Atenção! Resenha com SPOILER.
Dom Casmurro, do escritor Machado de Assis, é
um livro clássico da literatura brasileira. Sua publicação original é datada de
1899. É dessa obra que saíram dois personagens célebres da literatura nacional:
Capitu e Bentinho, que ensejam uma questão que há muito tem intrigado leitores
e críticos literários. Capitu traiu ou não Bentinho?
Machado tem obras que tem forte influência do
movimento romancista, no entanto, Dom Casmurro é uma obra do realismo, em que
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba figuram também entre as mais
destacadas.
Bentinho é o narrador do livro. Quando já
maduro resolve escrever a sua história. O seu relato é encontrado em Dom
Casmurro. A propósito, o apelido ele recebera pelo fato de ser um homem fechado,
com hábitos reclusos. Um poeta assim o chamou e os vizinhos lhe deram a
alcunha, “que afinal pegou”. Machado
de Assis, pela voz de seu personagem, alerta para que não procuremos o conceito
de casmurro no dicionário, pois ali se aplica de outro modo. Como deduzo que muitos terão a curiosidade de
procurar eis aqui: “que, ou aquele que é
teimoso ou ensimesmado” (dicionário Aurélio).
“O meu
fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência” – revela
o personagem ao falar sobre o objetivo de escrever a história.
Bentinho tem o peso de carregar a promessa de
sua mãe, que é a de torná-lo padre. No entanto, o menino nunca quis passar a
sua vida no seminário, tampouco servir a Deus, como era pretendido por sua mãe.
Numa conversa que ouve entre José Dias e D. Glória – a mãe – ele vem a
descobrir a tal promessa, bem como sente-se impelido a criar um relacionamento
com Capitu, filha do vizinho, posto que sempre andavam juntos. José Dias via
neles uma proximidade capaz de afastá-lo da vida paroquial. Se tivessem, pois,
algum tipo de namoro seria mais difícil para D. Glória obrigar o menino a
seguir a vida de padre.
Temos aqui um conflito que ganha força: o
menino que se defronta com o que socialmente se espera dele.
Aos poucos sua proximidade com Capitu, a de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” a
quem depois é atribuída a imagem de “olhos
de ressaca”, vai acontecendo. Mesmo a contragosto, Bento acaba cedendo e
vai para o seminário, onde conhece o seu grande amigo Escobar. Os dois, tempos
depois, saem do seminário. Betinho vai estudar Direito em São Paulo, no Largo
São Francisco e se torna advogado, além de consumar o seu casamento com Capitu
- a sua paixão adolescente - e Escobar, por sua vez, casa com Sancha (amiga de
Capitu). Desta feita, forma-se um quarteto de amigos.
Interessante notar que Bentinho queria muito
ter um filho, mas que demora a vir. O mesmo não acontece com o casal Escobar e
Sancha. Os dois tem uma menina a quem dão o nome de Capitolina. Certo tempo
depois, Capitu fica grávida e nasce um menino, a quem chamam de Ezequiel (mesmo
nome do amigo de Bentinho – Ezequiel de Sousa Escobar).
A narração do livro, é importante dizer, dá
voz apenas a um dos personagens: o seu narrador – Bento de Albuquerque Santiago.
Portanto, o que se lê na obra é a sua visão sobre os fatos, que recebem,
logicamente, o seu tempero e a sua interpretação sobre tudo que nos conta.
Nesse sentido, o realismo de Machado de Assis é mais empregado em relação aos
aspectos da realidade traduzida pelo protagonista, do que pelo real em si.
Chamo a atenção do leitor para alguns pontos:
Bentinho se diz um homem ciumento, ele só percebe seu amor por Capitu quando
sua mãe e José Dias conversam sobre isso, o tempo todo ele tenta demonstrar ao
leitor a dissimulação da personagem feminina, nos levando a fazer sobre ela a
imagem que ele tem e que construiu para Capitu. Bentinho trata muito bem o seu
amigo Escobar, incluindo a este adjetivos (físicos e intelectuais).
