Por Alexandra
Vieira de Almeida
Seguindo a lição drummondiana de enaltecer o
lado gauche da vida, Fernanda
Fatureto no livro de poemas Ensaios para
a queda (Penalux, 2017) leva os leitores a margearem o rio trôpego da vida.
A poeta aqui em questão faz emergir o que está à margem, o caminho errático da
vida. O livro é dividido em três partes que se complementam e dialogam entre
si: “Travessias”, “Miragem” e “Polifonia”. No poema que abre a primeira parte,
temos: “Realizo ensaios para a queda tal qual a última noite/de uma estrela
cadente;”. No Novíssimo Aulete, é descrito o fenômeno da estrela cadente:
“Visualização da entrada de um meteorito na atmosfera e que provoca
incandescência ao se atritar com gases, mostrando-se como o traçado de um risco
luminoso no céu noturno”. Portanto a metáfora é digna do título do livro. A
escritora dá positividade ao simbolismo da queda, não a apresentando como algo
excludente, mas como partícipe da vida. Com seu brilho e luminosidade traz
significado para a existência humana. Pois seus poemas são feitos da máxima
humanidade. Aqui, nos poemas de Fatureto, comparece o mito de Prometeu que
roubou o fogo divino para os homens. O conhecimento traz a queda, à descida ao
mundo dos humanos. A catábase é recheada de elementos positivos, levando o ser
humano a adquirir a ciência dos deuses, mas sem deixar de lado a hamartia trágica, com seus erros e
desconcertos.
Gilbert Durand tem um excelente livro que
esclarece sobre a teoria do isomorfismo. Em As
estruturas antropológicas do imaginário, ele disse que o isomorfismo é uma
forma de aproximar símbolos, que poderiam até se apresentar como díspares entre
si, mas que são sintetizadores de um mesmo núcleo temático. Fernanda Fatureto
alcança esta difícil proeza ao sintetizar imagens num mesmo núcleo temático, a
queda, dando-lhe corpo e substância a partir de metáforas como a estrela
cadente, as pedras. O simbolismo da dureza e da petrificação comparece durante
sua obra, como na mulher de Ló que olha para trás e vira pedra. Apesar das
imagens de imobilização a que o erro pode levar, há uma saída final a partir do
vazio e do silêncio. Sua poesia é feita de palavras importantes, mas a ausência
é o outro lado deste muro petrificante, como o que encontramos na muralha da
China. Porque apesar dos erros é preciso seguir em frente, quebrar a escultura
de mármore que nos molda: “O movimento de seguir em frente/Ainda que sangre”.
Fernanda Fatureto observa esta “polifonia” em que as linguagens se mesclam num
tecido raro, que é a riqueza de suas belas imagens poéticas. Certa elegância
hermética sai dos frascos de seus versos que nos encapsula num rede mágica e
encantada como os sonhos. O sonho é dança dos corpos em efusão erótica. São
densas suas metáforas eróticas que unem os seres naquilo que os assemelham, a
humanidade quente da força lírica. È esta consciência que salta aos olhos do
leitor, ávido por paragens mais amenas, longe do dualismo que nos move: o amor
e a guerra.
O mítico e o poético se mesclam na sua
poesia, em que temos as Moiras, Hera e Prometeu, como metáforas de seus versos
ensaísticos. A poeta reflete sobre o real a partir dos mitos, mas sem deixar de
lado, a parte grave da vida. Seus acordes são múltiplos. Temos uma poeta
conhecedora de seu dom de poetar. Se, por um lado o mítico sobressai, ela não
deixa na ruína e nos escombros a nossa história mais presente e real. Acompanhando
o mítico, temos o bíblico, unindo as crenças no sagrado universal da verdadeira
poesia, que não deve se pautar em dogmas e regras estanques, mas no
maravilhamento do novo que refaça o caminho da tradição, mas com outros olhos. Se
cair produz seu sonho de positividade, o levantar-se é deserto incontido:
“Caímos tantas vezes./O levantar é árido como vulto”. Levantar-se exige um
esforço descomunal, é difícil, lento, doído, mas necessário para a evaporação
dos anos. Fatureto expõe o sofrimento humano, a dor, o outro lado do brilho de
uma estrela cadente, que é a sua queda. Se por um lado, a catábase é permeada
de positividade, dá-nos o enfrentamento dos espelhos e seus reflexos, qual Narciso
em seu manto de dor e nulificação. O enfrentamento é seu lado ético, o olhar
humano frente ao conhecimento de sua própria dor, que não pode ser visto como
algo negativo, mas como um poder de autoconhecimento que leva ao crescimento do
ser ético.
