Por Krishnamurti Góes
dos Anjos (*)
No dia 22 de julho de
2018, acordei cedo para a labuta de sempre com a crítica literária. Enquanto
tomo o café fico sabendo pelo noticiário da TV a cabo que o mês de junho
registrou o maior número de mortes em um ano e meio entre imigrantes que
tentaram entrar na Europa pelo Mar Mediterrâneo, segundo dados da Organização
Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM-ONU). Entre os dias 1º e
30, pelo menos 629 mortes foram confirmadas na região, incluindo o Mar Egeu. O
total é quase igual ao número de mortos nos cinco meses anteriores, entre
janeiro e maio. Já em julho o número de mortes chegou a 198 até quinta-feira
(19). Levo a chácara de café quente aos lábios para um gole, enquanto a imagem
de uma sobrevivente camaronesa de 40 anos chamada Josepha, que passou dias no
mar agarrada a destroços ao lado de corpos me faz queimar a boca com o café. A
criatura tinha, ao ser resgatada, feições alucinadas pelo medo, um olhar
acossado no nada, lábios partidos, inchados, o corpo inerte, sem mais forças.
Um horror meu Deus... Atônito, e com os lábios ardentes, a imagem chocante me
fez lembrar de um poema que li ontem:
“Partes lentamente da vida”:
“Partes lentamente da vida / num barco ébrio de sangue
/ onde se inscreve a pele da noite / nesse festim. Dobras o vento, esse uivo /
que chega do Norte, nas pegadas de um silêncio / interdito e em que calas os
nomes / desenhados na lucidez das mãos.
Ninguém lê as pedras, os sinais, / ninguém decifra o
traço de sangue desse navio / que navega em direção a uma ilha, / neste
arquipélago de solidão.
Os gestos são irremediáveis, no instante / em que tudo
refulge para se afundar. Ninguém ouve / este naufrágio perdido no canto de um marinheiro
/ que sabe não voltar. A viagem é sem retorno.
Tu sabes, vais a caminho”.
Muito bem. O poema acima é parte do
livro “Do ínfimo”, da senhora Maria João Cantinho, escritora portuguesa que
viveu a infância em Angola. Doutora em Filosofia Contemporânea é também autora
de quatro livros de ficção, quatro de poemas e um livro de ensaios. Não sabemos
se em Portugal é assim, mas parece-nos que no Brasil é mais conhecida como
ensaísta, e notória estudiosa da obra do filósofo Walter Benjamin (1892-1940).
A esse respeito a própria autora em entrevista à Paulo José Miranda esclarece com propriedade e plena
consciência: “Eu diria que são passagens que se abrem (ou se fecham) e que a
poesia bebe nas margens do não-dito, do não-explicável, do que não é racionalizável,
do imediato, da pulsão, ao passo que o ensaio procura a claridade e a
explicação ou, pelo menos, a sua tentativa”. E vai mais além: “De uma forma
geral, os ensaístas são grandes leitores e isso faz muita diferença (a meu ver)
na poesia. Não entram nela de forma ingênua e desavisada”. Dito isto, Voltemos
a Benjamin que foi escritor, tradutor, ensaísta, crítico literário, sociólogo e
crítico de arte. Vale ainda acrescentar, a título de melhor situar o leitor,
que Benjamin desenvolveu seu trabalho baseado na concepção kantiana de crítica
como uma forma de reflexão, tanto estética como política, levando-se em conta
que esse ato de crítica, incluía todo o sistema cultural e também sua base
econômica. Dentre suas criações intelectuais articulou a teoria da história, da
tradução, violência, tendências da recepção da obra de arte dentre outras
questões não só pertinentes como atualíssimas. Uma autora de tal quilate é
verdadeiro e benfazejo achado. Veja-se este poema e sinta-se o sentido do
humano que ele nos transmite nesse mundo monstruoso que criamos e que brada por
saídas:
“Dobrar o corpo”.
“Dobrar o corpo ou a língua tanto faz / para que a
sombra nos salve / destes dias, sabes, em que nada parece viver / a não ser um
certo modo de indigência / a que todos se consentem, talvez por medo / de não
haver amanhã, ou uma grandeza qualquer / as palavras trazem esse inferno
irrespirável / insano, sem lugar para um certo azul / que revirava os dias de
esperança / e agora caminham cabisbaixos, medrosos / convenceram-se que o único
azul é este / o de que dispomos / um certo azul com vagas estrelas numa
bandeira / e o número do sapato não nos serve,
Já não o calçamos, sequer / andamos descalços, mas
continuamos a olhar / para esse céu de plástico e com estrelas mortiças /
desenhadas só para alguns, que por detrás delas / se escondem, com as suas
siglas formidáveis / a tresandar a poder, a feder / hoje é o sapato, irmão, só
te serve um / mas amanhã nem as calças te servirão / e o Inverno está à porta.
