Imagine um Brasil
pós-guerra em que a escravidão é um negócio rentável, o ar é altamente tóxico,
a temperatura é elevada e as pessoas vivem em cidades com alta tecnologia
cercadas por redomas de vidros. Basicamente esse é o cenário que encontramos em
Anacrônico, livro de Antony Magalhães, o primeiro de ficção científica
publicado pela Luva Editora em 2017.
O mundo passou
pela Terceira Guerra Mundial e na América do Sul acontecia outra guerra,
chamada de Guerra dos Externos. O livro não se propõe a aprofundar a história
dessa guerra, apenas a cita como evento anterior ao ponto de partida da trama.
O Brasil tornou-se o principal país para a batalha e o resultado culminou na
dizimação de 84% da população. Com a Crise Verde, o país vive um momento
ecologicamente defasado em que a água tornou-se um recurso escasso, as
florestas foram destruídas, as cidades viraram ruínas e tudo (fora das redomas)
virou uma vasta terra desértica cheia de poluição.
Para reconstruir a
vida o governo construiu as Biópolis (são 23), que são cidades dentro das
redomas de vidros que mencionamos anteriormente. Nessas redomas vivem a
população num sistema em que a educação e trabalho não são obrigatórios, a
internet é extremamente restrita, a escravidão é permitida, possibilitando com
que pais vendam seus filhos e cujos escravos pertencem a seus donos
eternamente. Muitas tarefas são realizadas por robôs e a alta tecnologia está
presente em vários setores.
As informações
difundidas no tempo presente são controladas pelo governo, a democracia,
portanto, inexiste e as pessoas são drogadas com os chamados pulsos –
comprimidos que provocam sentimentos e sensações em quem os ingere. Uma forma encontrada
pelos governantes de manipular as pessoas, exercendo inclusive o domínio sobre
sua personalidade. “Amor, raiva, sono,
cansaço, dor, coragem, timidez e tristeza. São quase 50 comprimidos diferentes.”
Maria é uma jovem
negra de dezessete anos e com deficiência física, que assume o protagonismo na
trama. Aqui há um ponto importante a ser frisado, pois a história desenvolvida
em Anacrônico se sustenta na história particular de Maria e naquilo que a
circunda. Ela foi adquirida por uma família abastada e poderosa (a família
Souza Melo que controla as transmissões da televisão central da Biópolis), logo
constatamos que ela é uma escrava. A escravidão não se restringe aos negros,
brancos também são escravizados. Maria vive num ambiente inóspito, e apesar de
sofrer agressões e abusos ela não se rende ao que lhe impõe e quer descobrir
mais sobre o seu passado. Por que ela teria sido vendida pelos seus pais?
As Biópolis são
dominadas por pessoas que tem mais recursos, que usam e abusam de seus
escravos. As mulheres são tratadas como objetos sexuais e, em algumas
situações, forçadas à procriação. Com a recusa sexual podem ser condenadas à
morte. Lembrei-me de O Conto da Aia, de Margaret Atwood. Mas a situação das
mulheres são vividas em Anacrônico de modo diferente no que refere-se ao
contexto da trama.
Estamos falando de
uma cidade pós-guerra com ambiente altamente tecnológico, mas com pessoas que
são oprimidas. Um paradoxo que suscita reflexão. Por meio de um lugar
futurista, com facilidades que poderiam ser usufruídas por maior número de
pessoas, as benesses acabam concentrando-se nas mãos de um pequeno grupo, enquanto
os outros devem servi-los. Indiretamente, notamos que há uma crítica
político-social na formação desse cenário e do próprio funcionamento da
sociedade de Anacrônico.
Maria passa por
situações terríveis e quer saber o que há fora da Biópolis. Lembra-nos,
portanto, outra situação simbolicamente clássica que é a busca pelo
desconhecido, como na alegoria da caverna de Platão. Em Anacrônico, as pessoas
são proibidas de descer para o local em que robôs fazem a reciclagem do lixo.
Sair da Biópolis oferece perigo, pode, inclusive, custar a vida, vez que os
recursos naturais foram contaminados. E a manipulação de informações dá às
pessoas, dentro da Biópolis, uma realidade distinta da que se vive em outras
cidades e fora das redomas. Sair dali, portanto, significa ampliação de
conhecimento e a constatação de outra realidade.
Antony Magalhães
emprega uma narrativa rápida, de orações curtas e que são suficientes para
descrever o cenário e o desenrolar das cenas. O leitor consegue sentir a atmosfera,
o clima de tensão que se instala e os revezes pelos quais Maria passa. As cenas de lutas que existem no livro são
descritas com objetividade e são bem executadas. O ritmo empregado é ágil, com
bastantes reviravoltas e acontecimentos que surpreendem o leitor.
A história tem
pontos que despertam a curiosidade, por exemplo, em saber mais sobre a Guerra dos
Externos e como se deu a construção do Grande Muro, a reconstrução do país e a
chegada da alta tecnologia empregada. Talvez, num próximo volume, possa surgir
explicações sobre isso, visto que Anacrônico se concentra na história de Maria.
O livro tem elementos
bastante interessantes como o fato de apresentar uma personagem deficiente
física, mas sem torna-la vítima de sua deficiência. Maria age com naturalidade
com o uso de sua prótese. Ela é negra, mas a cor da pele não é o que determina
sua posição social. Brancos também são escravizados. O fato de a protagonista
ser negra nos leva a reflexão sobre o passado do país e nos deixa,
implicitamente, a mensagem de reflexão sobre racismo e preconceitos. Trata da
questão da violência contra a mulher, o que também nos chama à reflexão sobre
os tempos atuais. E a questão da sexualidade da personagem não é tratada com
estardalhaço, mas com naturalidade dentro da trama. Passa quase despercebida.
A protagonista tem
um plano de vingança em relação a sua venda. Como ela vai lidar com isso?
Anacrônico terá continuação. O segundo livro tem nome: Diacrônico. A história
apresentada na obra se fecha, mas deixa um desfecho que dá possibilidade de
desenvolvimento no segundo volume e aguça a curiosidade do leitor.
O projeto gráfico
realizado pela Luva Editora complementa o livro. As ilustrações tem coerência
com o texto que, inclusive, recebe acabamento gráfico em todas as páginas.
Anacrônico instiga pela boa história que apresenta e pela curiosidade que
desperta.
Foto: Reprodução |
Sobre o autor:
Antony Magalhães é
jornalista, escritor e roteirista. Escreve desde cedo e já publicou livros,
ebooks e contos em antologias. É criador e editor-chefe do site de cultura
Literatudo. Autor dos livros Wark: O Livro da Vida e Apaixonado Coração
Apodrecido. Roteirista das séries Guateka e Natasha produzidas pela Produtora
Plug e financiadas pela Ancine.
Ficha
Técnica
Título: Anacrônico
Escritor: Antony Magalhães
Editora: Luva
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-9335-003-3
Número
de Páginas:252
Ano: 2017
Assunto: Ficção brasileira
necessito comprar esse livro! quanto mistério, gente.
ResponderExcluirQual o valor do livro?
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