Foto: Reprodução / Priscilla Rode |
Fatureto diz: “Nunca estivemos no limite do
que se chama humanidade;”. Apesar desta alusão à nossa humanidade, a poeta nos
apresenta o mundo mágico do onírico e do sonho, do admirar-se com o que
ultrapassa a fronteira do real. E não poderia faltar a referência a García Marquez: “Macondo existia só no papel/Seus leitores
visitavam a região/Acordados.” Suas poesias têm esta mirada ao verbo delirante,
a “miragem” ultrapassa o fugaz do tempo para se fazer lenda. Num tempo que
percorre as pupilas do sonho, sua poesia é feita de realidade (pedra) e de
utopia (fogo). Unindo o que nos humaniza ao que nos ultrapassa em chama de
desejos, a luminosidade do amor nos faz ver que a vida não é só destruição,
ruína e violência. O grito se abafa pelo silêncio das estrelas e sua poesia é
cântico estrelado da queda e do acordar para a vida e para a beleza do amor: “O
poeta já disse que o verbo delira”. A palavra, o verbo toma o veneno da queda,
na poesia de Fatureto, para trazer a partir de seus versos o antídoto, o
bálsamo que seca as lágrimas do desespero e da dor. Os poemas de Fatureto são
um remédio vibrante para a solidão dos homens. Com eles, estamos acompanhados
de vida e prazer em meio ao desconcerto do mundo. É preciso buscar uma origem
nesta mistura de vozes, procurar um poder encantatório para o mundo: “Falar a
língua matriz/Derivada de todos os sábios”. A poesia desta grande escritora nos
revela a trilha para o aprendizado da escrita, como a urdidura poética que não
se cala frente ao fracasso do mundo e o que ele nos tem a oferecer.
Portanto, temos nesta poeta ímpar o grito
contra uma moral vigente que diz que só o acerto produz conhecimento. A falha,
nossa errância é símbolo de positividade, mostrando que a descida aos infernos
pode trazer as flores perfumadas da esperança e que a queda torna o ser mais
grávido de luz do que de escuridão. Um parto precisa ser feito, para que o
homem teça uma vestimenta de revelações de sentido, pois apesar do nonsense do mundo, daquilo que nos
cerca por todos os lados, suas poesias revelam o máximo da expressão humana,
contém fortes sentidos, densos, complexos e questionadores. Sua poesia mais
ilumina que desertifica e apesar da natureza pétrea do humano, o fogo original
do mítico nos atravessa, tornando-nos sonhadores de mundos impossíveis. Sua
poesia nos fragmenta a partir da queda, mas nos une, através da reflexão desta
descida nos espelhos labirínticos do ser. Fatureto sabe como ninguém como
adentrar no interior do humano, mostrando-nos suas faces múltiplas,
polifônicas, fazendo da miragem e do sonho uma ponte, uma travessia para o que
lateja além do humano.
“Ensaios
para a queda”, poesia. Autora: Fernanda Fatureto, 74 págs., 2017.
Link para compra: http://bit.ly/ensaios_para_a_queda_penalux_leia
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Sobre a
resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Sobre a autora
Fernanda Fatureto é poeta e jornalista.
Bacharel em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Participa das antologias
poéticas 29 de Abril: o verso da violência,Subversa 2 e Senhoras
Obscenas. Seu livro de estreia, Intimidade Inconfessável, foi publicado em 2014 pela Editora
Patuá. Possui poemas em diversas
revistas literárias do Brasil e na revista InComunidade
de Portugal. Nasceu em Uberaba, Minas Gerais, em 1982.
Quero <3
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