Marcos Rey demonstra em seus contos o quanto
ele, que nasceu em São Paulo, observava muito bem os cidadãos paulistanos. E
colocava nos tipos que criava forte dosagem de realismo urbano, capaz de
reproduzir toda a aura de uma grande cidade, como a capital paulista. A vida
noturna da cidade aparece, bem como tipos diversificados, de personalidades
distintas e características singulares, com ares críveis.
O primeiro conto do livro é Eu e Meu Fusca. Narrado em primeira
pessoa – pelo proprietário do veículo -, o personagem demonstra-se
verdadeiramente apaixonado pelo seu automóvel, tratando-o muito bem. Esse homem
se vê também deslumbrado por uma mulher. No conto há ocorrência de crimes,
realizados por uma figura enigmática que atira em suas vítimas, o que traz ao
leitor um pouco de suspense. De certa forma, no conto há a representação do
sadismo do qual muitos moradores da grande cidade se imbuem. O conto, apesar de
abordar tal questão, é bem humorado, com um personagem cínico, mas também controversamente
carismático.
O Cão
da Meia-Noite
é o título do livro, publicado pela Editora Global em 2005 (214 páginas) e o
segundo conto da obra é o que dá nome ao livro. A relação entre o homem e os
animais é o mote dessa história. Um homem, no centro de São Paulo, persegue um
cachorro que viu à meia-noite num bar. Esse homem acaba criando uma relação
estranha com o cachorro, revelando sua dependência do animalzinho, passando
para uma obsessão. O conto é tenso dado o comportamento do protagonista, que
também narra a trama. O autor revela aqui uma faceta de relação conturbada,
independente do fato de tratar da relação do homem para com o animal. Os seres
humanos são capazes de coisas inacreditáveis para ter a sua carência afetiva e
emocional suprida. Interessante observar a forma com que ele descreve e narra a
relação do animal para com as demais pessoas que vivem na cidade, tais como a
prostituta e os boêmios.
Já em O
Bar dos Cento e Tantos Dias temos um homem desempregado que fica num bar em
busca de informações. “O desemprego não
advém da preguiça, mas podem caminhar juntos”. E o personagem central
alerta que gostaria que não confundissem “desempregado
com desocupado ou marginal”. No calor, o bar é seu refúgio. Local em que vê
amigos e busca alguma oportunidade, já em seu centuagésimo dia fora do mercado
de trabalho.
A
Escalação
vem na sequência e a narração se dá em terceira pessoa. Uma atriz, um ator, um
diretor e um escritor se encontram no apartamento de cobertura que pertence a
Danilo Oliveira da Silva. Aqui o autor coloca em cena (fazendo um trocadilho
com o contexto da história) a vaidade, o egocentrismo, a individualidade e o
poder. A fogueira de vaidades em que pessoas que querem ser protagonistas do
que fazem acabam “se queimando” – gripo meu. “... o homem que estava lá dentro, fazendo-se esperar, criando tensão
pela ausência, não dava ponto sem nó, embora ninguém ainda entendesse que nó
significava...” A ele caberá a escalação que gera sentimentos conflitantes
e toca a vaidade dos presentes.
Na página 103 começa o conto O Adhemarista, cujo personagem central
é Moa – o Moacir. Passa-se durante a semana em que houve eleição entre Adhemar
e Jânio. Ele, eleitor apaixonado por Adhemar, encara as apurações com um misto
de esperança, vaidade e tristeza. O conto, centrado na política, demonstra a
paixão cega do eleitor por um dado candidato, o que o automatiza, move suas
emoções e o faz deixar de lado a racionalidade. Parece um tanto quanto atual em
tempos de polarizações. “Então, tudo
aquilo por nada? O que ia ganhar com aquela correria, os bate-bocas, as
madrugadas, o oba-oba nos comícios, o empapelamento dos muros, as brigas e o
escambau?”
Soy
Loco Por Ti, América
coloca os personagens participando de uma festa regada a lança-perfume, bebidas
e relações que se embaraçam. Muitos são os acontecimentos na festa de arromba
promovida por De Lourenço em sua mansão. Veja-se que na constituição de
personagens de Marcos Rey, há tanto aqueles menos abastados como os que
pertencem a classe média ou classe alta paulistana, esbanjando luxo. O conto,
inclusive, começa dando um panorama do cenário para o leitor: “Esta história tanto poderia começar na
piscina térmica em forma de coração quanto no lugar mais aprazível da mansão,
que o De Lourenço orgulhosamente chamava
de pérgula...”
