“...
jogo contínuo de troca e reviravoltas que, ora com alegria, ora com sofrimento,
nos tornavam indispensáveis uma à outra.”
Elena Ferrante é uma autora que desperta
curiosidade. Muito dela é provocada pelo fato de que a identidade da escritora
é mantida em segredo. Diz-se que ela é uma tradutora italiana. Independente da mística
que envolve sua identidade não revelada, vamos ao livro objeto desta resenha: A Amiga Genial,
publicado no Brasil pela Biblioteca Azul – selo da Editora Globo. O livro é o
primeiro volume de uma tetralogia, a série napolitana.
Neste volume, cuja edição foi traduzida por
Maurício Santana Dias, temos uma história de amizade, em que a narradora –
Elena Greco – fala sobre sua vida e a de sua amiga Lila Cerullo. Elas vivem no
subúrbio de Nápoles, na década de 1950, portanto logo depois da Segunda Guerra
Mundial e ainda há no local as heranças do conflito.
Elena recebe um telefonema. Do outro lado da
linha, o filho de Lila, sua amiga de infância, noticia que sua mãe desapareceu.
Logo, depreende-se que ela, nos dias atuais, é adulta.
“Hoje
de manhã Rino me ligou, pensei que ele quisesse mais dinheiro e me preparei
para negar. No entanto o motivo da chamada era outro: a mãe dele tinha desaparecido.”
Para Elena, Lila havia extrapolado. “Queria não só desaparecer, mas também
apagar toda a vida que deixara para trás.” Já vemos um pouco do tom de
rivalidade que existia entre as duas, embora fossem amigas. Elena começa a
escrever tudo que estava em sua memória. Faz isso justamente para que a amiga
não seja esquecida ou melhor, para que o objetivo da amiga de apagar a sua vida
não fosse alcançado. Ainda que Elena não tenha total consciência de seus atos,
notamos no decorrer do livro que ela não queria ficar para trás. Há entre elas
estímulo para que progridam no aprendizado, por exemplo, mas também há
sentimentos conflitantes.
Desde pequenas as duas se veem com aquele
olhar de concorrência que muitas crianças tem, que se demonstra em ações em que
expõem suas forças e fragilidades, qualidades e defeitos, conquistas e
derrotas. São duas personagens femininas que tem as suas inseguranças (próprias
de cada período pelos quais passam). São reveladas as dúvidas da adolescência,
as descobertas sexuais, os ganhos e desvantagens da personalidade de cada uma
delas.
Da herança da guerra notamos que no bairro em
que elas vivem, alguns personagens são definidos pela profissão que possuem. Em
dados momentos, com a inocência da criança, há questionamentos sobre o fato de
se referirem a algumas pessoas com adjetivações políticas como se fosse um
desqualificador.
Sobre as profissões definindo famílias
podemos notar na lista dos personagens que é apresentado nas primeiras páginas
do livro. São definidos como família do sapateiro, família do contínuo, família
do marceneiro, família do ferroviário-poeta, família do verdureiro, família do
dono do bar-confeitaria, família do confeiteiro e por aí vai.
Alguns pontos importantes são tratados como o
poder da mulher alcançado pelo estudo, que se revela na insistência da
protagonista e de sua professora. Temos ainda a luta de classes colocada em
cena, quando o fato de alcançar alguma posição social é que garante respeito. E
também aborda-se a violência e o machismo
Por ser o primeiro livro da série, A Amiga
Genial, trata do período de infância e da adolescência das personagens. Narrado
em primeira pessoa por Elena Greco ele transita pelos fragmentos de memórias
que ela tem de situações que viveu ao lado de Lila, o que notadamente perpassa
pelas relações com os outros amigos, a escola, as famílias e outros círculos
sociais em que interagem, grupos com os quais elas aprendem por diferentes
caminhos. E mostra uma densidade da relação das duas tanto no desconforto que
por vezes são causados com a proximidade das duas, quanto nos momentos mais
alegres que vivem.
Inicialmente a história parece lenta, se
arrasta no tempo em que a personagem conta os acontecimentos e suas impressões
sobre eles. E por serem acontecimentos rotineiros, sem grandes reviravoltas ou
segredos a serem descortinados, pode parecer cansativo. No entanto, na medida
em que o livro avança vamos tomando consciência da história que a personagem
nos conta. Um dos méritos da escritora é justamente a sua forma de narrar, por
meio de sua protagonista, acontecimentos usuais. Vale mais a forma como ela
conta do que o que ela conta, ainda que questões importantes para discussão
sejam apresentadas no pano de fundo. E o duelo que existe entre as duas amigas
revela facetas entre a afetividade e o distanciamento, a admiração e a repulsa.
Nessa relação a autora consegue adentrar a personalidade de suas personagens.
Elena Ferrante tem uma escrita agradável, boa
de ler, uma prosa que vai fundo em seus personagens e que se mantém fluída e sem sobressaltos.
Quando a história avança reforça-se que trata-se de uma história simples e, por
isso mesmo, o método de Ferrante em conta-la merece louvores. Veja-se que é um
romance que fala de um assunto batido (a amizade), cercado de tensão e
rivalidade. Nada de revolucionário ou inovador. O mérito de Elena está na forma
com que trabalha a palavra e constrói ou reconstrói a história de suas
personagens, na sensibilidade de expressar a tensão da relação entre as duas
que parece que a todo momento vai explodir, na maneira como mostra o sonhos das
meninas e suas descobertas, na força de uma excelente contadora de histórias.
Outro ponto a se ressaltar são os personagens
secundários. Eles são críveis, verossímeis, são pessoas com nuances diferentes que
se integram à história e não apenas figuram com menções passageiras que em nada
acrescentam. A ficção de Elena Ferrante é carregada de realidade, na medida em
que não se distancia do que poderia acontecer na vida de pessoas reais.
Apesar de ser um livro de ficção, parece-me
que tem fortes dosagens de inspirações na própria vida de quem o escreveu.
Elena (a Greco), assim como a Elena (Ferrante) é escritora. As duas (personagem
e escritora) são italianas.
É uma boa leitura e espero mais dos livros
posteriores.
Sobre a
autora
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma autora
italiana, festejada pelo mundo afora como uma das mais belas prosas
contemporâneas. Ele nunca mostrou o rosto, nem sequer deu uma pista de sua
verdadeira identidade. Nas raríssimas entrevistas que concede, em sua maioria
por email, costuma dizer que já fez “tudo que podia ter feito por seus livros
escrevendo-os”. Nesse mistério, entretanto, restam certezas muito límpidas: a
força de sua prosa, a recusa do artificialismo da linguagem, a aproximação com
a consciência profunda de seus personagens e a sua honestidade brutal.
Ficha
Técnica
Título: A Amiga Genial
Escritor: Elena Ferrante
Editora: Biblioteca Azul
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-250-6060-0
Número
de Páginas:
336
Ano: 2015
Assunto: Romance italiano
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