Por Alexandra
Vieira de Almeida
Em Garrafas
ao mar (Penalux, 2018), novo livro de poemas de Adriane Garcia, a poeta faz
do mínimo o transbordamento afetivo de todo o mar, como se nele a linguagem se
afundasse em profundos e nobres segredos. O êxtase do mar está cheio de
mensagens cifradas, fugindo do óbvio minúsculo das superfícies. A profundidade
em Adriane Garcia é seu código para as letras grávidas de luz e sombras.
Lembro-me aqui de uma frase de Nietzsche, com quem Adriane dialoga num dos
poemas: “A consciência é uma garrafa vazia num oceano de afetos em maremoto.” E
numa das epígrafes do livro de Garcia, encontramos um Mario Quintana filosófico
a trazer para nós a força do poético: “O poema é uma garrafa de náufrago jogada
ao mar/Quem a encontra/Salva-se a si mesmo.” A poesia é nossa salvação em meio
ao caos da humanidade, parece nos dizer a poeta aqui em questão que busca a
utopia longínqua do poético como ultrapassagem da crueldade que assola nossa
sociedade com a violência, as guerras, a fome.
No poema que abre o livro, “Prozac é na
farmácia”, descobrimos como o inusitado surge no cotidiano, como se quebra a
lógica do real pela poesia nova e original: “Minha poesia/Se jogava da escada”.
Em “O senhor tem fogo”, temos uma heroína contemporânea, um diálogo com a
história. Nela, o contemporâneo forma um diálogo com a tradição, trazendo o
passado para o frescor do presente. A Joana francesa se transforma com a linguagem
americanizada, “a dark”, traduzindo o jogo com as palavras, o obscuro, a
escuridão, o implícito é revelado pelo fogo da explosão do claro e explícito, a
luz e a sombra se conjugam num abraço pleno de beleza e mistério. O que se
esconde e o que se mostra é uma das armas secretas de Adriane para driblar a
concisão de seus poemas, que caminham desde o poético, o cotidiano e o
prosaico, deixando o enigmático para as invasões abarcantes do leitor.
Em “Excesso de sol”, temos a desconstrução do
bíblico pelo viés do lírico. Garcia não se enaltece apenas pela luz, pelo claro
e ofuscante, a obviedade sofre uma torção no real, nos deixando o gosto do que
se esconde sobre suas dobras, no mistério do que é treva e infinitude: “Jamais
um homem/Ou um anjo/Poderia olhar diretamente/Para Deus”. Em “Constrangimento”,
a luta corporal entre estar e ser mostra sua dose de ironia e sarcasmo. O sujeito
em sua essência, o domínio do “eu” não se encontra e completa sob a
transitoriedade do “estar” à beira do precipício. Garcia produz uma torção no
cotidiano que é dilatado para que nós enxerguemos melhor. Seus poemas curtos
têm grande intensidade de carga expressiva, fazendo valer a máxima poética.
Não só o poético, mas o sagrado e o mítico
irrompem de sua poesia magistral, fazendo uma Iemanjá se molhar na podridão de
uma baía, criticando a poluição e o caos urbano. Além do religioso, não poderia
deixar de comparecer em sua arte a metalinguagem tão desgastada na
contemporaneidade em imagens banais e triviais, mas que em, Adriane Garcia,
ganha contornos ricos e inusitados. Na sua poesia que contrasta fala e faca,
temos os jogos com as palavras semelhantes na sonoridade, mas diversas nos
sentidos, produzindo um labirinto de harmonias contrárias. O substantivo
concreto “faca” produz abstrações a partir do corte enviesado, fora do padrão
exato, fazendo nascer a “faca-metáfora”, que sangra, faz doer a pluralidade dos
sentidos. O tradicional, em Garcia, é ressignificado o tempo todo pelos olhos
do presente da poeta anfíbia e plural. O fogo-fátuo do instante produz suas
eternidades.
Adriane Garcia tem um vasto conhecimento,
passando da poesia, da pintura, do sagrado, do biológico, da medicina e da
tradição anterior. Em “O coelho e a tartaruga”, retoma a moral das fábulas, a
partir de Esopo e La Fontaine. Enquanto o ódio é rápido, o amor é devagar.
Assim, temos o gênero narrativo dentro da poesia, misturando a prosa e o
poético. Enquanto em Clarice Lispector, esta trazia a poesia para a prosa,
Adriane, com plena liberdade e força criativa, traz o prosaico para dentro da
carne poética. O multiuniverso de conhecimentos de Garcia nos mostra seu pleno
domínio de saberes diversos e seu livro é uma miscelânea dos conhecimentos mais
profundos sobre cada assunto. A fábula é um gênero enxuto, casando-se bem com a
poesia desta poeta por ora aqui apresentada. Em sua poesia há a sabedoria mais
sublime, entrecortada pela sabedoria popular, o coloquial, o livre e
espontâneo.
