“Será
possível ele achar que o avanço da doença era uma garantia irrevogável de
perdão para, então, conquistar a paz de espírito? Esperava, em sã consciência,
que alguém abrandasse seu pecado? Não era um pecado simplesmente, era um crime.
Foi uma confissão desesperada e tardia que só surgira com a iminência da morte.
Como ela havia convivido com isso durante toda sua vida?”
A primeira parte do livro se
passa na primavera/verão de 2016. Raul, um professor, sofre de ELA, uma doença
degenerativa que embora lhe restrinja determinadas ações, o mantém consciente
enquanto definha. Moribundo, ele é cuidado por Andrea que fora indicada por um
amigo. Ela havia cuidado de Dona Lúcia (já falecida).
Raul demonstra que quer
falar de algo que o incomoda e tem ligação com seu passado. Os atos criminosos
que cometera naqueles tempos, agora batem com força em sua consciência. Casado
com Carolina e pai de Felipe, o homem tem um lado sombrio guardado consigo e
que foi escondido de toda a família.
Ele passa a revelar sua
história para a cuidadora que, a contra gosto, passa a ouvi-lo. Ela se incumbe
de registrar as informações que revelam o passado nefasto de Raul. Registrar é
atender ao desejo dele. Andrea, apesar de tudo, tem de lidar com o asco e a
revolta que tomam conta de seus sentimentos quando ela sabe o que aquele homem fez.
Na segunda parte do livro o
leitor vai para a primavera do ano de 1979. “Desgosto
e insanidade foram a tônica da primavera de 1979 para um garotinho que gostava
de ser chamado de Piccolo”. O garoto, por seu tipo franzino e sua
personalidade, sofria bullying, termo que não era utilizado naquela época. “Coisas
de menino, era o diagnóstico”. Sua delicadeza era alvo fácil para os
abusos cometidos por outros garotos. Mesmo o pai e os irmãos o adjetivavam com
termos como “maricas” e “viadinho”.
A solidão desse garoto,
diante da incompreensão de quem o cerca, pode ocasionar o conforto em quem o
viola. E, sem se dar conta, a família o
empurra para as mãos de seu algoz, ou algozes.
Na parte três da obra
voltamos para o ano de 2016. É a fase do livro em que as histórias ganham o
contorno que a conduz para o desfecho.
Coisas
de Menino, de Alexandre Braoios, publicado pela Editora Illuminare
em 2016 é um livro que tira o leitor de sua zona de conforto. A história
incomoda, como deve incomodar a realidade. Piccolo tem uma história de abuso
infantil, de desrespeito que vem de diferentes grupos sociais dos quais a
criança faz parte, de violência escancarada e velada, de ausência dos pais ou
de não compreensão em relação ao que se passa com o filho, de desatenção, de
preconceito exacerbado.
“...
só Piccolo poderá dizer as repercussões na vida dele.”
Os “Piccolos” que sofrem
abusos pela vida quase sempre são vítimas de gente próxima (amigos da família,
vizinhos, parentes). O livro é baseado em uma história real e clama ao leitor
para que reflita sobre o tema do abuso infantil.
Embora seja uma obra
ficcional e que pode causar desconforto em certos leitores, pelo fato de
relatar atos desmedidos e até cruéis, Coisas
de Menino, num segundo plano, fala também de posicionamento e superação.
É inegável que as marcas de
uma infância dolorida em que inocência é rompida para o prazer e crueldade de
um adulto, ressoam no adulto que cresce carregando e tentando se livrar das
marcas que foram impingidas. Livros como esses servem de alerta. É preciso
falar sobre o tema para que a sociedade esteja atenta ao perigo que mora ao
lado ou que se infiltra na família de jeito amável e acima de qualquer
suspeita. Não criemos histeria, mas estejamos atentos.
O autor construiu uma
narrativa contundente, forte e com reviravoltas que surpreendem. Raul, Piccolo,
Andrea, Felipe, Giovani, Carolina, Luigi, César e Clayton são personagens que
carregam em suas vidas a marca de um crime que os ronda. O passado vem a tona e
as lembranças causam desconforto.
Coisas
de Menino é um livro provocador e impactante, que toca na ferida de maneira
clara. A pedofilia deve ser denunciada sempre! É preciso que a sociedade esteja
atenta aos sinais que as crianças dão.
A história revela uma
trajetória de dor e culpa, de arrependimento e vingança, de perdão e justiça,
de preconceito e reconstrução do eu, de tempo e espaço, de transformação e
assombro, de relações conturbadas e novos laços afetivos que se formam. Livro
que desnuda um criminoso e mostra o caminho da vida de alguém que sofreu
violência por simplesmente ser quem era.
Foto: Reprodução |
Sobre
o autor
Alexandre Braoios é
professor universitário e estudante de psicologia. Nasceu em São Paulo e desde
2009 reside em Jataí-GO, onde é docente da Universidade Federal de Goiás.
Possui contos publicados em antologias e coletâneas como Contos de Som e
Silêncio, Mulheres e Meninas, Vícios, Taras e Medos, Sombras e Desejos, Contos
de um Natal Sem Luz e Eu Me Ofereço (um tributo a Stephen King), Perdoe-e e Meu
Lado Sombrio. Coisas de Menino é seu primeiro romance.
Ficha
Técnica
Título: Coisas de Menino
Escritor: Alexandre Braoios
Editora: Illuminare
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-68904-33-6
Número
de Páginas:
267
Ano: 2016
Assunto: Literatura
brasileira
Que felicidade ler uma resenha como essa. É a certeza de que consegui transmitir o que me propus. Um livro difícil de ler, mas também de escrever. Um abraço a todos
ResponderExcluir