O real e sua contraface delirante em Eram os olhos enfeitados de sol, de Dênisson Padilha Filho - Tomo Literário

O real e sua contraface delirante em Eram os olhos enfeitados de sol, de Dênisson Padilha Filho

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Por Alexandra Vieira de Almeida

Na arrebatadora e inusitada novela Eram olhos enfeitados de sol (Penalux, 2017), de Dênisson Padilha Filho, temos a configuração da circularidade entre início e fim, criando-se, assim, uma abertura no começo da narrativa para a dúvida, a incerteza e as surpresas que vão percorrer esta obra impactante que nos lança olhos ocultos. Se Machado de Assis, com sua Capitu e olhos de ressaca, revela uma personagem dissimulada; aqui, no novelista, os olhos enfeitados de sol são de uma verdade e sacralidade impressionantes, unindo o sagrado ao profano.

O livro é dividido em três capítulos a densificar a estrutura tríplice da novela, como analisada por Massaud Moisés no seu Dicionário de Termos Literários. O início da trama mostra um universo em que nada acontece de significativo na vida do narrador-personagem, os dias transcorrem lentos e absurdos na sua vida pacata e sem originalidade. No meio da história temos o explodir das tensões e violências, o ponto alto da narrativa, mas também o alento de vida, de movimento na existência do narrador-personagem. No final, a solução, o desfecho das situações anteriores e explicação do destino do personagem principal, o narrador, num remate mais breve.

Vejamos como Massaud nos apresenta a composição da novela, diferente do romance: “Na verdade, a novela constrói-se por justaposição, pois cada célula retoma, parcialmente, o andamento dramático que compõe a totalidade da narrativa: o tonus dramático ao invés de ascender em espiral, como no romance, descreve uma curva senóide: cada célula evolui como dentro de um círculo fechado, obediente a um esquema ternário (início-clímax-epílogo).” Como exímio conhecedor da técnica narrativa, Dênisson nos mostra essa estrutura com a repetição circular entre início e epílogo (terceiro capítulo). No meio, a tensão dramática que serve como foco onde todos os olhares se miram.

Os capítulos são assim intitulados a demostrar essa unidade e totalidade do enredo que apesar de sua coesão e coerência estrutural, apresenta, por outro lado, o universo do sonho, do onírico e do delírio na vida do narrador-personagem: “Som do ar acordando”, “Velha sala pintada de luz matinal” e “Dança luminosa no acostamento”. Todas estas imagens fortes nos títulos dos capítulos caminham para uma mesma unidade, a figura da luminosidade que percorre a narrativa e que tem, como metáfora, o sol. Mas, paradoxalmente, a narrativa do autor aqui em questão é rica em enigmas, em surpresas, fazendo do seu texto um mistério não coberto pelo sol clarificante. Pois o objetivo do narrador não é clarificar, explicar tudo de forma objetiva. Apesar do apelo cotidiano, realístico do enredo, as digressões do narrador-personagem são belas pontes metafóricas para o reino do poético, sua prosa é poética, onírica, revelando traços da literatura do absurdo.

Não poderíamos deixar de mencionar aqui o livro O estrangeiro, de Albert Camus, onde o autor francês rompeu com existencialismo de Sartre para buscar o absurdo da vida humana. Há um texto excelente de Artur Custodio, que pode ser encontrado na internet, “O estrangeiro, de Albert Camus: o romance do absurdo”, em que ele diz: “Essa teoria diz que o absurdo é o ato de existir, pois a vida é desprovida de sentido e desprovida de finalidade, isto é, o homem é aquele que está diante do nada e tenta encontrar algum sentido para viver. Dessa forma sua existência é uma busca de sentido contínua”.

Se o personagem de Camus, Meursault, não encontra saída; Dênisson ressignifica a teoria do absurdo, utilizando outro parâmetro. O autor brasileiro utiliza como uma solução o lírico, o poético e o onírico, que são revelados a partir de uma personagem, uma moça, que muda inteiramente a trajetória pacata do narrador, feita de doce de goiabada e da bebida genebra no bar Flamboiã, com suas transas superficiais com professoras universitárias, que apesar do prazer que lhe proporcionam, não diz nada. O título do livro é como essa personagem se apresenta para o narrador-personagem, eram olhos enfeitados de sol, algo festivo, alegre, potente, uma experiência epifânica, à la Clarice Lispector, como no seu conto “Amor”.