Posto que Capitu e Bentinho se casam e que,
depois de muito tentarem, eles tem um filho, indaga-se sobre a traição da
personagem. Bentinho, por vezes um tanto tranquilo e em outros momentos
extremamente desesperado (chegando a cogitar o suicídio), joga o fato para o
leitor que se revela com a aparência do filho, que é extremamente semelhante a
seu amigo Escobar.
O casal chega a se separar e Capitu vai viver
na Europa – uma forma que eles encontram de não dar visibilidade à separação do
casal, o que poderia gerar conflitos na época. É, portanto mais uma forma de
Betinho manter a imagem de homem casado, como era esperado pela sociedade.
Podemos afirmar: Capitu traiu Bentinho.
Constata-se pelas informações dadas por
Bentinho que Capitu o traiu. O filho é extremamente parecido com o amigo
Escobar. Quando há uma passagem de tempo e o jovem está moço, Bentinho vê no
filho a imagem do amigo, tal qual uma fotografia de Escobar que ele mantém
(mesmo após a sua morte). Portanto, não há como negar que, do ponto de vista do
personagem, a traição existiu. Ao leitor, de acordo com as informações passadas
na obra, também é possível deduzir que a traição se consumou.
Uma outra vertente se faz possível. Dom
Casmurro é muito ciumento, como ele mesmo expressa. Posto que o realismo de Machado de Assis trata
a visão do personagem sobre os fatos que se apresentam, é possível também
dizermos que: Capitu não traiu Bentinho.
Estaríamos diante da visão de um homem
enciumado, que cria uma história a partir da sua visão quase doentia em relação
a amada e que se vê magoado pelo casamento que foi esfriado. Veja-se que a
história é narrada por ele, já maduro, e que não mostra o ponto de vista dos
outros personagens. Daí o fato de que ele vai formando uma imagem questionável
sobre a mulher amada, a ponto de nos levar a ratificar os fatos apresentados.
Aqui vale também dizer que há entre Bentinho
e Capitu uma diferença: a social. A moça pobre, mas astuta, poderia ser vista
como aquela que almeja o casamento com o homem rico para safar-se da pobreza. O
que não se constata, posto que Capitu é uma mulher que não se deixa dominar, que
tem personalidade bem definida, demonstra ser uma mulher inteligente e
independente - desde os tempos de infância, quando os dois se conheceram.
Para além da questão da relação entre
Bentinho e Capitu, nota-se que há outro elemento que fica secundarizado na
trama, mas cujas informações estão dadas na obra. Note:
Quando Bentinho conhece seu amigo Escobar ele
o descreve da seguinte maneira: “Eis aqui
outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar. Era um rapaz esbelto,
olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como
tudo.” Bentinho repara em detalhes do rapaz – aspectos físicos e
comportamentais. Na sequência dessa passagem ele fala sobre o fato de Escobar
abrir sua alma e faz uma metáfora com portas, na qual diz: “...como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava
empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou...” Escobar
teria então encontrado um canto na alma de Bentinho.
Em certa cena Capitu os espreita por algum
tempo e ele menciona que a moça “viu
nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me
merecia tanto.”
Um amigo de Betinho morre e Escobar vai
vê-lo. Os dois apertam as mãos e o protagonista diz: “...durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as
suas, como se não visse desde longos meses.” Complementa perguntando: “Você janta comigo, Escobar?” E este,
por sua vez, responde: “Vim para isto
mesmo”.
Quando Escobar é bem recebido pela família,
Bentinho afirma: “ Todos ficaram gostando
dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha.” Mais
adiante demostra um pouco mais de seu encantamento pelo amigo: “Quais foram as reflexões não me lembra
agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também.” Não
lembra do que falaram, não lembra dos fatos, mas lembra-se do sorriso do amigo.
