Há livros que são um verdadeiro convite para
uma viagem e que nos levam a sentir a história e os personagens de maneira
singular. A obra, objeto da resenha, é um desses livros.
O impacto de uma narrativa bem delineada e
que nos envolve pela maneira como foi escrita é perceptível, ouso dizer, na
primeira frase. Senti-me convidado a acompanhar a história e a navegar nesse
mar de palavras. Da escritora Vanessa Maranha, publicado pela Editora Penalux
em 2017 (190 páginas), Começa em Mar
é o segundo romance da autora, que teve menção honrosa no Prêmio do Governo de
Minas Gerais de Literatura 2016.
Quando comecei a ler o livro,
coincidentemente, estava em frente ao mar. E o primeiro capítulo é mais que
suficiente para reforçar as impressões transmitidas e fazer com que o leitor
seja lançado nessa viagem literária, com vontade, com desejo e com expectativas
aguçadas. Ao concluir a leitura da publicação, lá estava eu mais uma vez, diante
do imenso mar. O que começa em mar, em mar termina.
Alice Zulmira Sánchez de Lima Oliveira é a
protagonista. Uma mulher que, ainda pequena, cruzou o mar para chegar à
fictícia Róvia baiana. Filha de pai português e mãe espanhola, ela pisa em solo
brasileiro, aqui cresce, casa-se com Rafael (filho de uma mãe portuguesa) e
junto ao marido vive em seu hotel, o Hotel Arenal. Mas, em Alice, reside a
vontade de ter contato real com as lembranças ibéricas que carrega, frutificadas
pelo discurso que ouvia de seu pai. Para traz ficou uma saudosa Europa, mas
sobretudo uma idealização daquele continente. De certo modo, ter um hotel e
receber pessoas de diferentes lugares foi a maneira que Alice encontrou de
sentir-se mais próxima a pessoas que estão fora de seu lugar de origem. Por
meio de seus hóspedes ela vê o mundo, com os olhos dos outros.
Entre o vai e vem das ondas da vida, ela vai
à Ibéria. Embarca num navio rumo a Gibraltar. Na viagem, como única presença
feminina da embarcação, cede ao lascivo desejo e ao prazer com homens ali
presentes. Entrega-se sem pudor. Para ela, esse ato que pode ser interpretado
como mera fantasia ou promiscuidade, é apenas uma forma de encontrar neles (os
homens) o seu acalento. Para Alice, talvez eles tenham sido os únicos em sua
vida a lhe oferecer tal segurança. Depois, ela regressa à Róvia.
Na proprietária do hotel, reside ainda o
desterro do migrante, o que se reforça na passagem do livro que diz “...se houver escritor português que no
desterro a representasse, esse era o Pessoa do desassossego e do alheamento
nesse sentir-se permanentemente estrangeira onde quer que estivesse”.
Na história, com a narrativa encantadora de
Vanessa Maranha, temos ainda a personagem Jordana, que deseja ser mãe e que “sempre sentira viver uma vida que não lhe
pertencia”. No entanto, seu marido Agenor não consegue engravidá-la. Jordana é funcionária do Hotel Arenal e acaba
por enlouquecer.
Temos ainda Hortênsia, sua colega de trabalho,
que é casada com Aluísio, tem filhos, renega um dos seus rebentos pelo fato de
ser homossexual e incentiva Jordana a procurar outros homens para que lhe dêem
o filho esperado/desejado. Hortênsia sente-se mais feminina que a amiga e tem
um acordo com o marido. Essa mesma Hortênsia tem uma relação conflitante com
sua patroa Alice.
E conheceremos Marta, uma mulher que
constatamos, pela descrição feita no livro, ser “inexata e inconclusa”. Mulher do proprietário de uma fábrica de
sabão, vive entre o que quer fazer e o que desejam que faça. Transita em dois
mundos, o que garante o status social necessário para lhe trazer proveitos e,
outro mundo no qual, vez ou outra, se jacta, mesmo que interiormente, ser
superior. Ela “não sabia se alguma vez
fora feliz”.
