“Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem
medievo. Mas o homem moderno será melhor?” (Rachel de Queiroz)
É com a frase da grande escritora brasileira
que começamos a falar sobre a obra de uma outra escritora brasileira
contemporânea, Rô Mierling. O livro em questão é Diário de uma escrava,
publicado pela Editora DarkSide Books em 2016 (224 páginas).
A ficção literária pode entregar ao leitor
obras realmente impactantes, que mostram ao leitor um retrato nu e impiedoso da
crueldade humana. Se a ficção pode construir e entregar ao leitor obras
impactantes, a realidade muitas vezes choca. Ou, podemos dizer, que a realidade
chocante pode ser muito bem retratada numa obra avassaladora, que põe a brutalidade
humana no cerne da discussão.
Laura está em poder de um homem a quem chama
de Ogro e, não, não estamos tratando de um conto de fadas. O homem assim foi
apelidado “pela sua grosseria, pelo seu
cheio sempre azedo, como de folhas podres, e pela sua forma animalesca...”
Ela fora seqüestrada por ele, que é aparentemente comum e “acima de qualquer suspeita”. O homem que tem uma imagem que pode
ser tida como algo dentro da normalidade, é o mesmo que a subjuga há mais de
quatro anos e, desde então, a mantém em um buraco “cativa, aprisionada, isolada”. Não bastasse o fato de ser privada
do convívio social e não ter mais contato com seus parentes e amigos, ela sofre
abusos sexuais todos os dias.
Por essa introdução ao livro dá para ter a
noção do que o leitor pode aguardar. Esteja preparado. Contundência, cenas
realistas, crueldade exacerbada, choque de realidade, descrição precisa. O
cotidiano da jovem é de encarar maus-tratos por meio dos atos praticados pelo
homem que a tem no cárcere e que comete ações que a maioria das pessoas
consideraria incompreensível ou até inconcebível. Mas, Laura, de alguma forma, busca
manter-se lúcida, apesar de toda a situação degradante, de tudo a que é
submetida e que a vilipendia tanto física quanto psicologicamente. Laura não é
a primeira vítima e, possivelmente, não será a última.
Naquele buraco, que fica localizado num lugar
que ela desconhece, a jovem usa as paredes e um livro para manter a mente
ativa. Um local insalubre, em que suas necessidades fisiológicas tem de ser feitas
em um balde, recolhido após dias pelo Ogro. Sua comida é sempre trazida por
ele, além de receber alguma medicação quando o homem acha necessário. A jovem vive
ali, aterrorizada pelas ações cometidas contra ela, que revelam em cada gesto,
em cada ato, em cada passo, o grau de psicopatia do seu sequestrador.
A brutalidade e a aspereza daquele que ela
chama de Ogro causa angústia e sofrimento. Laura, ainda que fragilizada no seu
encarceramento, carrega um fio de esperança de que possa safar-se de seu algoz.
Na vida é assim. Por vezes nos agarramos a alguma ilusão que desperte em nós o
desejo de seguir adiante. É um modo de acreditar no futuro, numa possibilidade
que, ainda que longe e remota, talvez seja factível. Para fugir do confinamento
ela precisa de oportunidade, que lhe foi negada ao longo dos quatro anos em que
está cativa. Oportunidade, em sentido amplo, foi algo que ela não teve nesse
período. E, talvez, haja alguma chance.
“Mesmo
que não tenhamos mais motivos e forças para continuarmos vivos, ainda assim
lutamos pela nossa vida até o último minuto.”
Em meio ao caótico e cruel ambiente e, sentindo
sua anulação como indivíduo, Laura tem força e se demonstra racional em dados
momentos. O medo que a apavora é o mesmo que a deixa em estado de alerta. É
como se o medo a pegasse pela mão e a levasse até o próximo dia. Mas, Laura,
demonstra que sua mente está aprisionada, tanto quanto seu corpo. Algumas ações
do Ogro, quando são “mais leves”,
levam-na a crer que está sendo poupada e isso dá a ela um pouco do resgate de
sua humanidade.
Paira sobre a jovem uma questão existencial:
a vida ou a morte? Quem é Laura? Mesmo viva ela talvez esteja morta (sem sua
família, sem sua cidade natal, sem sua vida pregressa, sem poder escolher, sem
ter as suas vontades satisfeitas, sem construir a realização de seus sonhos,
sem poder ser quem ela realmente é, sem encontrar o seu verdadeiro eu). Laura,
em seu cotidiano, está aniquilada pelo aprisionamento e pelos abusos que sofre.
