“Somos excluídos o tempo inteiro. Se for pobre, preto, mulher, gay,
gordo, deficiente, muito alto, muito baixo, será excluído. A gente pode andar
na boa na rua? Claro que não. E nos fazem acreditar que tudo isso está certo.
Existem vários lugares que só é tranquilo se entrarmos pela porta dos fundos
para arrumar a privada que tá entupida, para vestir o uniforme para servir. É
certo a gente ser o que querem que a gente seja? É certo tirarem a nossa
liberdade?”
A Balada do Esquecido, livro de Thiago Kuerques, foi publicado pela
Editora Luva em 2018.
A memória é o cofre em que guardamos todas as emoções vividas.
Depositamos nela os nossos anseios, desejos, as recordações de um passado
próximo ou muito distante. Seja esse pretérito repleto de momentos felizes ou
de tristezas infinitas, a memória está ali; pronta e disponível. Na hora em que
quisermos podemos recorrer a ela e reativar as impressões sobre os momentos
pelos quais passamos e tudo que sentimos.
Nuno, o protagonista do livro de Thiago, perdeu a memória, portanto o
passado aparece como um vazio, a ser preenchido. Ele fora baleado (não se sabe
por quem) e acordou no Uruguai, ao lado de uma mulher misteriosa a quem ele
chama de Flor. E, com ela, utilizando-se de uma fita K-7 e das músicas que
estão gravadas nela (tal qual deveria estar o seu passado na memória), Nuno
tenta recompor a sua história.
Para além da questão da busca pelo seu passado, vem a tona na vida de
Nuno, questões que suscitam reflexões. Nuno é músico, negro, nascido numa
família de poucos recursos financeiros. Da sua mente ressoam imagens típicas de
grandes (e pequenas) cidades. Cenas com as quais temos que lidar no cotidiano.
Ou lidamos com isso porque vivenciamos ou lidamos com tais fatos ao vê-los
narrados nos noticiários. Violência, intervenção militar, questões políticas
que nos levam a indagar sobre a semelhança com a ditadura. Por vezes, Nuno foi
abordado em batidas policiais, não por algum que estivesse cometendo, mas pela
sua cor e pela sua condição social. O personagem enfrentou dilemas de uma
sociedade em que os excluídos travam uma luta insana pela sobrevivência, ou por
vezes são conduzidos como massa.
“Atestamos nossa falência, não só como sociedade, mas como indivíduos.
Começamos nos destruindo, uma sabotagem imposta a nós mesmos, e contagiamos
como uma praga a todos os outros próximos.”
Recordações sobre a morte de sua mãe surgem na mente de Nuno. Nós,
leitores, saberemos também sobre relatos de outros abusos sofridos por mulheres
na trama. Há ainda um mistério na vida de Nuno. Algo de que ele não lembra, mas
que dizem a ele: Nuno teria matado a sua própria irmã.
Ao mesmo tempo que temos a contundência da crítica social e política,
temos no personagem uma leveza que se caracteriza pela musicalidade que
expressa, pelas canções que ouviu por meio da voz de outros artistas e também
da sua própria voz. A trama apresenta inúmeras citações de canções brasileiras
e internacionais. A música dita a sequência de flashes que o protagonista tem sobre sua vida. Elas embalam suas
recordações. A música também nos conecta com o afetivo.
Nuno é um personagem que tem um ar de simplicidade, parecido com muita
gente real que conhecemos, no entanto ele carrega uma complexidade que emana
justamente da sua vida. A personagem feminina que o acompanha, provoca sua
mente, faz aflorar desejos e faz brotar suas impressões sobre a vida e sobre si
mesmo.
A esquizofrenia é mencionada, o que nos leva a crer que Nuno talvez
esteja lidando com a doença. Flor seria fruto de sua imaginação? Seria ela e as
músicas a leveza que ele busca para enfrentar a posição amarga que tem que
assumir na sociedade?
A Balada do Esquecido surpreendeu-me positivamente pela narrativa fluída,
pela forma perspicaz com que o autor aborda temas sociais e políticos dentro do
contexto de sua criação e pelas palavras bem colocadas. As críticas que notamos
e que nos levam à reflexão não estão na obra por acaso, elas tem coerência com
tudo que está sendo contado, com as agruras pelas quais os personagens têm de
passar, pelo passado que eles possuem e com o qual precisam lidar.
A publicação faz parte do projeto Incubadora de Sonhos, lançado pela Luva Editora. A inciativa visa
promover novos talentos da literatura da Baixada Fluminense – Rio de Janeiro.
Todo o lucro arrecadado com a venda dos livros será revertido para
investimentos em novas publicações.
Thiago Kuerques nos dá um livro em que podemos transitar pelo profundo de
uma sociedade e de indivíduos, tocando em assuntos pertinentes e que merecem
destaque. Faz isso sem abandonar o olhar de quem dá verossimilhança a seus
personagens e às situações que vivenciam. Numa obra narrada em primeira pessoa
pelo protagonista, há ritmo e coesão entre os temas abordados. As observações a
respeito das questões humanas são claramente demonstradas pela voz do
personagem, que emerge de um local em que sua invisibilidade o faz virar o
centro das atenções e nos provoca a pensar.
Sobre o autor:
Thiago Kuerques, escritor
iguaçuano, nascido em 1985, é contista, cronista, poeta e turismólogo. Foi
premiado em concursos de poesia em Nilópolis (Nilópolis Square, 2001). Nos anos
de 2014, 2016 e 2017 foi finalista no Prêmio Baixada do Fórum Cultural da
Baixada Fluminense na categoria literatura. Em 2017 realizou um circuito de
palestras nas Bibliotecas Comunitárias de Nova Iguaçu através da rede Baixada
Literária. Também realizou Prosa de Oficina na Biblioteca Cial Brito, em Nova
Iguaçu, em parceria do escritor Jonatan Magella. Possui canal no Youtube (Canal
do Kuerques) para falar sobre literatura. Ministra palestras sobre literatura,
turismo literário, valorização das raízes e de territórios.
Ficha
Técnica
Título: A Balada do
Esquecido
Escritor: Thiago Kuerques
Editora: Luva
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-93350-13-9
Número
de Páginas:
96
Ano: 2018
Assunto: Literatura
brasileira
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