Começa em Mar põe em cena quatro mulheres:
Alice, Jordana, Hortênsia e Marta. Mulheres que não são estereotipadas. Foram
criadas pela autora com o toque crível da humanidade. São mulheres
diversificadas em seus anseios e vivências e que tem facetas várias, como todo
ser humano. As personagens femininas demonstram sua transformação e, no
cotidiano, montam sua própria trajetória, perseguindo sua viagem pessoal, por
esse mar da vida. Os outros personagens que com estas contracenam revelam-se
também bem constituídos.
Alguns temas estão presentes na história
criada pela autora. Há a abordagem sobre o pertencimento ao lugar. O que se vê
mais forte em Alice. Migrante que é, tem a saudade idealizada de sua terra
natal. Há os conflitos. Estes, por sua
vez, se revelam ao longo da trama, surpreendendo o leitor, tanto na solução em
si, como na forma com que Vanessa Maranha conduz o descortinar das relações que
se cruzam na história. Há os desejos de cada personagem. Todos traçam sua rota
movidos por fatores particulares. Há loucura. A insanidade toma uma das
personagens, que se vê transmutando-se em peixe. Podemos dizer que as
personagens criadas pela escritora são migrantes em suas próprias vidas. Vivem
como estrangeiras (ou estranhas) no seu cotidiano rotundo, se perfazendo entre
o que vivem e o que anseiam, vivendo
como é permitido e tentando encontrar no outro (e em si) a sua pátria, a sua
identidade.
A escrita de Vanessa Maranha é encantadora. Usa as palavras como a onda do
mar. Sabe ir e voltar, sabe ser caudalosa e serena, sabe ser contundente e leve.
Os personagens de Começa em Mar são expressivos, de uma vida crível, de
personalidades demasiado humanas e, por certo, que isso nos faz sentir maior
empatia, bem como perceber o emaranhado das relações que são constituídas por
eles. Tais relações são exequíveis no propósito da trama. Cada palavra, cada
frase, cada parágrafo, cada capitulo do livro nos faz querer adentrar mais o
mar desses personagens.
Começa em Mar é um livro bem escrito, dotado
de lirismo, com uma história preciosa. Os percalços, como ondas que rebentam na
praia, chegam e se desfazem. Todos, de alguma forma, tem ligação com o mar. O
mar em que a história de alguns começa e o mar no qual a história de alguns
termina. O livro tornou-se, sem dúvida, um dos melhores que li em 2017.
Foto: Reprodução |
Sobre a
autora
Vanessa Maranha participou de várias
antologias de contos, entre elas +30 mulheres que estão fazendo a nova
literatura brasileira (Record, 2007), organizada por Luiz Ruffato. Em
2001 foi finalista ao Prêmio Guimarães Rosa da Radio
France Internationale; em 2004, venceu seleção de contos
da Universidade Federal de São João Del-Rei(MG). Foi selecionada
para as oficinas literárias da FLIP em 2010 (Jornalismo Literário),
2012 (Crítica Literária) e 2016 (Shakespeare; promovida
pelo British Council). Em 2012 venceu
o Prêmio Off Flip, no ano seguinte, o Prêmio UFES de
Literatura (Universidade Federal do Espírito Santo)com o livro de contos Quando
não somos mais (EDUFES, 2014) e também o Prêmio Barueri de Literatura
2013/2014 com Oitocentos e sete dias (Multifoco, 2012). Foi finalista
ao Prêmio São Paulo de Literatura 2015 com o seu romance
de estreia Contagem regressiva (Selo Off Flip,
2014). Em 2016 lançou o livro de contos Pássara, pela Editora
Patuá. Começa em Mar é o segundo romance da autora e recebeu Menção
Honrosa do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016.
Ficha
Técnica
Título: Começa em Mar
Escritor: Vanessa Maranha
Editora: Penalux
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-5833-209-5
Número
de Páginas:
190
Ano: 2017
Assunto: Romance brasileiro
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