Erre Amaral, o garimpeiro das formas mágicas,em
Do mundo, suas delicadezas
Por
Alexandra Vieira de Almeida
O livro Do
mundo, suas delicadezas, de Erre Amaral (Penalux, 2017), é um verdadeiro
aprendizado épico-epistolar de formação de uma mulher. A voz feminina, como
narradora, conduz um leitor específico, um homem, seu amado mágico. A narradora
se dirige a este leitor impossível e não mais existente, criando-se um leitor
imaginário, como se uma carta bem elaborada fosse escrita, se dirigindo a ele
num tom épico em que vai contar suas vitórias e agruras de uma heroína que é,
paradoxalmente, uma anti-heroína. As figuras masculinas conhecidas da tradição
tanto bíblica quanto mitológica, comparecem, sendo subvertidas e transformadas
pela ótica feminina. O olhar feminino é o tom maior que se dá nesta narrativa
de Erre Amaral. Por exemplo, quando a narradora-personagem Pretinha fala de sua
prima que se prostitui, sai de casa e volta como filha pródiga ao lar, como não
nos lembrarmos do “Filho Pródigo”, do relato da Bíblia? Ou quando, no canto das
sereias, relembrando Ulisses, em sua odisseia, a narradora e personagem
principal deste livro magnífico, apelidada de “a minha preta do meu amor”, pelo
seu amado mágico, escuta os sons externos com seus “ouvidos cegados” que
“Ouviram o que quiseram ver,”.
A inversão de valores bíblico-mitológicos só
reforça este diálogo intertextual, revelando a originalidade da força poética
de uma voz feminina como narradora e personagem principal, que pelo seu lirismo
encantador suaviza a miséria, a crueldade e maldade humanas. Temos neste livro
uma voz que tanto eufemiza como hiperboliza a realidade, dando um tom mimoso,
carinhoso, ou, como o próprio título define, delicado (com diminutivos, dando
numa linguagem familiar, íntima), ao real, mas que aponta para uma ironia sagaz,
como na imagem da serpente que se enrosca em coisas doces e belas, a questão do
mal em sua narrativa nos mostra o lado demoníaco e subterrâneo em toda a
humanidade. Do lado angelical da menina-moça Pretinha, temos sua transformação
que toma corpo pelo viés erótico, mas também cruel, pelo seu desejo de vingança
ao violador Reinaldo de sua inocência erótico-amorosa pelo mágico. Temos uma
descrição belíssima e poética da cena de amor entre Pretinha e seu amado mágico,
em que o implícito prepondera sem nos ferir com uma pornografia chula, como
estamos acostumados a ver na contemporaneidade, mas com um erotismo de alto
nível que só os grandes poetas conhecem.
Temos para cada parte do livro escrito (duas)
todas as letras minúsculas e, no final, uma vírgula, e não ponto final, dando
ideia de continuidade, de que a narrativa vai ter prosseguimento e deve
continuar. Encontramos, no entanto, durante todo o corpo da narrativa (com o
título dos capítulos-poemas das duas partes) os versos escritos com inicial
maiúscula e também terminando sempre com vírgula, isto nos dá ideia de um tom
maior, a narradora quer dar grandiosidade ao que se quer narrar no método
poético através da característica épica da narrativa, como se o título, também,
que termina com vírgula e os capítulos também fizessem parte do poema, parte do
constructo poético. Neste livro, convivem gêneros variados, em que o autor
subverte a ótica clássica de gêneros estanques. Temos um romance em forma de
versos, mas que não deixa de ter seu tom epistolar. Se nos lembrarmos da origem
do gênero épico ou narrativo, nos deparamos com as grandes epopeias que eram
escritas em formas de versos. A forma mágica de Erre Amaral nos conduz a partir
de sua originalidade que produz um verdadeiro monumento literário, mesclando
formas e estilos diversos, dando grandiosidade à sua narrativa, As vírgulas
constantes criam um rico paradoxo. Além de revelarem uma pausa, um respiro, a
uma história de fôlego, pujante; dão a ideia de que as histórias devem ter um
motor contínuo, não demonstram algo acabado, suspenso, parado, mas da
continuidade de todas as histórias. Uma progressão milimetricamente pensada e
elaborada com grandeza por Erre Amaral.