Outro recurso estratégico do autor: não sabemos os nomes das personagens. Temos L, o sócio na madeireira, o primo, a tia, a mãe, o pai, os filhos, o rapazote do bar, o velho, o gazo, a moça enfeitada de sol, que é batizada com um nome fictício pelo narrador-personagem, Vega, em homenagem ao sol. Só ela é nomeada, mesmo que ficcionalmente, revelando que essa falta de nomes mostra uma desimportância que essas personagens terão na sua vida, como veremos no epílogo. Só importa o epicentro de sua vida, que é a moça louca enfeitada de sol, que é zombada por meninos e pelo rapazote do bar. Essa loucura da menina é a ponte de amor entre o narrador-personagem e ela, pois ele sofre de delírios acordado e de pesadelos quando está dormindo. Esse lado delirante do personagem principal revela a afinidade com Vega que se torna o sol de sua narrativa, o núcleo sobre o qual os acontecimentos se desenrolam ou já se desenrolaram no passado.

Inicialmente, pensamos que o narrador é o epicentro da história, com suas queixas e questionamentos com relação à hipocrisia e às máscaras sociais. Mas o sol se descentra, a focalização, o ponto de vista do narrador se desloca para sua amada Vega que traz vida a tudo que cerca o narrador. Até mesmo a madeireira que ele herda do avô, que estava em falência, ganha um novo impulso com lucros para todos. A focalização é um recurso narrativo, que mostra a relação entre o sujeito e o objeto narrado. No E-Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, temos o seguinte sobre focalização: “Na base da conceptualização deste fenómeno, está a perspectiva como metáfora do processo de conhecimento, metáfora que consagra o confronto cognoscente entre sujeito e objeto...” A partir da observação do objeto, temos diversos tipos de focalização.

Dênisson cria uma belíssima metáfora com relação ao ponto de vista. O sol é a metáfora para a focalização a partir dos olhos. Os olhos do narrador se enchem de luz ao observar a personagem Vega. Se antes o olhar era noturno, opaco, assim, como os olhos dos habitantes daquela cidade, na sua pachorra; sua observação não é mais pessimista, mas se enche de plenitude e bem-aventurança, apesar do final trágico que o narrador não vê como motivado por esse olhar diferente: “O QUE VI FOI UMA COISA de outro mundo. Saí do bar para saborear a goiabada na sombra e encontrei aquilo, um atentado a nossa existência medíocre. Eram olhos enfeitados de sol”.

Outro aspecto linguístico do narrador é colocar o início de cada capítulo com palavras em CAIXA ALTA. Isso revela o ímpeto, o impacto que cada capítulo vai provocar no leitor, pois a leitura também provoca, incomoda, tira-nos da nossa pequenez e mediocridade. É esse o objetivo de sua narrativa, fazer-nos refletir sobre a banalidade do mundo, sobre o absurdo de nossas vidas artificias, frias e monótonas. A moça enfeitada de luminosidade é o sol onde giram os planetas, inclusive o narrador, que se fragmenta na inteireza dessa moça que acentua seu onirismo, que era uma tônica desde a infância quando ele observava mais as manchas dos bancos da igreja com suas formas impressionantes como dragões, coisas mágicas e afins do que os formatos das nuvens (comum no imaginário de todos nós): “Sinceramente, a criança sempre preferiu as manchas dos bancos às nuvens”. Era em baixo, na Terra, aonde seus olhos se miravam, mas agora ele se volta para o céu, contrariamente, nos olhos de sol da moça louca. Há uma experiência de transe desde a infância no narrador e isso é comum à Vega.

