O cenário do livro é a cidade de Araraquara,
situada no interior do estado de São Paulo.
“Hoje
estou tranquilo, nem uma sombra do passado para me intimidar. Daqui a pouco vou
dar a volta, completar minhas histórias.”
O protagonista, entre outras coisas, pesquisa
o motivo de, em sua cidade, as pessoas mudarem de casas para apartamentos. Uma
cidade nas quais as pessoas “não se
encontravam, não se falavam, não se visitavam”. Ele, um escritor/jornalista,
nasceu naquela cidade no ano de 1936. Ele busca histórias que se passaram em
Araraquara, para reconstituí-las e assim fazer uma história “jamais escrita”. E quer também resgatar
o histórico sobre um determinado linchamento que, aparentemente, a cidade
inteira quer esquecer.
“O que
faço é relatar acontecimentos, esperando tirar conclusões positivas para todos.
Um homem precisa entender seu povo e sua terra para viver feliz. Precisa
conhecer a si mesmo, e se ver dentro do meio em que vive.”
Sua visão sobre os fatos que se apresentam
demonstram um certo desencontro entre ele e tudo que ali ocorre, e com relação
as pessoas que ali vivem.
Em seus amigos de outrora vê que não tem
ligações, como com Faruk que sabe quem morreu, desapareceu, foi assassinado ou
está doente. Ele não, ele não sabe do paradeiro de ninguém e mesmo a morte de
antigos amigos não o comove. Parece anestesiado diante daquilo que acontece com
as outras pessoas, embora seja por meio delas que queira resgatar a construção
de sua história (implícita na história da cidade). Esse personagem dialoga com
o leitor de modo que nos deixa uma provocação de tentar entende-lo. Seria ele
um exilado na própria cidade ou ele é quem se afasta das pessoas e cria motivos
para que isso aconteça? É uma dúvida que nos persegue, que nos faz avaliar seus
atos ao longo do livro.
As pessoas da cidade parecem encarceradas em
suas próprias residências, espiando o mundo pelas janelas ou pelas frestas. É
como se cada um dos moradores dali visse apenas parte do mundo, um pequeno mundo
que é seu e que de certo modo lhes garante segurança. Essas pessoas temem a
rua: “as grossas portas, as fechaduras,
os alarmas, os postigos, tudo que se utiliza, se inventa aqui para as ruas se
tornarem inacessíveis, de dentro para fora”. O contrário também há de se
pensar, pois o protagonista pode ser aquele que vê o mundo que quer enxergar,
se afastando da realidade de sua cidade e criando acontecimentos em sua mente
para safar-se da vida real.
Também há nos relatos um pouco do absurdo,
dotados de realismo fantástico que entremeiam os capítulos. Esses textos são
chamados de fatos e deixam a intricada narrativa labiríntica de Ingnácio de
Loyla Brandão ainda mais saborosa. Como o caso da menina que enlouquece ao
perceber que tem rugas nos dedos, a horta de arame que cresce no quintal de um
homem ou até mesmo a piscina que engole todos aqueles que nela mergulham. Tais
acontecimentos nos trazem uma cidade em que o absurdo pode existir, manifestado
em atos corriqueiros ou no imaginário da população. Textos que podem ser
aqueles feitos pelo protagonista que tenta safar-se da realidade.
A história envolve ainda um livro que dividiu a
cidade, um tal de Manual Seguro para se sair de casa. E o protagonista fala com
um homem a quem atribui a autoria do livro, mas que o tempo todo nega. O
narrador vive ainda ao lado do filho, em conversas divertidas que rendem boas
tiradas. E além de tudo isso, ainda conta-nos sobre o que lida no
relacionamento rompido com sua ex, a Nancy, mãe de seu filho.
Outrossim, é importante dizer, que a narrativa
não é feita de forma linear, mas em retalhos que vão se formando e dando a
visão do todo ao leitor.
Há no protagonista o desejo de escrever
aquela história tida como “jamais
escrita”, mas ao mesmo tempo não revela nenhum texto que teria sido construído. Seria o texto dele o próprio livro Dentes ao
Sol? Seriam os fatos apresentados na obra? Seria ele apenas um provocador de
situações? Há que se questionar sua sanidade?
O livro tem uma narrativa densa, forte e
inquietante. Por que? Porque nos tira do convencional, da nossa zona de
conforto e nos lança a adentrar o universo da mente do autor e do personagem.
Escrito originalmente em 1976 o romance traz um protagonista carismático,
enigmático, mas que também carrega amargura, sofrimento, sarcasmo e uma dose de
rancor, uma pitada de melancolia e depressão, ele é totalmente fora dos
padrões. Daí decorre o fato de que ele nos desestabiliza quando propõe elaborar
seus textos, mas nos confunde com suas ações numa emaranhado de histórias que
se ligam, se cruzam, se distanciam.
Ao avançar das páginas Loyola nos mostra a
magnitude de sua criação. Pode ser lida como uma metáfora em que a cidade é o
próprio homem que a habita, carregando seus medos, inseguranças, devaneios e
loucuras. É na cidade que está o desejo e o sonho, e a realidade, que nem
sempre é branda, revela-se dura. O medo das pessoas em sair de casa, a busca do
personagem por uma história de linchamento que eles não querem rememorar. Ou
pode não ser nada disso! E, certamente, pelas possibilidades que se abrem ante
a leitura de um livro como esse é que o fascínio vem ao leitor.
Outro ponto que se deve falar é que ele
escreve cartas a pessoas que não conhece, cujos endereços e nomes são
encontrados em catálogos. O ser humano clama por atenção, por alguém que se
aproxime, mesmo que não seja conhecido, mas que queira lhe dirigir alguma
palavra. Seria uma carência do personagem? Ou a demonstração dos anseios dos
homens em buscar contato?
Inquietante. Não me vi satisfeito até a
conclusão da obra. Fiz marcações, anotações, reli trechos. O emaranhado de
textos, demonstrados em capítulos curtos e enumerados nos levam a uma história
de interpretações. Pelo menos tal foi o sentimento e aquilo que absorvi do
livro de Ignácio de Loyola Brandão.
Dentes ao Sol é denso, complexo, bem
humorado, com passagens que provocam o pensamento em seguir com o personagem ou
a questioná-lo. Não seria a vida assim? Um misto de loucura e realidade? Um
tumulto que traz movimento e quietude?
Ignácio de Loyola Brandão | Foto: Reprodução |
Sobre o
autor
Ignácio de Loyola Brandão é contista,
romancista e jornalista. Possui vasta produção literária, tendo sido traduzido
para diversas línguas. Recebeu, entre alguns outros prêmios, o Jabuti de 2008.
Sua carreira literária começou em 1965 com o lançamento do livro Depois do Sol.
Em 2016 foi agraciado pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Machado
de Assis pelo conjunto de sua obra.
Ficha
Técnica
Título: Dentes ao Sol
Escritor: Ignácio de Loyola
Brandão
Editora: Global
Edição: 5ª
ISBN: 978-85-260-0048-9
Número
de Páginas:
360
Ano: 2002
Assunto: Romance brasileiro
Amei o post :D
ResponderExcluirsubmersa-em-palavras.blogspot.com.br
Muito obrigado, Monyque. Agradeço também pela visita.
ExcluirBela resenha! Parabéns!
ResponderExcluirFábio, muito obrigado. É uma honra recebê-lo aqui. Abraços.
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