Essa ideia de movimento, progressão através
das formas se adequa belamente ao conteúdo, pois as borboletas, sempre
presentes no livro nos levam para o mundo do imaginário, que não tem a placidez
da estátua, mas a flexibilidade de uma borboleta, como sua própria narrativa,
como nos conduz ao belo e flutuante movimento das borboletas, suas metáforas. A
imagem para o símbolo da narradora, ágil, arguta, vivaz, flutuante,
transformadora e para a própria narrativa, que se mesclam (narradora e
narrativa) é a da borboleta. No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e
Alain Gheerbrant: “Graça e ligeireza, a borboleta é, no Japão, um emblema da
mulher; (...) Ligeireza sutil: as borboletas são espíritos viajantes; sua
presença anuncia uma visita ou a morte de uma pessoa próxima.” Por outro lado,
o avesso das belas borboletas coloridas e benfazejas que percorrem o externo e
o interno, o “ventre”, de Pretinha, é a azougada mariposa que aparece para dar
tragicidade ao tom épico. O drama também convive nesta mistura de gêneros, que
vai desde o épico, o poético, o epistolar e o dramático, numa riqueza de formas
excepcional produzida por Erre Amaral, que só pode ser reinventada por quem
conhece e tem domínio da técnica escrita como este escritor de Porto Velho
(RO).
As diversas formas colhidas pelo autor, na
sua conciliação de opostos, mostra a força do olhar, dos olhos. Esta é uma
imagem recorrente na narrativa. A imagem poética concilia opostos, como vista
pelo grande crítico e poeta Octávio Paz, que dizia que o pesado pode ser o
ligeiro. A conciliação da delicadeza com a crueldade neste livro fantástico
recria a imagem poética em toda sua força, conduzindo-nos a um olhar inaugural
da narradora-personagem Pretinha. No texto “Janela da alma, espelho do mundo”, Marilena Chauí diz: “Porque cremos que a
visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora,
olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Neste
sentido, Pretinha carrega um mundo dentro de si que precisa ser projetado para
fora, pelo seu olho mágico e encantador, revelando o peso e a leveza da vida. A
força dos afetos em Pretinha é imensurável e revela a delicadeza do poético que
pode suavizar o mal que adentra os poros da humanidade, do mundo.
Se no início do livro temos as funções bem
delimitadas do homem (mais bruta) e da mulher (mais delicada), como de Eliezer
e a mãe de Pretinha, Santinha, isso vai se desmanchando ao longo da narrativa a
partir do dom pela escrita de Pretinha. Esta é conhecedora da natureza, de suas
espécies e minuciosidades. Como uma pessoa letrada ela ganha um Almanaque do
seu amado mágico, o livro sobre todas as coisas e, aqui, invenção e realidade
se mesclam, pois ela se pauta na sua vida por este livro maravilhoso. Apesar de
Pretinha ser descrita por sua fragilidade, ela vai ganhando força e malícia com
relação à vida. Ela se torna uma excelente observadora do externo e do interno,
percebendo suas minúcias, seus detalhes. A narradora-personagem no início do
livro enumera as várias espécies de borboletas e depois se especifica numa, a
maldita mariposa. Esta é internalizada na vida das tristes histórias de seus
familiares, com o sofrimento, a loucura, a dor. É tamanha a força poética e
lírica de Pretinha que o mal pode ser domado, amenizado. A força poética
eufemiza o mal, Pretinha busca a utopia, outro mundo, uma utopia de amor num
mundo cruel. Mas é, paradoxalmente, pela realística da crueldade, que o mal
ganha sua dimensão hiperbólica, sendo domesticada, no entanto, pelo lirismo.
Neste romance-canção, que tem ritmo,
musicalidade, o seu lado lírico, encontramos a feiura, a crueldade, no peito de
Pretinha, com sua vingança de morte e também pela busca da prostituição. Mas
este caminho anti-heróico é dosado pela força redentora e conciliatória no
final pelo próprio viés da escrita, pela força do literário. Em certas
descrições, a narradora-personagem ressalta a cor da pele, mostrando todas as
cores multifacetadas, uma realidade múltipla e complexa como requer Erre
Amaral. Temos neste escritor fascinante, um livro dentro de um livro, Pretinha
dentro do Almanaque e da vida, um verdadeiro labirinto linguístico de variadas
formas. A narradora enumera coisas na horizontal e na vertical, para mostrar a
multiplicidade das formas e a quebra do nivelamento artificial de posturas
estanques. Pretinha descreve como se estivesse lá, no passado da narrativa,
traz o presente para o passado. E Pretinha utiliza justamente os versos
começando por letras maiúsculas para dar a grandiosidade do ato de narrar por
uma voz feminina.
