O título do livro induz o leitor a um
sentimento de repulsa. Propositadamente o autor acerta ao chamar o livro de Indigesto – Contos Gástricos. Mas,
muita calma, leitor. Acerta em função do conteúdo que aborda. No entanto, quero
adiantar que Indigesto não é
indigesto, pois nos dá uma leitura saborosa. Pode apostar.
Os contos que compõe a obra de Flávio Karras
- disponível na Amazon - passam pelo aparelho digestivo de seus personagens. E
não estamos falando apenas de alimentos ou quaisquer outras coisas que podem
ser ingeridas ou deglutidas, mas também situações que podem nos causar náusea.
Como clarifica a definição do dicionário para a palavra: indigesto é aquilo que
seja difícil de ser digerido, que produz indigestão.
Um aviso importante: se você tem "estômago sensível", leia. Se
você não o tem, leia também. Você vai notar como com criatividade, bom humor,
uma pegada de morbidez, uma pitada de fantasia e uma dosagem de terror, podemos
nos deparar com situações verdadeiramente indigestas.
A asa
da barata
é o primeiro conto. E que conto, leitores! A história de um homem cercado pela
mania de limpeza extrema e que, para receber os seus parentes elabora um plano.
Uma asa de barata pode ser muito indigesta. O conto é admirável e bem humorado.
É daquele tipo que merece ser lido e relido, o que foi preciso que eu fizesse.
Inclusive o li em voz alta. É um belo cartão de visita para apresentar a obra.
Em Miau,
o segundo conto, o leitor vai ser envolvido com o que os gatos preferem
comer. Já em Onde está o horror,
que é o terceiro conto, temos como protagonista um escritor que detesta Stephen
King e para quem "contos,
novelas, noveletas e romances eram feitos a tempo, não importando quantas noites
em claro custasse e quantas xícaras de café — e remédios para o
estômago..." Vislumbrando a busca por inspiração ele sai caçando o
horror. Acompanhado de uma garrafa de rum, o seu caminho para o sucesso pode ser
certeiro: indigestão.
Hora do
cafezinho,
com esse título bastante simpático, deixa bem claro como um momento
aparentemente inofensivo e por muitos apreciado, pode ser o gatilho para o
"desequilíbrio" de alguém. Narrado em primeira pessoa o conto é
ritmado, dinâmico, inusitado e caminha para escuridão.
Comida
Orgânica,
outro dos contos presentes no livro, é uma história que vai provocar no leitor
um mix de sensações: o mistério, o riso, a constatação, a angústia, a reflexão.
É um conto de impacto que surpreende e tem um conceito que pode ser expandido
para além da história que está sendo contada. "Buscamos o desenvolvimento econômico e produtivo não-agressivo.
Valorizamos nossa vida animal, sem esquecer do bem-estar..." – destaque
de um trecho.
Diante de tanto engulho, eis que há poesia no livro, que está presente em A triste sina do homem embaralhado. O brigadeiro, doce tipicamente brasileiro, é a história que segue. Um conto em que o inanimado ganha humanização.
Os dois
lados da mesa
traz uma história que ao leitor pode ser interpretado como uma metáfora. O
homem de rua é tratado como um mero número e um projeto da prefeitura demonstra
a gana de um governante. O conto se divide em duas visões do lado de cá e do
lado de lá. Há crítica social, política e uma demonstração de esperteza.
Sem
açúcar, por favor,
conta a história de um personagem para quem "enquanto
houvesse chocolate entre seus dentes e grudado no céu da boca, o dia estaria
perfeito." E a mistura de doces, remédios, game e certas visões podem transtornar o protagonista.
Você já deve ter assistido algum programa de
culinária na televisão, acredito. Viver de luz tem uma protagonista chamada
Margarida, que trabalha num programa desses auxiliando a apresentadora
atrapalhada e duelando com um manipulador de boneco. E com ares de fantasia ela
percebe “que não tinha mais corpo”.
Rebobinando coloca em cena, num
conto curto, uma mulher que prepara um jantar indigesto para se vingar do homem
da casa. O jantar oferecido traz uma situação
excessivamente nauseante.
O lado religioso de uma família está narrado
em Promessa. E a referida promessa
que dá nome ao conto tem base em um alimento. Isso é capaz de gerar um conflito
que pode ser entendido como uma alucinação da garota em decorrência de
não comer ou como um evento sobrenatural que assola muita gente. Fica para o
leitor a interpretação.
Descomendo
Alice
encerra o livro e traz a história em que o corpo é mais que um corpo. Com uma
boa dosagem de terror o leitor vai se enojar do que há nele. Quer uma
degustação? “A ponta da tesoura para
jardinagem cutucou o início das costelas e, num craquear, escalou as
cartilagens e ossinhos afiados do lado direito.”
A narrativa empregada nos contos de Indigesto
é dinâmica e envolvente. Surpreende. Flávio Karras usa-se de muita criatividade
na composição de cenas inusitadas, ágeis e com boas sacadas. Isso tudo aliado a
personagens interessantes e estranhos, faz com que o leitor queira saber qual o
próximo conto. E assim, caminhamos até o desfecho do livro. Fácil de devorar (aproveitando
a questão digestiva). No mais, resta-me apenas recomendar que leiam esse livro
incrível.
Foto: Reprodução |
Sobre o
autor
Flávio Karras é de São Caetano do Sul – SP, e
nasceu em 1981. Se define como escritor neófito submerso no mundo do terror,
mas gente boa. Além de Indigesto tem participações em antologias. Foi finalista
do 1º Concurso de Poesia Amigos da Biblioteca, participou das coletâneas
Escritor Profissional – Volume 2, @Medo.com, Tratado Oculto do Horror, 8 Faces
da Diversidade, Psicopatas, Natal Sem Luz e Avenida Mukinesse 666.
Ficha
Técnica
Título: Indigesto
Escritor: Flávio Karras
Editora: Independente (Amazon)
Edição: 1ª
Número
de Páginas:
185
Ano: 2005
Assunto: Contos
Uau, destrinchou o indigesto. Adorei ;) Muito obrigado.
ResponderExcluirFlávio K