“Leopardos
irrompem no tempo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se
repete sempre; finalmente, tonar-se previsível e é incorporado ao ritual.” (Franz Kafka)
Os Leopardos de Kafka, de Moacyr Scliar foi
publicado pela Editora Companhia das Letras em 2000 (122 páginas).
Como o próprio título do livro alude, é certo
que o leitor vai se deparar com uma situação digna de figurar nos livros do
escritor Franz Kafka. Alguns pontos que seguem podem ser encarados como spoiler, no entanto, estão descritos na capa e na orelha do
livro e em nada afetam a leitura e a surpresa por parte do leitor.
O livro tem início com um relatório
confidencial que estava entre documentos e arquivos dos serviços secretos que
operaram no Brasil a partir do golpe de 1964. O que, depois vem se interligar
com as ações que se sucederão, no retroceder do tempo.
A história então dá um passo atrás e o
personagem-narrador passa a nos relatar os acontecimentos. A narração, em
primeira pessoa, é feita pelo primo de Jaime, e sobrinho-neto de Benjamin. Quem
é Benjamin?
Benjamin Kantarovich era amigo de Iossi, que
lhe deu um livro quando ele completou dezenove anos: “um exemplar do Manifesto Comunista em iídiche”. O livro se tornou
para Benjamin como uma Torá para os religiosos. Um ponto interessante de
observar é a forma com que as ideias e ideais comunistas tomam conta do
personagem, que se vê obstinado, ou até mesmo podemos dizer, obsessivo, pelo
assunto.
Iossi, esse amigo que presenteara, Ratinho
(apelido de Benjamin), some por um determinado tempo. E, ao voltar, diz que
esteve com Trotski, figura admirada pelo amigo. Iossi recebera uma missão
importante a ser realizada, mas fica adoentado, está muito mal, e pede a
Benjamin que cumpra a referida missão. Ele é, então, encarregado de procurar
por um homem em Praga e pegar com ele um texto, que seria uma mensagem cifrada,
e deve entregar a ele o envelope. Tudo que Benjamin sabe é que precisa
encontrar um escritor judeu e esquerdista.
Saído de uma aldeia judaica na Rússia, num
momento em que a Europa estava devastada pela Primeira Guerra e à beira da
Revolução Russa, ele chega em Praga. Ratinho sente-se seguro de que um dia
encontrará Trotski, que tem como “um
grande companheiro, revolucionário de primeira linha, um homem que cumpre
qualquer missão, por mais difícil que seja.”
Mas, Benjamin tem lá suas atuações atabalhoadas,
e acaba perdendo o envelope misterioso que deveria entregar ao homem que
encontraria. Envelope que guarda o segredo de resolução da mensagem cifrada.
Vendo-se sem tal artefato ele parte em busca de desvendar toda a missão, com o
mínimo de informações que tem, além de fazer suas análises a partir do seu
conhecimento e suas considerações sobre os comunistas.
Nesse ínterim ele recebe um texto chamado Leopardos do Tempo,
das mãos do escritor Franz Kafka. O caminho dos personagens se cruza com
objetivos diferentes. Com as trapalhadas de Ratinho a missão parece não tomar
corpo, não caminhar para uma solução esperada (aquela que teria sido
determinada inicialmente por Iossi). As confusões de Benjamin acabam por
refletir-se até no Brasil, quando ele emigra nos idos de 1964.
Moacyr Scliar tem um texto agradável de ler e
trata de maneira bem humorada os episódios que acontecem com o personagem. A
mistura de realidade (constatada pela presença de Franz Kafka e Trotski) em cenas
com personagens fictícios (Benjamin e Iossi), cria uma mescla interessante
entre o real e o imaginário. A intertextualidade usada que traz abordagens das
obras do escritor Kafka torna ainda mais interessante a publicação.
O autor utiliza ainda os enganos dos
personagens para contrapor, na ficção, a mistura entre o real e o imaginado. De
tal sorte que a história torna-se de fato kafkiana, adjetivo utilizado para
explicar aquilo que é relativo à obra de Franz Kafka – tida como uma situação
absurda.
Particularmente, gosto quando um livro nos
surpreende pela boa história que apresenta, como é o caso da publicação em
questão. O li sem grandes expectativas, sabendo apenas um pouco de seu autor e
sobre Kafka (que adoro), e eis que encontro uma excelente história, bem
estruturada, cômica, mas que também nos revela de maneira implícita alguns
aspectos que suscitam reflexão, tais como a obsessão do personagem por uma
figura política, a busca de ideais, a realidade criada a partir de constatações
equivocadas, que se tornam reais mais pela produção da imaginação do que pelos
fatos verídicos que se apresentam. Uma forma imaginada de encarar a vida e
conduzi-la para o que se pensa e não para o que é.
Um excelente livro. Recomendo!
Foto: Reprodução |
Sobre o
autor
Moacyr Scliar naseu em Porto Alegre em 1937.
É autor de oitenta livros em vários gêneros: romance, conto, ensaio, crônica,
ficção infantojuvenil. Suas obras foram publicadas em mais de vinte países,
entre eles Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Suécia,
Noruega, Itália, Argentina, México, Japão, Canadá e Israel. Recebeu inúmeros
prêmios, como o Jabuti (1988 e 1993), o APCA – Associação Paulista dos Críticos
de Arte (1989) e o Casa de las Americas (1989). Tem textos adaptados para o
cinema, teatro, televisão e rádio, inclusive no exterior. É médico e membro da
Academia Brasileira de Letras.
Ficha Técnica
Título: Os Leopardos de
Kafka
Escritor: Moacyr Scliar
Editora: Companhia das
Letras
Edição: 3ª
ISBN: 978-85-359-0021-7
Número
de Páginas:
122
Ano: 2000
Assunto: Romance brasileiro
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