Os livros são arremessados ao rio presos à pedras. O ato do lançamento
carrega mais do que o simples significado de arremesso. Afundados no rio os livros tem abafados o
conteúdo, o que pode fazer pensar e sentir as pessoas que os leram. O rio,
metaforicamente, pode ser encarado como um monstro com uma enorme boca que os
devora. Eles afundam e com eles afunda também a história de quem os leu. Livros,
portanto, parecem objetos perigosos.
Clarice, a menina que protagoniza o livro, fala sobre E.L.E.S. Quem são?
Para ela “as coisas ficam assim sem muita
explicação no mundo dos livros afundados.” No decorrer da história contada
pela garota, nós, leitores, somos apresentados a fatos que permeiam a vida dela
(narrada em primeira pessoa) e detectamos o olhar singelo de duas crianças que
viveram o período da ditadura militar. Duas crianças, pois temos ainda Tarso,
que a acompanha na trama.
Além de livros, filmes considerados subversivos são cortados, como
explica Tarso. Mesmo sem saber o significado da palavra que ouve, Clarice a
repete pela sonoridade, algo que desperta nela o fato de que quem corta os
filmes trabalha para E.L.E.S., assim como seu pai trabalhava.
A menina recebeu o nome em homenagem à escritora Clarice Lispector,
admirada por sua mãe e cujo pai escondia os livros para que ela pudesse ler. O
paradeiro de seus pais é desconhecido. Nos relatos feitos pela menina fica encoberto
o entendimento se teriam fugido ou desaparecido. Suas deduções são coletadas
pelas conversas que ouve de sua tia (Zilah) e a mãe de Tarso, ou pelas
lembranças que tem de tempos passados em que o pai e a mãe estiveram presentes,
ou ainda por meio das notícias que Primo lê para ela semanalmente. As ações dos
personagens que permeiam a história de Clarice é que vão dando a ela a colcha
de retalhos que vai se unindo, pelo seu olhar infantil, sobre um regime
opressor.
A história elaborada por Roger Mello, contudo, não entrega fatos
históricos ou faz relatos sobre o período militar, mas traz fragmentos sobre a
opressão, sobre a necessidade de fuga de adultos, sobre o desparecimento de
pessoas, sobre a arte sendo censurada, sobre a necessidade de esconder o que se
pensa e ter medo sobre o que se fala.
Um livro de capa vermelha com letras coreanas na capa tem papel de
personagem na obra. Guarda pensamentos e ideias que podem subverter o sistema
vigente. De certo modo, como é narrado em uma determinada passagem sobre os livros: “as pessoas ainda não estão prontas pra
eles”.
É inegável também que há na trama um certo suspense, como um contorno
daqueles tempos que deixam no ar a impressão de um mistério que ronda os
personagens, com suas angústias, seus medos, suas incertezas. Coisas que estão
o tempo todo sondando-os.
Clarice, com os fragmentos e lacunas de um tempo, vai apresentando-nos
sua história e as suas impressões. Surgem questões por meio do que ela viu,
ouviu, viveu e até pelo que imaginou. E, antes que a história percorra uma
trajetória para responder a questões como: onde está a mãe de Clarice?; o que
aconteceu com o pai de Clarice?; ou o que E.L.E.S. querem?, faz o percurso de
demonstrar a visão da menina, o seu olhar inocente sobre fatos conturbados,
ensejando em nós, leitores, a reflexão sobre o que se apresenta.
Como o livro não se revela uma obra de respostas, fica a analogia com o
regime militar no país. Não foi assim no período ditatorial que o Brasil viveu?
Não há ainda lacunas que precisam ser preenchidas? Não há perguntas que
precisam ser respondidas?
Os livros que representam perigo, mas que também são uma grande paixão
para Clarice, tornam-se o elo entre o medo e a coragem, entre o saber e a
necessidade de esconder o conhecimento, entre a curiosidade aguçada e o
pensamento tolhido.
Na linguagem usada pelo autor, nós teremos a objetividade de uma criança,
mas também a dureza do que vivencia. E pelo olhar dela, da sagaz menina criada
pela tia, nós também temos momentos de despertar para consciência que advém do
conflito entre a realidade e o imaginário.
É por meio da vivência dos personagens que vamos traçando a nossa visão
desse mundo. E, não podemos deixar de falar que as páginas são recheadas de
ilustrações de Felipe Cavalvante. Ilustrações estas que nos levam pelo lúdico
que Clarice usa para compreender o seu mundo.
Publicado pela
Global Editora em 2018, Clarice, de Roger Mello, tem 124 páginas. Páginas nas
quais o leitor vai mergulhar numa história que merece ser lida e relida, que
tem espaços e mistérios a serem preenchidos pelo seu olhar – baseado nos
apontamentos de Clarice.
Se na história os
livros precisam ser escondidos, a editora usou a mesma ideia para fazer com o
próprio “Clarice”, cuja capa original é coberta.
Foi um livro pelo
qual me encantei lendo e ratifiquei o meu encantamento ao resenha-lo.
Sobre o
autor:
Roger
Mello
nasceu em Brasília, em 1965. É ilustrador, escritor e diretor de teatro.
Vencedor do Prêmio Hans Christian Andersen na categoria Ilustrador, concedido
pelo International Board on Books for Young People (IBBY) e considerado o
Prêmio Nobel de Literatura Infantil e Juvenil, é hors-concours dos prêmios da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e vencedor de dez Prêmios
Jabuti. Roger recebeu o Chen Bochui International Children’s Literature Award
como melhor autor estrangeiro na China.
Sobre o
ilustrador:
Felipe
Cavalcante
nasceu em Brasília, em 1985. É ilustrador e designer. Mestre em poéticas
contemporâneas pela Universidade de Brasília, já teve seu trabalho exposto em
diversas mostras nacionais e internacionais, como o London Design Festival e o
TrimarchiDG, na Argentina. Professor do Departamento de Design da UnB,
ministrou disciplinas em tipografia, ilustração e materiais e processos de
impressão.
Ficha
Técnica
Título: Clarice
Escritor: Roger Mello
Editora: Global
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-260-2402-1
Número
de Páginas:
124
Ano: 2018
Assunto: Ficção brasileira
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