, na imagem de
uma gata prenha que tem os seus filhotes. Aqui, temos um conto dentro do conto,
criando um grande impacto literário: “Quando nasci fui adotada por minha avó, a
mãe de todos”. Num processo de seleção, a personagem vai contar aquilo que foi
mais importante na sua infância, o que mais a impactou, pois o conto conciso revela
uma grande concentração conteudística que se reconfigura em várias chaves de
interpretação, criando-se assim um quadro vivo e dinâmico em toda sua expressão
que navega nos múltiplos espelhos das questões que nos são mais urgentes. O
filhote, o que é rejeitado pela mãe é que é acolhido pela menina que se
surpreende com o fim trágico do pobre animalzinho: “Digo isto pensando que sou
filha da sorte: sobrevivi para contar esses sonhos, delírios, memórias, causos,
esses ossos todos da gata amarela. Guardem aí nos porões dessas casas
barulhentas”.
Portanto, Patrícia Porto consegue aliar a
imagem da extensão de sua profundidade poética a textos curtos que nos têm
muito a dizer com seus jogos de espelhamentos, paralelismos, contrastes,
ironia, numa linguagem rica em significados que vão deixar marcas nos leitores
atentos. A força da dramaticidade densa de seus textos reconfigura a potência
do conto que ganha ares de relevância em meio ao caos da realidade. A persona e
a máscara se densificam nas finas letras desta escritora que tem muita
complexidade em seus contos concentrados que revelam a dimensão do mito e da
realidade. Ela une os dois num jogo tenso, mostrando que a literatura tem muito
a dizer para seus leitores. Que ela ganhe cada vez mais receptores, ávidos por
sua primorosa literatura que arranca do abismal a sua potência de arte
verdadeira.
“A
memória é um peixe fora d’água”, contos. Autora: Patrícia
Porto. Editora Penalux, 98 págs.,
Disponível em:
E- mail: vendas@editorapenalux.com.br
A
resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
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