E perguntas? Sonhas?
Vão te deitar de joelhos / a sonhar com o pão / com a
casa que o banco te emprestou / enquanto as estrelas pareciam reluzir”.
E é pensando no que
já foi dito acima que vamos encontrar na segunda parte do livro, a prosa
poética “Caligrafia da Solidão”, em que ouvimos um eco ampliado do pensamento
de Walter Benjamin, (saliento e repito, que escrevi ‘eco ampliado’, não escrevi
intertextualidades e menos ainda preponderâncias). Um texto de difícil
definição, espécie de conto fantástico de apenas 17 páginas que estão mesmo a
pedir verdadeiro ensaio à parte, pela riqueza de imagens aglutinadoras de
sentido, que concentram a potência de um pensamento tecido em complexo jogo de
reflexões, em torno das infinitas relações entre existência, imagem, pensamento
e imaginação.
Não se pode omitir
que encontramos na poética da autora também, temas como a voz, a memória, a
linguagem, a escrita, o silêncio... Mas a tônica é essencialmente o “outro”, no
sentido de que a ninguém é dado se persuadir de que a miséria que recai sobre o
semelhante não se espalha no planeta. Quanto a isto não há possibilidade de
remissão. A preocupação que a autora demonstra com mais intensidade, é com
aqueles que “enredam-se nas ervas daninhas / com o rosto colado no lodo”,
daqueles que vazam o copo / [e] as
notícias passam na TV / enquanto se voltam de costas para as imagens, daquele
outros na mendicância, dos que padeceram sem piedade em Auschwitz, mas também é,
e ainda, com os 629 mortos no mar Mediterrâneo em junho último, dos outros 198
até hoje dia 22/07/2018 e, finalmente, para que não fiquemos sem “dar nomes aos
mortos” tenhamos em mente apenas um, o da camaronesa Josepha!
Todavia, há outro
viés, e talvez mais importante ainda, pelo qual se pode perquirir a poética
dessa autora de linhagem metafísica. Fernando Andrade bem considera que a sua
“palavra poética deixa o sagrado mais moldante à palavra do lavrador poeta ou
do filósofo parindo conceitos, gerando concepção entre luz e trevas”. Senão
vejamos o poema “Do ínfimo”, uma constatação de que Deus, ou o infinito, ou o
além do homem, como queiram, se encontra nos detalhes”, e que justamente o “ínfimo”, a que não damos a
menor importância permite “a intimidade e a descoberta da pertença recíproca”,
como escreveu a própria autora em algum lugar...
“Nada sei senão do ínfimo / e do murmúrio das pequenas
coisas, / as que não chegam à palavra / como a sombra ou o vento /
desenhando-se sob os álamos, / em quieta reverberação”.
E nada sei, senão desse canto / invisível, mais sonho
que metáfora, / do tempo que é no fruto / ou do que sabe ser sol, sem alarde /
do breve e da passagem.
E nada sei dessa grandiloqüência / dos homens, das
suas promessas / e dos gestos que traem o coração, / dessa palavra ou excesso
que mata / a perfeição circular do instante.
Se é vida, sangue ou oiro, / nada sei, nada de nada /
escondido que ele é / no ínfimo e na sombra. Oculto”.
Essa fagulha de luz
(de 74 páginas), que é o livro “Do ínfimo”, inapelavelmente nos lembra da
filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), que em sua obra “Homens em tempos
sombrios”, escreveu: (...) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de
esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de
teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e freqüentemente fraca
que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em todas as
circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra (...). Olhos
tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se
sua luz era a luz de uma vela ou a de um sol resplandecente". Adiante
pois.
Título: Do Ínfimo (poesia) – Obra vencedora do Prêmio Literário Glória
de Sant’Anna de 2017.
Autor: Maria João Cantinho
Especificações: 1º edição brasileira, 2018 – 14x21, 74 páginas.
Link para compra:
(*)Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei
Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século
– Contos, Embriagado Intelecto e outros contos
e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e
antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados
em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e
Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro
do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso
Internacional - Prêmio José de Alencar,
da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e
publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens,
Diversos Afins, Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte,
Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de
Portugal, e Revista Laranja Original.
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