Vinte e nove contos compõe o
livro O Fio das Missangas, do escritor moçambicano Mia Couto, publicado pela
Editora Companhia das Letras em 2009 (147 páginas).
Particularmente, os livros
de contos me tocam de uma maneira singular, pois nele vejo a oportunidade de
degustar várias histórias de um mesmo autor. Podemos descobrir histórias que
nos tocam e despertam o desejo de conhecer mais de quem as escreve, ter mais
contato com outros livros do escritor. Ou ainda, podemos até notar que algumas
dessas histórias valem o peso de ter a sua própria obra, um livro para que a
história seja esmiuçada, que ganhe mais contornos e nuances, mais detalhes,
mais personagens. Não é tarefa fácil escrever um conto e contar uma boa
história de maneira sucinta.
Uma boa forma de adentrar a
obra de um determinado autor é ler os contos que ele escreve, se os escreve,
posto que nem todos os autores fazem contos. Portanto, para quem ainda não leu
nenhum livro de Mia Couto, antecipo aqui a sugestão de que leia o livro objeto
da resenha.
“Sou
um qualquer da vulgar raça humana, sem comprovado pedigree, se tiver cabimento
em jornal, será nas páginas de anúncios desclassificados.” Do
conto O Dono do Cão Homem.
Os contos apresentam
personagens em situações que podem ser consideradas simples, cotidianas, no
entanto, não falta nessa vida que os personagens levam, profundas reflexões
sobre a própria existência no contexto da sociedade em que estão inseridos.
No conto que dá título ao
livro, por exemplo, temos um homem conhecido apenas por suas iniciais e que tem
um papel de superioridade em relação às mulheres. Como diz o próprio Mia Couto,
há na “voz do poeta um fio de
silêncio...” Tal silêncio, que não está ali explícito, evoca que aquilo que
está diretamente declarado nos contos pode conter uma metáfora ou o chamamento
para a reflexão, na forma com que os temas são abordados por meio daqueles
personagens. Tal silêncio, que é aquilo que o autor não diz ao escrever, é o
que efetivamente explica aquela voz.
“Em
casa de pobre ser o último é ser nenhum.” Frase de um
personagem de um dos contos. Não está dito ali, está silenciado, mas há muito
que se pode depreender do que está escrito.
Nas histórias do livro, o
leitor vai se deparar ainda com Maria Metade, a mulher que figura em uma das
histórias, e que flerta com o escritor para pedir-lhe que dê uma mentira, por
meio da qual ela posa ser inteira, ser realmente culpada de um fato da qual ela
não é. Na carência de sua vida, nos revezes pelos quais passou, ela se vê
incompleta pelo que sentiu... há um vazio em sua existência. Não teriam outras
tantas pessoas um certo vazio em suas existências? Não gostariam, pessoas
reais, de terem uma mentira pelas quais pudessem ser culpadas, fazendo-as,
assim, se sentirem também completas?
Em outro conto, ao sinal
combinado, as crianças devem sumir de vistas. Mariazinha espera o marido que
aparece sempre no dia 25, Natal, trazendo presentes para o filho. Virá ele no
outro ano? Mia Couto fala sobre uma mulher que espera, mas que a exemplo do
marido, tem lá com quem se aproximar. A espera angustiante, a espera que não
tem certeza, mas a espera que sucumbe, porque não se pode esperar.
É assim, com essas missangas
que se forma o cordão da vida. Fatos do cotidiano, relações pessoais,
sentimentos expressos e vivenciados. Os contos de Mia Couto dão luz aquilo que
pode parecer desimportante. Nesse livro vemos, numa parte das histórias
publicadas, uma voz feminina que revela diversos fatos a que são submetidas. Elas
emergem para detalhar aos leitores o que vivem. Os contos reúnem histórias de
desencontros, de amor e desamor, de vidas que não são sentidas como completas,
de sonhos que se desfazem no caminho. Tratam, pois, de coisas humanas.
Mia tem uma prosa dotada de
poesia, capaz de dar sensibilidade e sutileza a fatos que por vezes não são. O
lirismo que adota encanta pela forma como o autor costura a trama dos contos,
como deixa neles uma marca, uma suavidade para conduzir o leitor por histórias
completas. O misto de prosa e poesia, o jeito como o autor escreve que pode ser
sentido por quem lê, agrada. É na sutileza de contar que ele consegue chegar no
leitor.
“A
vida é um colar. Eu o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as
missangas...” É assim que o personagem do conto “O Fio e
as Missangas” – que dá título ao livro, já citado anteriormente - define sua vida.
A morte também ganha aura de
poesia, como quem ao viver vê pouco e, por isso, tem os olhos cerrados quando
parte. E há, ainda conto de fantasia como o da aranha que faz obra de arte. Ela
não tece a teia apenas por instinto. Seríamos nós, humanos, como tal aranha?
Mia também nos dá o conto da
filha que assume o filho da mãe, o mendigo Sexta-Feira, o engenheiro Ludmilo
Gomes se confessando com o padre novo, uma carta de Ronaldinho Gaúcho, o cão
que pede para ser dono de um homem e homens que choram.
“_
A vida, Santo e Deus, tem segunda via?” (trecho do conto Entrada no
Céu)
São contos curtos, mas
profundos que versam sobre o humano com lirismo, com o peso das palavras bem
empregadas que nos sugam para esse colar que tece o autor. Fato é que você
conclui a leitura querendo mais do autor Mia Couto. O livro dá sede de conhecer
mais de sua obra.
O livro é, sem dúvida,
daqueles que requerem do leitor mais que a apreciação da mera narrativa. É
necessário querer refletir sobre o que está por traz do que os contos abordam. São
vinte e nove histórias que trazem a vida de personagens contadas com maestria e
poesia. “Uns seguindo-se aos outros, em
rosário. Como contas de missangas...”
Foto: Bel Pedrosa |
Sobre
o autor
Mia Couto nasceu na Beira,
em Moçambique, em 1955. Estudou medicina antes de formar em biologia.
Atualmente dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio
Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra; e em 2007, o prêmio União Latina de
Literaturas Românicas. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos
melhores livros africanos do século XX. Além deste, escreveu entre outros: O
outro pé da sereia, O último vôo do flamingo, A varanda do fangipani, Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra, Venenos de Deus, remédios do Diabo,
Antes de nascer o mundo, E se Obama fosse africano? E o infantil O gato e o
escuro, todos publicados pela Companhia das Letras.
Ficha
Técnica
Título: O Fio das Missangas
Escritor: Mia Couto
Editora: Companhia das
Letras
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-359-1381-1
Número
de Páginas:
147
Ano: 2009
Assunto: Contos
Adoro absolutamente Mia Couto. Nunca li este livro, nem contos do autor - claramente algo a rectificar :) muito obrigada!
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