“Mesmo entre reencarnações sucessivas,
se perpetua os equívocos de um passado que se mistura no presente e prejudica o
futuro.”
(Norberto
Peixoto, no prefácio).
Adentramos Rio
Vermelho com o sonho de um homem que é enxotado de uma espelunca na zona
portuária de Salvador. O velho bêbado, do lado de fora do estabelecimento, se
põe a sonhar. O sonho que ele tem apresenta a história de escravos, que
chegavam ao país nos cargueiros e tratados como mercadoria, eram vendidos aos
senhores de engenho, gente branca e de posse. Um dos compradores de escravos,
proprietário de uma fazenda é Antônio
Tobias Menezes de Alcântara, responsável também por levar o homem para atuar
num engenho na Ilha de Itaparica, como feitor. O que ele não sabia é “cansado de ver os horrores do mar”
enfrentado com a situação dos escravos nos navios, agora enfrentaria os
horrores em terra.
O leitor é levado
para Angola com o jovem Akinsanya, ou simplesmente Kina, como costuma ser
chamado. Ele tem sonho com uma mulher, sem boca, sem olhos, sem nada no rosto.
Uma mulher branca, de braços grandes e careca. É de lá, do seu país, que ele
tem o destino traçado quando acorda num navio “amontoado com vários outros negros e negras, os quais assim como ele,
haviam sido aprisionados para serem vendidos como escravos.”
Temos aqui a
apresentação de dois personagens que são fundamentais na trama acompanham o
leitor no desenrolar da história, com aparições que podem e devem ser interpretadas.
Outrossim, vale dizermos, que além desses conheceremos a família de Antônio
Tobias de Menezes de Alcântara, sua esposa, o passado da família e tudo mais
que envolva o funcionamento do engenho, o que inclui, logicamente, a violência
física e psicológica empregada contra os negros, que estão na condição de
escravos do engenho.
Uma história do
passado é contada pelas mucamas, quando a nova esposa do senhor quer saber
sobre o que acontecera com a primeira esposa de seu marido. Nos sonhos que
alguns personagens revelam há uma figura estranha.
Ana espera um filho
de Antônio, mas é capaz de atos cruéis, sobretudo contra os escravos. E se
sente atormentada pelo passado, além de sentir-se ameaçada pelas relações que o
marido pode ter fora do casamento. O filho ou os filhos dele atormentam o
imaginário de Ana.
Há uma passagem no
tempo, necessária para que compreendamos o quão a história dos tempos passados
afetam a vida de quem está em outro tempo. Não estamos mais na época em que o
açoite brandia nas costas dos escravos. No entanto, a história ainda se passa
naquele local em que outrora existira a fazenda do sádico senhor de engenho, o
homem branco e sua família, que depositava a ira na conta de gente que estava
numa condição de fragilidade.
Padre Cipriano
chega a Ilha de Itaparica. Ali o homem vai vivenciar situações sobrenaturais.
Aquele que parecia o seu chamado para atender ao clamor de um povo, é também o
chamado que trará o autoconhecimento. Talvez seja esse o mais profundo
chamado que o padre tem. Sua vocação, suas crenças, sua fé pode ser questionada
e ele tem de seguir aquilo que manda o sonho, que manda o coração, que o
sobrenatural solicita.
“Um magnetismo acima da razão
o obrigava a voltar para aquele lugar, em busca de algo que lhe foi amputado,
antes mesmo que pudesse entender do que se tratava. E somente ali, na Ilha de
Itaparica, conseguiria descobrir o que era, nem que precisasse escavar suas
raízes, um fragmento daquela memória coletiva.”
Também entra em
cena Pastor Nilo, representação de preconceitos arraigados contra os negros que
não se curvam ante aquilo que ele prega. Observem atentamente o contraponto que
Nilo e Cipriano fazem, no que refere-se ao aspecto religioso. Um tem sua crença
questionada, o outro quer impor a sua a todos.
Nessa segunda
metade do livro, longe do tempo da escravatura, vamos mergulhamos na história
do padre e também da Ilha. Serão resgatados aquele passado de sofrimento, dor e
morte. Se temos claramente a diferenciação da humanidade pela cor da pele,
passamos aqui a ter também a distinção pela religião, pelas crenças, pela fé.
Inegável dizer, contudo, que são os negros mais uma vez tratados como aqueles
que servem ao diabo. Seus cultos e suas crenças são minimizadas, desprezadas,
anuladas e adjetivadas de forma cruel e vil.
