“Se
você não tivesse nada em que pensar a não ser em si mesma, o que você
descobriria a respeito de si mesma?”
Joan Scudamore está retornando do Oriente, após
visita que fizera para sua filha em Bagdá. Numa pousada encontra-se com Blanch
Haggard, “uma velha amiga de escola que
ela não via há uns bons quinze anos”. As duas conversam sobre suas vidas.
Blanche demonstra-se uma mulher que viveu com vários homens e que parece um
pouco fútil e desmedida em sua forma de falar. Joan se vê diferente dela e a vê
como “a pobre Blanche” “que teve uma vida muito infeliz”.
De qualquer forma, o diálogo que as duas
mulheres que se reencontraram tem, parece mexer com Joan Scudamore, a dona de
casa, casada com um advogado chamado Rodney que teve duas filhas e um filho.
“A vida
familiar nunca era muito tranqüila. Feriado, doenças infecciosas, canos
rompidos no inverno. A vida era mesmo uma série de pequenos dramas.”
Um imprevisto a faz perder o trem e ela fica
no meio do deserto, numa estação ferroviária e numa pousada que pertence a um
hindu, cercada de árabes e galinhas. Ela acha o deserto maravilhoso, o que
confessa numa carta que escreve: “É como
se, pela primeira vez em anos, eu pudesse ouvir meus próprios pensamentos”. Com
os livros esgotados para preencher o tempo com a leitura, isolada e com
ociosidade para dar e vender, ela se coloca a pensar, a refletir sobre sua
vida.
Nas lembranças de Joan, Agatha Christie toca
até em questões delicadas que aconteceram com a personagem, ainda que de
maneira rápida. Joan revela em certo trecho que houve um homem que disse que
ela “é o tipo de mulher que deveria ser
estuprada”. Nos dizeres da personagem ela pensa que tal episódio deve ser
esquecido e que foi horrendo.
Joan aparenta ter sido durante toda sua vida
uma mulher que não percebera aqueles que a cercavam. Na solidão daquele lugar,
a personagem passa a relembrar sobre sua vida, sua família, a relação com o
marido, o trabalho dele como advogado, a convivência com os filhos, os
conflitos de geração, entre tantos outros assuntos inerentes a família e a ela
própria.
A aclamada escritora Agatha Christie ficou
conhecida como Rainha do Crime por suas dezenas de livros que envolvem
investigações. Além de tais livros, foi autora de peças de teatro, fez contos,
poemas e publicou seis romances sob o pseudônimo de Mary Westamacott, entre
eles Ausência na Primavera. A edição
lida foi publicada pela L&PM Editores em 2011 (224 páginas) e conta com
tradução de Jorge Ritter.
As reflexões de Joan ensejam que ela
acreditava ter uma vida feliz. Suas recordações revelam muito da personagem, da
sua vida, de sentimentos e constatações humanas. Vale também observar os
comentários que Joan faz sobre outras pessoas que passam pela sua história. É
como se ela atribuísse aos outros uma infelicidade inexistente, ou que eles
infelizes deveriam ser. O uso do deserto, como lugar em que ela fica isolada
durante dias, é um interessante contraponto. Ali ela nos revela sua vida, a real,
como se fosse uma miragem própria do lugar.
“Abandona-se
algo quando deveria ter investido, e investe-se em algo que seria melhor deixar
de lado; em um minuto a vida é tão adorável que mal se pode acreditar que seja
verdade, e, imediatamente depois disso, passa-se por um inferno de infelicidade
e sofrimento. Quando as coisas estão indo bem, acha-se que durarão para sempre,
mas nunca duram e, quando se está por baixo, pensa-se que nunca mais se vai
subir à superfície e respirar.”
Agatha Christie arrasa em um romance que traz
uma protagonista bastante interessante. A trama costurada pela autora também
nos pega de jeito. Conhecer Joan é estudar relações humanas, seus anseios e
porque não dizer, suas máscaras. Acreditamos no que queremos acreditar.
Montamos um mundo só nosso em que tudo parece seguir o caminho que nós
determinamos, possivelmente para que tudo esteja sob nosso controle. Mesmo que
saibamos que não é exatamente assim que as coisas acontecem. Joan é esse tipo
de pessoa. Ela talvez não perceba a vida que tem, os acontecimentos que a
rodeiam, os desejos e anseios de quem com ela convive. A personagem criou uma
vida que esteve sob seu controle, que seguiu seus desejos. Quando ela percebe
que nem tudo era como parece ela tentará se reconectar com os seus.
Agatha Christie, que demonstra bem os
diversos aspectos humanos sob a perspectiva de suas motivações para o crime,
também demonstra que sabe lidar com as emoções que movem o ser humano. O livro
tem um desfecho que revela todo o ápice da trama, carregado de drama emocional.
A ausência, ainda que o corpo presente, talvez seja o grande “tormento” que
habita Joan.
“De
você estive ausente na primavera...”
Sobre a
autora
Foto: Reprodução |
Agatha Christie é a autora mais publicada de
todos os tempos. Em uma carreira que durou mais de cinqüenta anos, escreveu
romances de mistério, contos, peças de teatro, uma série de poemas e livros
autobiográficos, além de romances sob o pseudônimo de Mary Westmacott. Dois de
seus personagens tornam-se mundialmente famosos: o engenhoso detetive belga
Hercule Poirot e a irrepreensível e implacável Miss Jane Marple. A obra de
Agatha Christie foi traduzida para mais de cinqüenta línguas e muitos de seus
livros foram adaptados para o teatro, o cinema e a televisão. A autora
colecionou diversos prêmios ainda em vida, e sua obra conquistou uma imensa
legião de fãs. Ela é a única escritora de mistério a alcançar também fama
internacional como dramaturga e foi a primeira pessoa a ser homenageada com o
Grandmaster Mystery Writers of America. Em 1971, recebeu o título de Dama da
Ordem do Império Britânico. Agatha nasceu em 15 de setembro de 1890 em Torquay,
Inglaterra, e faleceu em 12 de janeiro de 1976, após uma carreira de sucesso.
Ficha Técnica
Título: Ausência na
Primavera
Escritor: Mary Westmacott (Agatha
Christie)
Editora: L&PM Editores
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-254-2044-2
Número
de Páginas:
224
Ano: 2011
Assunto: Romance inglês
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