O poder de invenção da menina, desde a
infância, o dom de criar, justifica a narrativa atual. A partir do relato
bíblico do tio Zé, cria sua narração adequada a sua vida e pessoa numa parte do
livro. Isto revela a capacidade de narrar, a potência de sua narrativa. A
linguagem de Pretinha é riquíssima em paradoxos como na imagem da bolha de
sabão que é do “...tamaninho imenso do nosso amor,”. A narrativa carrega caixinhas dentro de
caixinhas, e surpresas acontecem a todo tempo, quebrando nossa expectativa. O
final é surpreendente, milagroso e epifânico. São histórias dentro de
histórias, como caixinhas mágicas. E como não nos lembrarmos do poder do
ilusionismo? O livro é uma garrafa de afetos, Erre Amaral garimpa também as
formas dos afetos que são construídas pelas afinidades, como entre o cego
Omerinho e Pretinha a partir das semelhanças pela invenção de histórias e pelos
desafetos, como entre ela e Reinaldo, o seu violador, e o violento Ferreira que
chicoteia um negro livre até a morte.
Erre Amaral é um garimpeiro de formas e de
símbolos, produzindo uma obra do tamanho do mundo e suas estranhas
“delicadezas”. Mescla o sofrimento com alegrias, a dureza com a leveza, como a
forma da imagem requer. A miudeza, a minúcia, é sua delicadeza. A narrativa
produz uma circularidade, como o próprio ritmo da poesia. O seu olhar é
enigmático. “Quem mais olha menos vê,” como dito pelo mágico revela a agilidade
de sua narrativa, que misturando diálogos como parte da narração não segue o
padrão tradicional do discurso direto dramático. A sua narrativa bem revela o
dom do mágico, o de fazer desaparecer e aparecer a caixa. São inúmeras caixas
que se abrem em sua narrativa. O diálogo entre Pretinha e
o mágico no abrir-se para o sexo é uma das partes mais belas do livro. Como não
nos lembrarmos do erotismo do “Cântico dos Cânticos”, do rei Salomão? Não é
algo explícito, aberto e agressivo que revela um contraste com o recato
anterior no livro. É algo extremamente lírico, belo e poético. O sexo serve
como amadurecimento de Pretinha, o passar do tempo, a transformação de
menina-moça em mulher.
A força da ambiguidade que carrega sua
narrativa é ímpar. Da crueldade à delicadeza, Erre Amaral consegue ir de um
extremo a outro com maestria. Mistura também o sagrado e o profano, como na
imagem da Santa Pretinha após a prostituição e no Almanaque profano, espécie de
bíblia que contém o segredo de todas as coisas. A riqueza da urdidura da ordem
e do restabelecimento (redenção) metaforizada no trabalho de tecelagem da mãe de
Pretinha que impõe uma ordem ao caos da menina com a figura das três fiandeiras
que remontam ao mito grego. O livre-arbítrio que fere o destino das fiandeiras
e impõe uma ordem outra por Pretinha que controla sua própria vida-sina. É a
escrita o dom maior que desconstrói o destino imposto. Pretinha se vê na
“inteireza de sua imperfeição”. No espelho que ela ganhou do mágico, um dos
seus presentes, como o Almanaque, ela se mira e percebe a multiplicidade de
suas faces. A relação com as cores branca e preta, na narrativa, é outro
recurso que ocorre, mostrando os seus inúmeros entrelaçamentos. Temos, assim,
nesta narrativa de Erre Amaral o garimpo certeiro de pedras preciosas e mágicas
com um livro que vai fincar raízes na história de nossa literatura.
“Do mundo,
suas delicadezas,”, romance (2017).
Autor: Erre Amaral.
Editora Penalux,
272 págs.
Disponível em:
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Foto: Tibérius Drummond |
A
resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Foto: Arquivo do Autor / Divulgação |
O autor
Erre Amaral
nasceu em Porto Velho (RO) em 1965, é escritor, poeta e ensaísta. Autor de Do mundo, suas delicadezas, (romance,
Editora Penalux, 2017), 54 [+ uma]
mulheres do baralho (poemas, Editora Cousa, 2015) Contos extraviados (contos, Butecanis Editora Cabocla, 2015), Uma Denise (romance, Editora Cousa,
2014), Le mot juste (romance, Orobó
Edições, 2011) e Paul Ricoeur e as faces
da ideologia (ensaio, Editora da UFG, 2008). Assinou a coluna ‘O
mal-entendido universal’ na Germina – Revista de Literatura e Arte, e assina a
coluna ‘Memorabilia’ na Revista Pausa. Editor de Palávoraz – Literatura e
Afins. Coordenou o Projeto de Cultura Café Literário em Diamantina (MG).
Curador do Projeto Caravana Rolidey – Literatura na Estrada. Despacha na blogue
literário piERREmenardiando. Doutor em Educação (UFG) e professor de graduação
e pós-graduação do Curso de Filosofia da UFT, em Palmas (TO).
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