Por Alexandra Vieira de Almeida
O novo romance de Catarina Guedes Sobre
poeira e sol e uma certa calça floral (Penalux, 2018) faz parte de uma trilogia
e é o segundo volume da série Isadora e a BR. Contém 18 capítulos muito bem
encaixados e estrategicamente sequenciados numa estrutura leve e bem humorada.
O humor é a dose picante que compõe esse livro magistral. Deixando o mundo do
trabalho e da rotina de lado, Isadora se impõe férias antecipadas para rodar
pelo Oeste da Bahia, a região de Barreiras e outras, observando agudamente o
que se passa ao ser redor num tom descontraído: “Um dia saí de casa com a roupa
do corpo para entregar um press-kit num jornal e decidi mandar tudo às favas”.
O processo da viagem pela rodovia, passando por hotéis da estrada, a leva para
as casas de pessoas que ela vai conhecendo pelo caminho e, a partir das
relações complexas com o outro, ela se mira no espelho de sua própria face,
passando por um itinerário de autoconhecimento e reflexão sobre a vida. Suas
análises sobre o espaço são magníficas, mostrando-nos o quanto de filosofia da
experiência encontramos por aqui.
Passando por fazendas suntuosas e festas de
deixar qualquer um surpreso, é importante uma certa psicologia dos vestuários e
da gastronomia, juntamente com os espaços externos pelos quais Isadora vai se
misturando. E neste entremesclar entre corpo do ser e a carne da realidade vão
se figurando os espaços da adaptabilidade, como a roupagem externa vai vestindo
esta narradora-personagem. Isadora passa por mudanças. Transformações no seu
estilo de vida, gostos. Como uma camaleoa, ela se veste de acordo como a
situação que se lhe apresenta sem nenhum pudor. As situações engraçadas e
inusitadas pelas quais ela se movimenta produz traços fortes de humor bem
elaborado a partir de fatos cotidianos, como o diálogo consigo mesma através de
uma rã que aparece no banheiro do hotel. E neste processo de análise externa e
interna, ela vai comparando a cidade com o campo: “Quando eu morava na cidade,
as intrusas eram as baratas”. É de crucial importância este processo
comparativo entre cidade e campo, viagem interior e exterior, o dentro e o
fora, fazendo-nos lembrar do conto “O espelho”, de Machado de Assis, em que o
externo (a farda) dialoga com o eu da personagem.
Toda uma geografia do vestuário é apresentada
e não poderia faltar no título este momento em que a calça floral é um
componente forte na vida de Isadora. Esta se veste de acordo com seu interior.
O externo também a impacta, causando transformações na sua psicologia, caráter
e comportamento. Ela se surpreende quando em meio à estrada ela encontra
grandes lojas com roupas de grife para os moradores das fazendas de lá: Chanel,
Montblanc, Salvatore Ferragamo. É extremamente forte e impactante a invasão do
estrangeiro na vida de Isadora e daqueles moradores. A língua inglesa e
francesa são as principais em seu vocabulário, em que solta aos olhos a influência
da internacionalização no campo e seu processo de modernização e urbanização. O
surpreendente é isto, como uma mini-cidade está adentrando o espaço do campo,
com seus hibridismos e diálogos. Os desejos contidos de Isadora vêm à tona. Uma
das palavras de grande força no livro é o desejo. Como o desejo, o prazer molda
a vida dessas pessoas com grande intensidade. O desejo pelo consumismo de
Isadora não deixa, na verdade, que ela esqueça a cidade, a capital, ela está
mais viva do que nunca no seu interior.
A nova amiga Sheila lhe revela o mundo das
festas no campo, regadas a boas bebidas e comidas típicas da região,
entrecruzando o gosto do que é nacional ao estrangeiro. Apesar de Isadora ser
uma visitante naquele local, ela é vista como participante daquele mundo
campestre. Ela ganha tons de familiaridade naquelas zonas hospitaleiras. O
hospitaleiro é um elemento recorrente em seu romance. Como não nos lembrarmos do
tom hospitaleiro na epopeia A Odisseia, de Homero, em que Ulisses é bem
recebido em várias partes nas quais ele vai percorrendo ao longo de suas
aventuras. Isadora passa por uma intensa aventura que deixa marcas e inscrições
no seu corpo interno e externo. Os personagens se modificam ao longo da
narrativa. Sheila que teve uma educação religiosa, apesar disso não quer seguir
religião hoje e ultrapassa os limites do que é imposto pela sociedade. Há uma
reviravolta no mundo de Isadora. A cidade pequena pela qual ela se estabelece
por um tempo é invadida pela tecnologia e pela moda e gastronomia estrangeiras.
Temos até aeronaves, como a do atlético Adriano, por quem Isadora se apaixona e
de Piotr, um bonitão rico por quem Isadora não dá muita atenção.