No pátio do seminário Bentinho abraça
efusivamente Escobar e diz aos leitores que um padre que estava com os seminaristas
não gostou do ato, recomendando: “...não
consente esses gestos excessivos; podem estimar-se com moderação”. Nessa
mesma cena diante da menção de uma separação entre eles, Bentinho nega e eles
selam: “fiquemos ainda mais amigos que
até aqui”. Os dois apertam as mãos às escondidas e no capítulo seguinte o
narrador começa o texto dizendo que a amizade “fez-se grande e fecunda”.
Avançamos pois ao ponto em que diz: “Escobar também se me fez mais pegado ao
coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas
conversações mais íntimas.” Antes de relatar tal trecho, Bentinho diz que
se tornou mais amigo de Capitu.
Outro fato que chama a atenção é que Bento
guarda uma foto de Escobar, que ele cita em alguns momentos do livro. Ele
mandou colocar a foto numa moldura que não cobria a dedicatória: “Ao meu querido Bentinho o seu querido
Escobar 20-4-70.”
Percebemos na leitura que Bentinho certamente
nutria um sentimento por Escobar, inclusive o que se pode ver manifesto no fato
de que, mesmo quando ele acredita ser traído pelo amigo, não fala absolutamente
nada contra Escobar. Nem mesmo quando Capitu o pressiona para falar o que gerou
a ideia dele de que o filho era do outro. Bentinho silencia.
Logo, com o texto do livro deduzimos que
Capitu traiu Bentinho e, este, por sua vez, tinha um sentimento mais forte que
apenas amizade pelo seu querido Escobar.
Cabe ainda uma hipótese, já que há uma lacuna
na obra. Certamente Capitu queria dar um filho a Bentinho e este não vinha, o
que pode nos levar a acreditar que Betinho era infértil. A solução, para manter
as aparências tão valorizadas por Bentinho em decorrência do que imagina a
sociedade, é de que ela tenha feito o filho com o amigo que ele tanto apreciava
– sem o seu consentimento. As questões poderiam ser reforçadas com o fato de
que Capitu e Escobar mantinham uma negociação às escondidas. Quem sabe não
estariam eles pensando no futuro do filho?
É isso!
Ao leitor que não concorde com nenhuma
das teorias, não tem problema.
Como declara o próprio Machado de Assis, pela
voz de Dom Casmurro: “Nada se emenda bem
nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio
algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é
cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele (...) É que tudo se
acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias;
assim podes também preencher as minhas.”
Não me fiz de rogado, as preenchi.
Sobre o autor:
Machado de Assis
nasceu no Rio de Janeiro, em 1839. Filho de pai pintor e mãe lavadeira, ficou
órfão muito cedo. Pobre, mulato, tímido, gago, epilético, conseguiu sobreviver
e fazer carreira de funcionário público e escritor. Conquistou vasta cultura
literária. Aos dezesseis anos trabalhou na Imprensa Nacional, como aprendiz de
tipógrafo. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira
de Letras. Morreu aos 69 anos, também no Rio de Janeiro, em 1908. É considerado
o maior escritor em prosa da literatura brasileira. Iniciou no Realismo em 1881
com o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Ficha
Técnica
Título: Dom Casmurro
Escritor: Machado de Assis
Editora: Globo
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-250-1761-2
Número
de Páginas:
217
Ano: 1997
Assunto: Literatura
brasileira
Resenha perfeita! Parabéns!
ResponderExcluirLuciano, muito obrigado! Abraços.
ExcluirAdorei meu amigoo vc é 10 ♡
ResponderExcluirOwn... muito obrigado. Volte sempre! :-)
ExcluirEudes, que resenha incrivel! Ainda vou dar outra chance a esse livro, graças a você.
ResponderExcluirSuas observações foram extremamente perspicazes, fazem o total sentido.
Parabéns, arrazo!!!!
Kelly, muito obrigado. Depois que ler, me conte o que achou. Beijos :-)
ExcluirAmeiiii essa resenha.
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