No Dicionário de símbolos, dos grandes Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, vejamos o que eles escrevem sobre a imagem solar: “Os samoiedos veem no Sol e na Lua os olhos de Num (=Céu): o Sol é o bom olho, a Lua, o mau”. Pensando nessa imagem, os olhos de Vega não demonstram essa contradição entre o bem e o mal. Ela é o bem que traz para o narrador a experiência de também ser epicentro, a essência de sua vida, na fluidez da paz inaugural que o levará a florir sua existência de sacralidade. O epílogo é uma janela para o sol, onde tudo se ilumina, se clarifica, é a luz que nos revela a verdade, mas também traz sua sombra, o mistério. Vega acorda a cidade.

Temos nessa narrativa magistral de Dênisson Padilha Filho a mistura entre o realístico e o poético. Temos também pequenos delírios e digressões em meio ao cotidiano. E, como, não nos lembramos de Xavier de Maistre, com sua viagem no quarto. Com a percepção do narrador, temos um fino observador da realidade à sua volta, sendo ele contemplativo. Ao mesmo tempo em que temos cortes abruptos entre partes, o autor coloca asteriscos entre elas, a revelar uma pausa em meio à agilidade e rapidez da narrativa. Há também uma busca pelo passado, uma nostalgia pela infância numa cidade que vive seu processo de modernização. Num rico paradoxo, o narrador diz: “...inocência velha da meninice”. Há um contraste entre a agilidade da narrativa e a modorra daquelas personagens pequenas.

Como nada acontece naquela cidadezinha, com sua monotonia, o narrador solariza o ambiente a partir da forma como ele narra e descreve, dando frescor ao que o cerca. O narrador apresenta um fio tênue entre o desprezo que a solidão acarreta e o afeto familiar, que se quebra. O outro afeto, o carnal e o sagrado com Vega é que toma corpo e volume na sua obra. O narrador era bom para a fala e não para o ato, como ele percebe ao falar com seu sócio sobre os problemas da madeireira. A náusea do narrador é colocada para fora com os olhos enfeitados de sol. Tudo se modifica, não é mais o mesmo. Por outro lado, temos os maus olhos, que sabem bem atirar, que caçam, que miram como um predador, os olhos de L. O sol como revelação para a vida do narrador é o outro lado da moeda. No meio da lentidão da madeireira, a moça enfeitada de sol é um corte abrupto nessa tranquilidade, a epifania que traz movimento às ações, diferente do corte das serras da madeireira, sempre iguais: “As manhãs na madeireira íam lentas”. O amor entre Vega e o narrador é a espinha dorsal do texto, do enredo, que gera ódio, perversidade e indignação.

A sacralidade do narrador é diferente da beatice dos personagens secundários. Ele conversa com Deus e com os leitores, dialogando a partir de seus questionamentos. Os funcionários da madeireira, por outro lado, discutem diariamente sobre futebol e trabalho, como o velho e o gazo. Há uma diversidade, uma diferenciação entre os capítulos que não deixam de ter sua unidade. Portanto, nessa narrativa o narrador enxerga o invisível, é um narrador - poeta que é capaz de captar a solarização. O autor Dênisson Padilha sabe captar com maestria os matizes do real e de sua contraface, o universo delirante e onírico. Temos nessa novela fantástica, o assombro do sol, sua verdade, como jorro lírico sobre as coisas banais, que ganham brilho com um enredo espetacular que sabe lidar com as inúmeras imagens dos afetos, densos, frios, superficiais ou amorosos. Temos um escritor que deve permanecer com seus belos livros para encantar mais leitores ávidos por páginas cada vez mais criativas e originais, como as encontradas nesse livro.

Sobre a resenhista

Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.


Sobre o autor

Dênisson Padilha Filho (1971) nasceu na Bahia. Escritor e roteirista de audiovisual. É mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA. É autor de Trilogia do asfalto (P55, 2016, contos), O herói está de folga (Kalango, 2014, contos), Menelau e os homens (Casarão do Verbo, 2012, contos e novelas), Carmina e os vaqueiros do pequi (2003, romance) e Aboios celestes (1999, contos). Participou de algumas antologias e tem textos publicados em diversas revistas literárias.


“Eram olhos enfeitados de sol”, novela. Autor: Dênisson Padilha, 94 págs., R$ 34,00, 2017.

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