O sincretismo
religioso, abarcando protestantismo, catolicismo e candomblé, aparecem na
obra. A religião surge como pano de fundo para trazer ao leitor a imagem da
diferença que impera nos tempos atuais, diferenças essas que por vezes, em vez
de serem respeitadas e valorizadas servem para aprofundar preconceitos e
conceitos equivocados. Servem para que o discurso seja usado para a
promoção do ódio, do racismo, da profanação religiosa.
Foi a partir de
uma situação real em que várias casas de religiões com matizes africanas foram atacadas que a Luva
Editora encabeçou a ideia de escrever o livro. Rio Vermelho, publicado em
2018 (173 páginas) traz vinte e três autores para contar uma única história. Um
trabalho ousado da editora. Quarenta e seis mãos se unem para apresentar ao
leitor uma narrativa cheia de realismo que se passa na Ilha de Itaparica. Nas
senzalas de outros tempos os negros sofrem, no tronco suas peles são feridas,
as marcas ficam em seus corpos e em suas almas. Alma que os brancos abastados e
cheios de preconceito acreditam que eles não possuem. No tempo presente o
racismo reaparece, o preconceito religioso se perpetua, a intolerância se
manifesta.
A editora acerta
ao trazer uma obra ficcional que contém elementos históricos, sociais,
culturais e que aborda preconceitos, racismo, a cegueira provocada pela fé, o
questionamento sobre a própria religiosidade. Questões sociais e políticas
estão na obra e chama o leitor para a reflexão. E, não faltam os elementos de
horror e terror, na medida certa.
O sobrenatural
presente no livro manifesta-se de diferentes maneiras e em diferentes personagens.
Ali, onde funcionara a fazenda e negros sofreram maus tratos, ouve-se vozes e o
arrastar de grilhões. Sonhos dão a alguns personagens tanto uma visão do que
poderá vir a acontecer (aparecendo como elemento enigmático na trama) ou
revelando fatos passados. Aparições, incluindo a de entidades de religiões
africanas, aumentam o mistério.
Escrever um livro
com vários autores para contar a mesma história é um desafio ousado, repito.
Mais do que isso, nos soa quase como um trabalho insano. Juntar pontas,
garantir unicidade, manter a qualidade, prender a atenção do leitor sem que
haja lacunas ou queda na tensão que paira no ar, preencher espaços que podem
intricar a leitura, respeitar o estilo de cada escritor e escritora deve ter
sido um grande desafio para o editor Vitor Grazziano e também para os autores
que participam da obra. Imagino o quão "maluco" deve ter sido esse
processo. Mas o resultado fala por si só e o livro está surpreendente.
A história tem uma
boa narrativa. Em que pese o fato de que sejam autores diferentes e, que por
isso mesmo, consigamos identificar a alternância dos estilos narrativos, a
história se consolida. Há suspense, há mistérios, há terror, há horror
manifesto pelas ações humanas e há impacto pela abordagem sobrenatural que aparece
integrada ao longo do livro, das diferentes vozes que dialogam com quem lê.
Destaco a abertura
da obra com uma narrativa que nos coloca dentro do cenário. Márcia Medeiros
que dá o Marco Zero do livro detalha tudo aquilo que precisamos para visualizar
a época da escravidão e a prática naquele engenho. É um convite ao mergulho que
podemos fazer na história. Se jogue de cabeça.
Participam do
livro os escritores: Alan de Sá, Bruno
Godói, Talita Facco, Carlos H. F. Gomes, Brunna Brasil, Caesar Charone, Ricardo
Ventura, Henrique de Micco, Luciano Pezzan, Fábio Fernandes, Oscar Nestarez,
César Bravo, Márcia Medeiros, Gustavo Lopes, Jonatan Magella, José Beffa, Soraya
Abuchaim, Renata Maggessi, Hedjan C. S., Isaque Q. M. Lazaro, Thiago Kuerques,
Vitto Graziano e W. F. Endlich. O prefácio é de Norberto Peixoto.
Ousado trabalho.
Um livro que arrebata os leitores.
Ficha
Técnica
Título: Rio Vermelho
Escritor: Vários
Editora: Luva
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-93350-15-3
Número
de Páginas:
173
Ano: 2018
Assunto: Literatura
brasileira
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