Adriane Garcia | Foto: Ricardo Laf |
Adriane Garcia também revela o sofrimento e a
fragilidade de nossos corpos. A doença comparece. Ela faz uma análise cirúrgica
e bem detalhada. Podemos ver num de seus poemas “Ostea porosa” como a dor ganha
sua dimensão expandida a partir da repetição, mostrando a gradação do aspecto
frágil de nosso corpo, que apesar, da elevação grandiosa do poético, nos expõe
a fraqueza que se contrapõe ao dom imortal da escrita. Em “Inadequação”, temos
um diálogo com nosso poeta maior, Drummond, que em “A flor e a náusea”, revelou
a força do poético no chão de nossa realidade, o que Adriane Garcia nos apresenta
tão bem nas entrelinhas fiáveis de sua teia poética: “Saber que há
flores/Estando onde só há/Deserto.” Em Adriane, o fabular, o féerico e o mítico
irrompem do chão do real, trazendo seus perfumes num deserto de silêncio e
estagnação. As sereias vão transmudando a realidade que é perecível, como os “enlatados”.
Estas inadequações na poesia de Garcia nos expõem os contrastes precisos e
certeiros, como pregava um dos homenageados de seu livro, o pré-socrático
Heráclito, através de sua “harmonia dos contrários”, a completa junção entre o
arco e a lira.
O transbordamento da imensidão do mar em
contraste com as pequenas garrafas hermeticamente fechadas revela o encontro
desta riqueza dos opostos, que encontramos na poesia impactante de Garcia:
“Julgava-me uma sábia/Que tinha a idade do mar”. Este em sua profundeza abismal
revela segredos e dons poéticos que a poesia verdadeira de Adriane nos
apresenta em frascos encantados de memórias e confissões. Por vezes, em algumas
de suas poesias, temos o tom confessional do trabalho da poeta que se derrama
neste mar vasto da beleza. Estes contrastes comparecem em sua poesia, que
mescla o bíblico, o mítico, o cotidiano, causando um impacto em nossas retinas
“fatigadas”. Ela mistura um vocabulário chulo, por exemplo, ao romântico e
sublime, desconstruindo a poética elevada pela revelação do caos cotidiano. Ela
diz em “Poético”: “Da puta que o pariu da noite diáfana”.
Este encantamento das coisas contrárias, das
similitudes de coisas distantes, mostra por outro lado seu desencantamento em
que as coisas devem ser nomeadas por sua identidade: “E pau é pau/Pedra é
pedra.” Com as metáforas para o suicídio produz os enigmas do ser e seus
deslizes: “Já matei várias de mim/E umas se mataram às outras.”. Temos até
mesmo a desconstrução da figura do poeta ideal, com a imagem do poeta “torto”,
maldito em “Inútil unção dos enfermos”: “Jogue água benta no poeta/E verá/Onde
há fumaça/E fogo”. Além dos assuntos poéticos, Garcia não deixa de refletir
sobre nossa realidade cruel, como o sofrimento das crianças, a partir da fome e
das guerras. Faz um poema dedicado à Marielle Franco, mostrando o grito de
nossa liberdade, que a luta sobrevive mesmo tendo o caos para nos amedrontar. A
desilusão com os vivos a faz gostar mais do reino dos mortos, onde não imperam
os vícios e paixões, mas o “Zero” e o silêncio. Por vezes, o tom confessional
da poeta faz lapidar as entranhas de dentro do ser, como em “Chistiane F”. Em
certas análises de nossa realidade pútrida, como ver o belo em meio à podridão?
Nestes momentos, sua poesia me faz lembrar da linguagem escatológica de Augusto
dos Anjos que revelava o feio e o asco em meio à beleza de seus versos. Adriane
Garcia consegue a difícil proeza de revelar a violência e a crueza da realidade
com a fina flor da poesia.
Os jogos de linguagem são perfeitos em sua
poesia. Temos, por exemplo, o jogo entre o gramatical e o biológico numa
criação inusitada, conjugando palavras e espécies, como em “Genoma
constrangedor”: “Eu/Tu/Ele/Nós/Vós/Eles/Somos/Da mesma espécie”. Além dos jogos
de linguagem, encontramos um trabalho de reescritura do passado, como podemos
ver em “Ecce homo”, onde a poeta só consegue entender a frase que Jesus disse
–Ama ao próximo como a ti mesmo – pelo olhar de Nietzsche que dizia – Torna-te
quem tu és. Dessa forma, o sou é espelho do outro. Só conseguimos nos enxergar
pelo olhar do outro. Em suas poesias amorosas, encontramos o mistério do amor
que não tem explicações e respostas fáceis, como em “O morador”. Encerrando o
livro, temos o poema-título de sua obra, que reflete sobre a morte das baleias e
o mistério das mensagens que nunca se abriram na vastidão do mar. O poema ainda
fala da infância da poeta: “Sim, eu tive baleias na infância”. Portanto, em
Adriane Garcia, encontramos uma poeta madura, que domina a urdidura poética,
causando impactos inusitados nos leitores. Sua poesia versátil, completa e
plena de sentidos nos conduz à imensidão do mar e suas profundezas, ganhando
cada vez mais espaço no cenário da poesia brasileira contemporânea.
“Garrafas
ao mar”, poesia. Autora: Adriane Garcia, 164 págs.,
2018.
Link para compra: http://editorapenalux.com.br/loja/garrafas-ao-mar
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Alexandra Vieira de Almeida |
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
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