Aquele buraco significa “um poço de tortura
física e mental”, o distanciamento de seu corpo e de sua alma.
Desde a primeira página somos absorvidos pela
história. A realidade, muitas vezes, é mesmo cruel. Ao longo da leitura muitos devem
ser os adjetivos que surgem na mente do leitor: provocador, angustiante, apavorante,
audacioso, perturbador, violento, aterrorizante, visceral... Mas há que se
perceber que o que mais mexe com o leitor é o fato de que tudo aquilo que está
no livro pode ser real e, que em algum lugar alguém pode estar passando por
situação similar, sofrendo abusos, tortura, tendo sua personalidade anulada,
vivendo preso e vendo sua carne e seu psicológico definhar.
“Olhei
no espelho e fiquei com medo da pessoa que me olhou de volta. Vi uma criatura
seca, com maçãs do rosto encovadas, olhos fundos e sem brilho. Fios estranhos
saiam da cabeça daquela estranha que me encarava de dentro do espelho. Fios sem
vida, sem cor. Dentes amarelos e pretos saltavam de sua boca. Lábios rachados.
Pele descamada. Em suma, um monstro. Aos poucos, percebi que aquela era eu...”
Publicado inicialmente no Wattpad, plataforma
de publicação de livros online, Diário de uma escrava teve mais de um milhão de leituras. O
sucesso que fez no ambiente virtual, também se repete no livro físico, que
figurou na liderança de livros de mistério de sites de compra virtual, além de
ser um dos mais resenhados em outra plataforma disponível para leitores.
A autora construiu uma excelente história
baseada em casos reais. Laura é uma composição de várias vítimas que passaram
por situações como as que ela vivencia. E tantas outras, desconhecidas, passam
ou passaram por situações similares. Em que pese o fato de o livro ser uma obra
ficcional é um grito de alerta. Milhares de pessoas desaparecem, muitas são
menores e destinadas a fins sexuais. Não é incomum, como se constata nos casos
reais, o uso de violência, terror psicológico, tortura e estupro. Laura, a
personagem central, viveu a violação de sua individualidade. Tornou-se objeto
sexual de um homem que tem uma visão deturpada do sexo e da mulher.
Rô Mierling nos dá uma obra consistente, com
uma narrativa profundamente tocante, que leva o leitor a sentir a escuridão, o
medo e o sofrimento vivenciados por Laura. Chocante! Necessário, ouso dizer. A
constituição da história é feita em primeira pessoa (realizada por Laura em seu
diário) e em terceira pessoa (quando apresenta momentos pregressos ou que não
fazem parte do diário da garota).
Leitura que prende a atenção e que pode
facilmente ser devorada. Causará, de certo, um momento de reflexão e
desconforto provocados pelo impacto de algumas passagens (extremamente
necessárias), que elucidam e não escondem as violências diversas a que Laura é
submetida. A história é dotada de realismo e, por isso, pode causar sentimentos
controversos no leitor ao escancarar a realidade tal qual ela é. A autora
pesquisou casos reais que levaram à formulação do enredo e da construção dos
personagens que dele participam. O desenrolar da trama é surpreendente e o
final, numa grande reviravolta, é arrasador.
Para corroborar o realismo presente na obra o
leitor tem acesso a informações dos casos reais que inspiraram a escritora,
além da bibliografia consultada.
Quando a ficção ultrapassa a barreira do
entretenimento e vira um mecanismo de alerta para a realidade, o livro se torna
um instrumento que chama para a reflexão. Diário de uma escrava tem o mérito
de mostrar que o homem contemporâneo se mantém bruto e cruel, como o homem
medievo.
Foto: Reprodução |
Sobre a
autora
Rô Mierling é gaúcha, escritora, ghost writer
e pesquisadora acadêmica há mais de dez anos. Autora de contos, poesias e
crônicas, publicou Contos e Crônicas do
Absurdo e organizou a antologia Amor
e Morte, entre tantos outros livros.
Nota:
A resenha escrita por mim foi originalmente
publicada na Revista Conexão Literatura, edição de Maio de 2017. O leitor pode
baixar o exemplar gratuitamente aqui.
Ficha
Técnica
Título: Diário de uma
escrava
Escritor: Rô Mierling
Editora: DarkSide Books
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-945-4019-5
Número
de Páginas:
224
Ano: 2016
Assunto: Literatura
brasileira
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