No livro de Catarina Guedes há toda uma
psicologia dos afetos e relações, muito estrategicamente exposta. Como exemplo,
temos o método do ouvido seletivo de Sheila, que pesca aquilo que lhe aprouver
no momento certo. Encontramos as vidas destas pessoas endinheiradas no meio do
campo e o que pareceria fútil e banal à primeira vista, ganha ares de profundidade
das relações humanas, embora Isadora ache descolada a forma de conversar no
Skype com as amigas da capital. Apesar deste tom desinteressado, é com fina
ironia que Isadora revela a comparação entre o tráfego intenso do corredor na
festa e o tráfego na rodovia, fazendo um interessante malabarismo linguístico a
criar esta inusitada analogia. Entre traições, bebidas, festas, jogos de pôquer
e de sedução, Isadora vai levando tudo isto com sua flexibilidade natural, se
amoldando às situações. Não é só de festas que ela cria suas comparações
originais. Entre a moda e a rodovia, intensas metáforas são criadas: “Esse look
não tinha nada a ver comigo, mas estava tentando ultrapassar novas fronteiras
também na moda.”
Outro fator importante na sua narrativa, além
do autoconhecimento, são as verdadeiras aulas que o leitor tem no campo do
saber, aliando a sabedoria ao sabor, através de conhecimentos gastronômicos, do
agronegócio e até mesmo técnico, dos aviões. Não falta também conhecimento
político, pois no meio da estrada com seu fusca amarelo, Isadora se envolve na
greve dos caminhoneiros e é conduzida por eles a mostrar para a mídia a pauta
de reivindicações deles. A linguagem erótica também se faz presente. Isadora se
admira com Adriano, sendo revelada a atração mútua entre eles. Há uma intensa
sensualidade na descrição dele, que se revela como “um adônis esculpido em
âmbar”. Ele é quase uma “entidade mítica”, nem maduro nem muito jovem, a
ensinar para Isadora o saber/sabor das coisas. O clima quente e seco de Barreiras
condiz com as relações quentes e temperadas com forte atração.
A viagem de Isadora é sempre um itinerário de
adiamentos, o ponto de chegada nunca se apresenta, pois o importante é ir, é a
trajetória do caminho. Uma viagem sem compromissos e regras pré-estabelecidas.
Uma liberdade jamais imaginada em uma viagem. A rotina é completamente desfeita
pela originalidade dos fatos, das coisas inusitadas que vão ocorrendo nesta
viagem que amadurece Isadora. É intensa a força da mulher e seu duplo. Isadora revela
identidades até então desconhecidas, mas que se mostram pela complexidade da
viagem. E neste percurso, encontramos o contraste da cidadezinha de Taguá, um
“recanto perdido e quase congelado no tempo.” O exotismo da região é
apresentado, assim como a sua culinária típica e diferente. Um ambiente
rústico. O caubói de Taguá Roquessandro não se afina a nenhuma moral social e
conquista várias mulheres. Aqui, a moralidade usual cai por terra. Temos um
lugar emancipado, não se prendendo aos ideais românticos da mulher apaixonada
por um homem só. O casal monogâmico é deixado de lado nestas paragens.
Outro elemento de grande importância, no seu
romance também, é a música, tendo a influência da cultura estrangeira a partir
das citações de trechos de música em inglês, algo de que Isadora gosta muito e
leva para sua vida. Como não se encantar com trechos da música “The Zephyr
song”, do Red Hot Chili Peppers, que é atirada de um buquê do avião de Adriano
num arquivo de pendrive para Isadora. Esta, não tão romântica assim, não gosta
de flores, mas da tecnologia do dispositivo com a música. A força de seu
erotismo é mais forte, deixando os sonhos das princesas de lado. Temos análises
importantes e tacadas geniais de Isadora, que vai nos conduzindo nesta “imersão
antropológica” em sua viagem. Portanto, o que temos neste romance genial é um
aprendizado nas estradas, em que ela passa da relação humana e sentimental para
o tom mais social e politizado. Com descrições detalhadas, dignas de um Proust,
Catarina Guedes conduz seus leitores para uma verdadeira geografia literária.
As aulas em meio à narrativa, longe do tom didático e professoral, nos leva à
complexidade da vida. Aprendemos sobre aviação, plantação, culinária, vestuário
de forma humorística e comparativa. A aventura não pode terminar e é deixada em
aberto no fim do romance para que nossos olhos percorram as camadas de dentro e
de fora. É rica a metáfora das relações humanas com relação ao sistema solar,
do núcleo aos planetas, os contatos são importantes e impactam a vida de
Isadora profundamente, sem banalidades. Um humor fino e inteligente nas
estradas da vida.
“Sobre
poeira e sol e uma certa calça floral”, romance. Autora: Catarina
Guedes. Editora Penalux, 188 págs.
Disponível em:
E- mail: vendas@editorapenalux.com.br
A
resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário.