Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
O romance histórico, é gênero no qual a
narrativa se mescla com fatos históricos, é sabido. Todavia, nem sempre aparecem , há momentos em
que se expõem com mais freqüência, noutros quase desaparecem do cenário
literário. São sempre bem-vindos porque trazem à baila o velho e sempre
benéfico diálogo entre Literatura e História. Seja porque fatos e
acontecimentos demandam revisitação, seja para revelar “construções desaparecidas” – ou desconhecidas, silêncios impostos,
o não revelado de vidas pretéritas. O fato inconteste em História – nem sempre
aceito sem controvérsias -, é que a realidade carrega em si o descompasso entre o tempo passado e a
capacidade da história ser reconstituída. Esta fissura causa uma estranha
abertura entre cenário e atores – entre o passado e os sujeitos. E é
exatamente esta abertura o horizonte de sentidos que são os sons e as cores da
possibilidade de mudança do entendimento, pois carregam um amplo espectro de
subjetividades e desejos que a Literatura pode propiciar.
Daí advém,
penso -
e já escrevi sobre -, o promissor diálogo entre a História e a Literatura.
É caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, posto ser este um sistema
produtor de ideias que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão do
mundo: a racional e conceitual, que forma o conhecimento científico, e a das
sensibilidades e emoções, que correspondem ao conhecimento sensível. O
imaginário é sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da
realidade, sem com ela se confundir, tem nela seu referente.
Nascida da Independência, romance da
escritora Lilia Figueiredo, embora não tenha o desejo precípuo de revisitação
de nossa História, narra a vida de Liége, uma brasileira nascida justamente no
dia em que a historiografia oficial convencionou datar de dia da “Independência
do Brasil”, 7 de setembro de 1822, e olhe que já começamos com os equívocos de
data da própria História . Além da dificuldade de gênero (nascer mulher),
condição preterida até mesmo pelos pais, a trama revela as imposições da
sociedade patriarcal, machista, e reacionária quanto a qualquer desejo de
emancipação feminina. Ocorre que, é aí o diferencial do livro e da vida humana,
ao humano foi dado pensar e agir. E em assim sendo, reverter situações, por
pior que elas sejam. Pensar. É a tônica. Mas deixemos essas considerações de
caráter filosófico de lado, porque ainda hoje, como em 1822, há, como já se
disse, controvérsias. Ao enredo:
Líege, nasce
sob o manto de um segredo brutal. É filha de Elvira com Anthony, irmão de
Leopoldo Ranwez, casado com Elvira na base de imposições paternal. Já se vê que
um arranjo desses sempre acaba em traumas terríveis assim. E o leitor vai aos
poucos, e muito sutilmente se ambientando historicamente na conjuntura do
conturbado início de século XIX no Brasil, quando fugindo das tropas de
Napoleão (1808), a corte portuguesa embarca para o Brasil sob a tutela inglesa,
que não se restringe à fuga. Demora-se aqui por meros interesses comerciais e
estratégicos. Tão poderosos que conseguem até a permissão para a construção de
templos anglicanos – Trecho da narrativa que se passa por volta de 1829.
“O pai
de John morava no Brasil desde a mudança da Coroa portuguesa para a colônia,
incumbido pessoalmente pelo rei da Inglaterra de acompanhar Dom João nas
questões internacionais e mesmo em assuntos domésticos daquele escorregadio
regente. Era necessário alguém de confiança no coração da corte palaciana, e os
Nedercliff tinham uma longa tradição em serviços prestados às Suas Majestades
britânicas”. P. 39.
E é assim, pela influência do tio que é médico (em verdade pai biológico), que
Liége cresce e acaba por se deslumbrar com a medicina. Encanta-se e deixa os
leitores entreverem o estágio e avanços da medicina da época, como a invenção
do estetoscópio, o uso do Clorofórmio como anestésico, da tintura de iodo como
cicatrizante e a conclusão afinal de que as sangrias – tão comuns no século
XVIII - , não eram em verdade, tratamento benéfico ao corpo humano..... A bem
engendrada trama ficcional que a autora tece vai também nos mostrando os
intestinos de uma sociedade que, se por um lado, exaltava os valores da burguesia local de mãos dadas com a
importada da Europa no rastro da vinda da família real, por outro tratava os
escravos e descendentes como seres igualados à animalidade pura e simples.
Liége
revela-se desde cedo uma “criança curiosa”, o que, dada a sua condição de
mulher, em tal ambiente, “limitava mesquinhamente a sua fome de conhecimento”.
Aos poucos vai descobrindo as coisas da vida. Entre elas como se morria tanto,
e tão cedo em razão de doenças que a medicina da época nem desconfiava
diagnósticos, que dirá curas; conhece o brutal poder das intrigas humanas; é
amparada pela amizade sincera e filial, daqueles seres igualados a animais
inferiores que eram os escravos – em verdade seu verdadeiro lastro de
humanidade provém daí, seu sentido de justiça se desenvolve nesta convivência.
Conhece muito pouco e da forma que lhe é possível assuntos que a inquietam. E
acaba que o tal do amor, também vem lhe bater às portas, na figura de John, que
afinal lhe surge vigorosa, depois de tantos encontros e desencontros,
mistérios, suspense e paixão... uma teia bem urdida a vida de Liége, como de
resto, a de todo ser humano.
A narradora-autora tem a coragem de desvelar
a sensualidade humana, pela ótica feminina. Interessante notar isto em um
romance ambientado no século XIX, coragem afirmamos, porque de certo, a
sensualidade sempre encoberta (e hoje tão deturpada para caminhos de perversão),
sempre foi sentida da mesma forma por eras e eras. Por ambos os sexos, por mais
que se lhe cubram com mitos de Adão e Eva, e paraíso e maçã e serpente! Veja-se
o trecho de suave sensualidade:
“O
vulto dele na parede se aproximou, e ela se virou.
As
sombras se sobrepuseram.
Era
para ser apenas um roçar de lábios. Depois, um enlace na cintura, no pescoço.
Então eles se conteriam, parariam de retribuir. No enlevo, mechas escuras se
soltaram do arranjo, e ele tentou aparar as ondas sedosas; dedos delicados
despentearam o louro de trigo maduro. Isto está muito errado. As bocas não se
contentaram com a carícia leve e exigiram mais. Isto está muito certo. Estavam
sentados na palha? Pressionou-a ou foi puxado? A saia subiu preciosos
centímetros, revelando parte da perna nua; assim ficou, e a mão entendeu o
convite para trilhar a senda. Quem inventou o uso de casaca no verão dos
trópicos? Quem planejou aquelas roupas íntimas femininas? Havia muito pano e
pressa entre eles, aos poucos foram sendo afastados e atendidos, o suficiente
para aplacar a urgência. Ele aceitou o que lhe ofereceu, ela entregou o que lhe
pediu”. p. 25.
A respeito de
sensualidade e sexualidade a narrativa é bastante esclarecedora quanto à
mentalidade de então, onde era comum, pais e homens poderosos fazerem uso
sexual de outras mulheres (negras claro) em total desfrute, a despeito da tão
ostentada “moralidade”, o que deixava as mulheres, sobretudo as jovens, a mercê
da mais completa ignorância no assunto. Memorável a cena de uma relação sexual
desastrada entre uma virgem e seu marido na primeira noite de casados, e
narrada no capítulo 19. A ignorância mãe de todos os despautérios (insegurança,
medo, ciúmes, desespero, mal-entendidos etc., etc., e etc.), quase acaba com o
casório.
A ficção
estimula o conhecimento através da experiência com outros mundos, outras
épocas, outras gerações a partir de situações complexas e delicadas, (como a
exposta no romance), através das quais se fomenta a identificação do leitor com
as personagens envolvidas. Constitui valioso elemento para todos nós viventes aqui
e agora, que teremos
inevitavelmente de enfrentar ao longo de nossas vidas, uma série de questões éticas e morais, cujas respostas não se
encontram em manuais e muito menos em literatura de
auto-ajuda (hoje tão pródiga), e que prefiro denominar literatura piegas.
Mas Liége é também mulher obstinada, em que
pese a quase impossibilidade de então. Ela jurara para si mesmo desde os 13
anos de idade alcançar seu objetivo (Independência?) na vida. Ser médica, aí
sua luta maior... A verdade da ficção literária não está em
revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar
a leitura de questões em jogo numa dada temporalidade, existiram enquanto possibilidade, como personalidades que retratam
sensibilidades. São reais na “verdade do simbólico” que expressam. Personagens dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtudes humanos, porque
nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes
da vida. Porque falam
afinal das coisas para além da moral e das normas,
para além do
confessável, por exemplo, o “ser-precisamente-assim das circunstâncias”, que György Lukács menciona.
No entanto, - e com que prazer lemos -, as “Notas finais”. A autora nos informa que Maria Augusta Generoso Estrela (1860 -1946), aos 16 anos vendo-se impedida por lei de estudar medicina no Brasil, partiu para Nova York em 1875. Foi a primeira mulher brasileira a se formar em medicina, em 1881, pelo New York Medical College and Hospital for Women, em Nova YorK, e que a gaúcha Rita Lobato Velho Lopes (1866-1954), recebeu seu diploma em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1887. Um ano depois, em 1888, foi a vez da Gaucha Ermelinda Lopes de Vasconcelos. Vemos portanto que essa ficção é inspirada em personagens que existiram de fato, e venceram as barreiras que o tempo lhes impôs. O livro de Lilia Figueiredo, que também é médica, é, portanto, uma homenagem à história dessas pioneiras da medicina Brasileira. Debaixo dessas e outras questões que o tempo ainda não apagou (e se refletirmos há muitos resquícios de tudo isso ainda nos dias que correm), é que vale embarcar nessa viagem no tempo proposta pela senhora Lília Figueiredo.
Livro: “Nascida na Independência” – Romance
histórico de Lília Figueiredo - Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 2018, 256
p.
ISBN 978-85-5833-365-8
Link para compra:
(* )Krishnamurti Góes dos Anjos.
Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico,
Gato de
Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado
Intelecto e outros contos e Doze
Contos & meio Poema. Tem
participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de
Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina,
Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado
pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico,
obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira
de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com
resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais:
Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal
RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento
Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e
Revista Laranja Original.
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