Um grupo de amigos, o roubo de uma balalaica,
um revólver, muita contusão e uma lata de leite ninho fazem parte do penúltimo
conto do livro, intitulado Traje de
Rigor. É uma história de quereres, brigas, sonhos, diversão e rompimento de
padrões.
Mustang
Cor de Sangue
fecha o livro. Um homem que dirige o tal carro se encanta por uma vedete que é
tentada pelo seu mentor (Jujuba) com uma papel numa peça (mediante um contrato
fajuto). Ela percebe que ele tenta enganá-la e o que deseja é apenas sexo. Daí
se desenrola a trama em torno do contrato e das ardilosas formas que o tal
Jujuba tem, junto com o narrador, de fazer crer que tudo está certo.
Os contos de Marcos Rey vão além de contarem
uma simples história de entretenimento, com a presença de pessoas que vivem
numa grande cidade. Seus personagens são tipicamente urbanos, por isso mesmo
fácil de imaginarmos rondando por perto. São figuras criadas a partir da
observação aguçada de autor para aquilo e aqueles que o rondam. A boemia, os
encontros, desencontros, a conversa despojada e sem filtro, a linguagem
coloquial, aparecem nos contos do autor. Revelam personagens críveis e verossímeis,
em situações possíveis, levadas ao extremo.
As histórias são repletas de sonhos,
desencantos, amores, dissabores, conquistas e perdas. Trazem figuras
interessantes de se ver, incluindo aquelas que flertam com o ambiente cultural:
escritores, atores, diretores, mas também, como já mencionado. E também os
tipos “comuns”.
Os contos são divertidos, gostosos de ler e
com diálogos humorados e corrosivos. Dos contos presentes nesse livro, destaco
o que dá nome à obra O Cão da Meia-Noite. É uma demonstração (exagerada) da
dependência do ser humano clamando por atenção. Há algo de desconfortável no
conto e, por isso mesmo, ele salta aos olhos quando nos faz refletir sobre a
mediocridade humana e sobre a sua capacidade de atos terríveis.
Vale dizer ainda, que em todos os contos, os
personagens cruzam linhas tênues, para assumir o protagonismo de suas vidas.
Eles precisam, pois, exacerbar seus atos para ganhar visibilidade.
Um ótimo livro de contos. É daqueles que vale
ser relido.
Marcos Rey | Foto: Reprodução |
Sobre o
autor
Marcos Rey é o pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu em
São Paulo, 1925, cidade que sempre foi o cenário de seus contos e romances.
Estreou em 1953 com a novela Um gato no triângulo. Apenas sete anos
depois publicaria o romance Café na cama, um dos best sellers dos anos
60. Seguiram-se Entre sem bater, O enterro da cafetina, Memórias de um gigolô, O último mamífero do Martinelli e outros.
Autor de uma vasta produção de obras
literárias e audiovisuais, assumiu o ofício de escrever o tempo todo, e viveu
de seus textos e criações. Destacou-se pela qualidade de seus contos e romances
“literatura de realismo urbano” captando e recriando a atmosfera da grande
cidade e de seus personagens; e a aristocracia, a classe média e a vida
noturna.
Marcos Rey escrevia como se estivesse filmando
o cotidiano e a realidade da metrópole paulistana. Desde a infância era um
inveterado leitor. Publicou seu primeiro conto aos 16 anos no jornal Folha da
Manhã, já usando o nome Marcos Rey.
Habilidoso e versátil, Rey passou pelos anos
50, 60, 70, 80 e 90 como cronista, contista, roteirista de rádio, televisão e
cinema, em programas de humor, rádio-almanaques, novelas e minisséries, e
também foi redator publicitário.
Ficha
Técnica
Título: O Cão da Meia-Noite
Escritor: Marcos Rey
Editora: Global
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-260-0995-8
Número
de Páginas:
214
Ano: 2005
Assunto: Contos brasileiros
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